O ex-ministro das Relações Exteriores, David Choquehuanca
denuncia que os Estados Unidos orquestraram o golpe que atingiu gravemente a
saúde, a economia e a política da Bolívia.
David Choquehuanca, ex-ministro das Relações Exteriores da
Bolívia e atual candidato à vice-presidência l Foto: MRE
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Por Leonardo Wexell Severo
Nesta entrevista exclusiva, o líder camponês e indígena
David Choquehuanca, candidato à vice-presidência da Bolívia pelo Movimento Ao
Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos Povos (MAS-IPSP)
denuncia “o assalto ao lítio, recurso natural estratégico do qual o país tem a
maior reserva do planeta, como o que está por detrás da deposição do presidente
Evo Morales”. Chanceler do país andino de 2006 até 2019, o dirigente assevera
que a ação militar e a fraude com a participação da Organização dos Estados
Americanos (OEA) são dois lados da mesma moeda do “golpe planificado,
financiado e orquestrado pelos Estados Unidos, que pôs a saúde, a economia e a
política da Bolívia em estado de coma”. Diante do desastre que será herdado
após as eleições, Choquehuanca defende que “o próximo governo deve ser um
governo de unidade nacional”, para se combater a descolonização e voltar “a
industrializar os nossos recursos naturais, de lhes dar valor agregado e
redistribuir seus benefícios ao nosso povo”.
Qual a sua avaliação da grave crise que atravessa a Bolívia,
dirigida por um governo que tomou o poder de assalto em novembro do ano
passado?
Os bolivianos e bolivianas estamos vivendo dias de tristeza,
de pranto e perseguição. Desde o golpe de Estado nada está bem, tudo anda mal.
Nossa saúde está em estado de coma, não somente pela crise sanitária, mas a
saúde econômica, a saúde política, a saúde social.
Para enfrentar a crise sanitária nos disseram que iriam
comprar 500 respiradores que nunca chegaram. Apareceram somente 170
respiradores que não servem, que não funcionam e ainda foram superfaturados.
Nos informaram que cada um deles custaria US$ 8 mil (R$ 41.700) colocados na
Bolívia, pelos quais pagaram US$ 28 mil (R$ 146 mil). É muita corrupção!
Estamos falando de quase 70 casos de corrupção nestes poucos meses, e são
inúmeros os exemplos. Máscaras que custam no mercado entre 9 e 13 bolivianos
(R$ 6,50 e R$ 10,00) foram compradas por 80 bolivianos (R$ 60,00). Não há
equipamentos de biossegurança nem testes suficientes, nem reativos para o
coronavírus.
“A quarentena está sendo utilizada para desatar uma campanha
de terror, de amedrontamento, para calar a liberdade de expressão e os líderes”
A quarentena está sendo utilizada para desatar uma campanha
de terror, para desatar uma campanha de amedrontamento, para calar a liberdade
de expressão, para perseguir os líderes, para meter medo. Há muita corrupção.
Há muita improvisação.
E o que se pode fazer para combater esta pandemia que também
ataca a democracia, como estás denunciando?
O que o povo está fazendo é se auto-organizar. Estamos nos
organizando com a participação das associações comunitárias e dos movimentos
sociais porque sabemos que não interessa ao governo atual a saúde, não
interessa a democracia, os recursos naturais e o fortalecimento das nossas
empresas estratégicas.
Diante disso, o que o povo boliviano está fazendo é se
auto-organizar. Há um processo de despertar de consciência, de despertar dos
bairros e das comunidades. Esta crise está permitindo o surgimento de novas
lideranças, de novos atores e é bem importante que possam trabalhar junto, que
tenham amor ao seu povo, que tenham amor à sua Pátria, que tenham compromisso
com a justiça social, com a saúde do povo boliviano.
Acredito que este momento sombrio de incertezas e de
corrupção também é uma oportunidade para refletir, gerar propostas, encarar
esta crise conjuntamente, superando todos os erros que tenhamos cometidos no
passado.
Em seu diálogo com os bolivianos está sempre presente a
cultura da unidade contra a divisão praticada pelas elites, que servem aos
interesses das transnacionais e do FMI. Como romper com a lógica da
dependência?
Esta crise está sendo vivida não somente pelos bolivianos,
mas por irmãos de todo o continente e de todo o mundo. Então é hora de
trabalhar de forma conjunta problemas que são globais. Nenhum país tem a
capacidade de enfrentar de forma isolada problemas gerados por este modelo de
desenvolvimento capitalista ocidental. E hoje vivemos as consequências da sua
aplicação: pobreza e crise.
“O colonialismo não se construiu somente na Bolívia e se fez
para nos humilhar, marginalizar, esmagar, pisotear, dividir, para saquear
nossos recursos naturais”
Quando chegamos ao poder começamos um processo de
desmontagem deste Estado colonial que nos trouxe tanto mal. O colonialismo não
se construiu somente na Bolívia e se fez para nos humilhar, marginalizar,
esmagar, pisotear, dividir, para saquear nossos recursos naturais. Esse
colonialismo foi construído durante 500 anos e nós decidimos desmontá-lo.
Decidimos construir o que é nosso, com pensamento próprio, com pensamento
descolonizador. Por isso falamos de processo de mudanças, porque queremos
transformar, construir uma nova Bolívia, uma nova vida, uma nova sociedade. E
construir novamente a integração, a unidade, a liberdade, fortalecer nossa
soberania.
E quando estamos falando em construir a integração, a
unidade e a irmandade, não me refiro somente aos seres humanos. Buscamos voltar
a ser este ser humano integral, parte da natureza. Pensar não somente em nós
mesmos, mas em tudo o que existe. Por isso dizemos que é bem importante voltar
a ser Jiwasa, que frente à crise global do capitalismo, é preciso recolher
outros valores e princípios, aos que resistiram durante 500 anos. Estamos
falando de Jiwasa, que é um código, um princípio que nossos avós preservaram,
que são as culturas milenares. Não sou eu, somos nós. Jiwasa é a morte do
egocentrismo e do antropocentrismo, pensar na cultura da vida, da unidade, da
paz, da irmandade e da harmonia.
O que estás defendendo se contrapõe frontalmente à
declaração de Elon Musk, o CEO da Tesla, do “golpearemos a quem queiramos”, que
assumiu sua intervenção recentemente na Bolívia. Como avalias isso?
Assim pensam eles. Todos os países que possuímos recursos
naturais corremos o risco de receber a intervenção destas transnacionais. O
mundo foi infectado pela cobiça, não só pelo coronavírus, mas pela ambição
pessoal e pelo individualismo. Estas transnacionais não pensam na vida, não
pensam em nossos povos. As declarações
deste senhor mostram que o golpe foi planificado, financiado e orquestrado
pelos Estados Unidos. Este golpe não foi só contra a nossa democracia, mas
contra todo o nosso continente, foi dirigido contra esse processo de mudanças
que denominamos Revolução Cultural e Democrática. O golpe foi dirigido contra o
processo de descolonização, contra a decisão de industrializar nós mesmos
nossos recursos naturais, de lhes dar valor agregado, de redistribuir seus
benefícios para toda a população. O golpe foi à luta contra a pobreza.
Estávamos num processo de ataque sistemático para que não houvesse pobres, com
resultados conhecidos pela comunidade internacional. Mas não só o senhor Elon
Musk nos mostrou que este golpe foi financiado, também Richard Black [senador
republicano] admitiu que Trump promoveu o golpe.
“Estão atrás dos nossos recursos. No caso do lítio, a
Bolívia possui a maior reserva deste recurso estratégico energético do planeta.
Para isso precisam nos esquartejar”
Ou seja, são interesses das transacionais que estão atrás
dos nossos recursos. No caso do lítio, a Bolívia possui a maior parte deste
recurso estratégico energético do planeta. Não querem que nossos povos manejem
seus recursos estratégicos, e para isso precisam nos dividir e esquartejar.
Utilizam para isso organismos internacionais e não faltam quem se preste a
esses interesses obscuros, neste caso a esses interesses brancos.
O senhor Luis Almagro [secretário-geral da Organização dos
Estados Americanos (OEA)], por exemplo, tem sido o principal operador do golpe.
Ocorreram quase 40 mortes, há muitos presos e estamos vendo as consequências do
golpe de Estado. Há muita fragilidade nas instituições e um processo de
desinstitucionalização, mas o importante é que o povo boliviano saiba que este
golpe veio de fora, não houve fraude. A fraude foi feita pela OEA, que
danificou nossa democracia. Seguramente estes fatos não podem ficar impunes,
temos que fazer algo.
E o que fazer agora para que ocorram eleições livres e
limpas e que se respeitem os resultados? Como evitar que se cometa uma nova
fraude como a realizada por Almagro, que atuou como agente desestabilizador?
É importante o acompanhamento da comunidade internacional e
que nossos povos se organizem e construam a unidade; que a esquerda possa
contribuir para a construção de uma só frente, da unidade com os movimentos
sociais. É importante escutar os nossos povos, dialogar.
Os mineiros necessitam escutar os professores, os
professores precisam escutar os médicos, os médicos precisam escutar os
policiais, os policiais precisam escutar os artistas. As lideranças necessitam
escutar suas comunidades e fazer o que nossos povos querem: a última palavra
deve ser a dos nossos povos, que são sábios. Dizem que a voz do povo é a voz de
Deus, é construir unidade, é construir compromisso com a comunidade. É deixar
de lado os interesses pessoais ou setoriais, é deixar de lado inclusive os
interesses partidários e nos colocar a serviço dos nossos povos.
É hora de pensar no país e tomar decisões não somente em
função do poder político, econômico ou cultural. Temos que acreditar em nossos
povos. Os líderes têm que acreditar no povo, escutar os seus povos. Só assim
vamos superar qualquer crise, venha de onde vier. Não somente temos que nos
organizar para participar das eleições. Os sujeitos da construção, da
irmandade, do fortalecimento das nossas democracias, os sujeitos que queiram
construir nossa democracia, proteger nossos recursos naturais, têm que ser o
povo. Neste caso, os mineiros, os aimarás, os quéchuas, os operários, o povo
trabalhador.
Não devemos deixar a condução de um país somente nas mãos de
burocratas. As decisões políticas têm que ser adotadas com a participação de
todos e todas, de todos os movimentos sociais, do povo. Logo virão os
burocratas, mas para levar adiante as decisões que tenham sido tomadas com
plena participação dos nossos povos.
Há muitas denúncias de que o governo de Jeanine Áñez tem
instrumentalizado os meios de comunicação e silenciado os que não se submetem à
sua política. O que está ocorrendo?
É importante fortalecer o direito de acesso à informação.
Muitos dos meios de comunicação foram cúmplices do golpe de Estado, outros
perseguidos, manipulados ou calados. É necessário que a mídia fale a verdade.
Hoje os meios não informam, fazem publicidade, e isso é decepcionante e triste.
Uns poucos resistem e jogam o seu papel, como a Telesul, que foram fechados no
país. Porque este é um governo que persegue a liberdade de expressão e a
liberdade de imprensa. Querem prender e amedrontar. Em nosso código temos uma
palavra que significa obrigação de dialogar, obrigação de comunicarmos, necessitamos
ter um povo informado.
Com o Arce como ministro da economia, a Bolívia foi durante
vários anos o país com maior crescimento do PIB da América Latina, baseado
fundamentalmente no desenvolvimento do mercado interno. Como seu
vice-presidente, o que fazer para seguir esse caminho e aprofundar o modelo de
mais salário, empregos e direitos, tendo consciência de que vão herdar um país
devastado e em meio a uma pandemia?
Primeiro precisamos nos organizar e ganhar as eleições.
Depois governar sem revanchismo, convocando todos os bolivianos. O próximo governo
deve ser um governo de unidade nacional, de reconciliação, de concertação. O
país que vamos herdar estará um desastre, não somente pela situação interna,
mas pela externa.
“Nosso governo deve ser um governo de unidade nacional, de
reconciliação, de concertação, pois o país que vamos herdar estará um desastre,
não somente pela situação interna como externa”
Dizem que a próxima pandemia se chamará “pandemia da fome” e
os organismos internacionais responsáveis por esses dados falam que morrerão
diariamente 300 mil pessoas devido à fome. Será um desafio não só para os
bolivianos, mas para o mundo.
Juntos teremos que enfrentar qualquer situação de crise,
somente assim poderemos recuperar a estabilidade econômica. Necessitamos um
modelo de Estados fortes, como tem dito a Comissão Econômica para a América
Latina e o Caribe (CEPAL) e afirmado vários outros organismos. Agora, mais do
que nunca, precisamos de Estados fortes para enfrentar qualquer crise depois da
pandemia.
O MAS-IPSP investiu recursos no fortalecimento do Estado, na
formação e na capacitação, medidas que foram sendo desmanteladas pelo atual
governo. Por onde recomeçar?
A Bolívia está estancada. Necessitamos colocar nosso Estado
em movimento, colocar o nosso país e nossa nação em movimento, e para isso
precisamos de um amplo acordo entre todos os bolivianos, priorizar e
identificar ações conjuntas.
A agricultura é um ponto que necessita atenção, para
garantir a alimentação da população. Em segundo lugar, precisamos de
investimento na educação. Claro que vamos continuar construindo rodovias,
investindo na infraestrutura, completando tudo o que já estava se fazendo para
integrar o país. E também precisamos investir no comércio exterior. Tudo deve
ser feito em função dos interesses dos bolivianos. Precisamos estar orientados
fundamentalmente pela cultura da vida, da unidade e da integração. Necessitamos
construir esperanças e certezas.
Uma mensagem a esses mais de 200 mil bolivianos que vivem no
Brasil, 45 mil eleitores que garantiram mais de 70% dos votos no MAS nas
últimas eleições.
Um dia os bolivianos e os brasileiros precisarão apagar
nossas fronteiras. Um dia vamos ter que construir integração, unidade, para
poder falar de igual para com a China, com a União Europeia ou qualquer um.
Porque isolados não poderemos falar de igual para igual com outros continentes.
Assim como necessitamos construir unidade na Bolívia, necessitamos construir
irmandade no nosso continente. E lutar para garantir todos os direitos no
continente, para nossos irmãos bolivianos que estão no Brasil e em outros
lugares.
Tudo é para que possamos construir nossos sonhos, em nossa
terra. Para que nós bolivianos possamos sair, entrar, decidir onde queremos
viver. Porém em condições dignas, onde se respeitem nossos direitos
trabalhistas, nossos direitos humanos. Por isso é importante a construção da
unidade, da irmandade. E nós bolivianos vamos recuperar a nossa democracia, que
hoje está em risco. Nossos recursos naturais, nossa educação, nossa saúde,
nossas empresas estão em risco.
Acredito que nós bolivianos, os que estão fora e os que
estão aqui dentro, vamos recuperar o nosso caminho, retomar o processo de
transformações e construir novamente a estabilidade e a irmandade. Um dia
nossos povos e nós mesmos vamos nos governar. E nos governarmos é devolver às
nossas organizações e às nossas comunidades a capacidade de resolver os
problemas, e não esperar que outros os resolvam por nós.
Este processo é para despertar a energia comunal, para
acreditar em nós mesmos, governar a nós mesmos, governar com leis feitas por nós
mesmos, para defender o interesse da nossa pátria, da nossa nação.
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