Estoques de alimentos básicos no país, que se mantinham em certo nível até 2015, caíram praticamente a zero - Reprodução/Montagem RBA |
Por Vitor Nuzzi, da RBA
São Paulo – Em momento de alta da
inflação e nos preços dos alimentos, como se constata, por exemplo, no valor da
cesta básica, o país abriu mão de um instrumento que poderia ajudar a reduzir
essa pressão. Desde 2016 os estoques de alimentos pela Companhia Nacional de
Abastecimento (Conab) vêm caindo, até chegar a um nível próximo de zero. Embora
difícil de mensurar, isso causa impacto nos preços, por reduzir a oferta.
“Foi o que aconteceu no ano
passado, por volta de setembro, quando houve aumento de preços de alguns de
produtos, como arroz, soja (derivados) e outros, provocado pelo câmbio, de um
lado, e de outro, pelos baixos estoques reguladores”, lembra o diretor técnico
adjunto do Dieese, José Silvestre. Esse processo de desmonte, acrescenta, que
começou no governo Michel Temer, foi aprofundado no atual.
Sinal para o mercado
Ex-diretor da Conab, o
pesquisador Silvio Porto observa que a capacidade de baixar preços por
intervenção do governo está relacionada justamente ao volume de estoque
público. “Às vezes, só o fato de ter o volume estocado representa um sinal de
atenção por parte do mercado, (no sentido de) que esse governo não vai titubear
caso seja necessário em disponibilizar esse produto para o mercado”, diz Porto,
atualmente professor na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).
Uma consulta aos dados da Conab
mostra, por exemplo, que o estoque total de milho chegou a atingir 5 milhões de
toneladas em outubro de 2009 e 2010. Caiu, mas manteve-se perto dos 2 milhões
até 2015. A partir daí, queda praticamente constante até chegar a 34.770
toneladas em outubro deste ano. Esse volume inclui a chamada AGF (Aquisição do
Governo Federal), mercado de opções e agricultura familiar. Nesse último item,
o resultado mostra zero desde 2017.
É “melhor” exportar
No caso do arroz, em outubro de
2011 e 2012 o estoque total ficou entre 1,3 milhão e 1,4 milhão de toneladas. O
que teria, segundo Porto, impacto significativo, considerando um consumo
estimado em 11 milhões. No mês passado, o estoque desse mesmo produto estava em
ínfimas 21.556 toneladas. A situação só não foi pior, afirma o ex-diretor do
Conab, porque o Brasil trouxe 900 mil toneladas do Paraguai e do Uruguai.
Porto aponta outros fatores que
desestimulam o abastecimento interno, que poderia ajudar a segurar preços. Ele
observa que a Lei Kandir (Lei Complementar 87, de 1996) permite que produtos
sejam exportados sem incidência tributária. “É uma vantagem comparativa para
exportações, em detrimento ao mercado interno”, diz o pesquisador.
Com isso, se a empresa
comercializa o produto dentro do Brasil paga ICMS, enquanto se vende para fora
não paga nada. “Soma-se a isso um dólar altamente favorável às exportações, o
que torna nosso produto lá fora altamente competitivo. Não tem cota, exporta
quando quiser. Não tem taxa. É um convite à exportação, desde que tenha
mercado.”
Agricultura familiar perde
Nesse contexto, seria ainda mais
importante adquirir produtos da agricultura familiar. Principalmente ao se
considerar que o setor perdeu grande parte da sua renda durante a pandemia.
“Muitos equipamentos, como feiras, por exemplo, deixaram de funcionar,
principalmente naquele período mais necessário de isolamento. Isso impactou
essas famílias produtoras”, lembra Porto. Além disso, escolas fecharam, interrompendo
o fornecimento de alimentação. “Seria uma forma de assegurar renda e alimentos
às famílias em situação de insegurança alimentar.”
Mas os recursos destinados à
compra de produtos, no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que beneficia
a agricultura familiar, vêm caindo drasticamente. Chegou a quase R$ 587 milhões
em 2012, o que possibilizou a comercialização de 297.619 toneladas de alimentos
produzidos por 128.804 famílias. A diferença é gritante: em 2019, primeiro ano
do atual governo, foram operacionalizados em torno de R$ 41,4 milhões,
comercializando 14 mil toneladas de alimentos vindos de 5.885 agricultores
familiares.
Preço para o consumidor
No ano passado, centenas de
organizações pressionaram o governo pedindo destinação de pelo menos R$ 1
bilhão para o programa. Uma medida provisória garantiu metade desse valor. “Só
que a Conab operacionalizou 220 (milhões) e os outros 280 foram repassados para
estados e municípios”, diz Porto. “O problema é que hoje há uma enorme
dificuldade de acompanhamento por falta de transparência das informações.”
Desde 1978 na Conab, o analista
João Dalla Costa lamenta o que chama de abandono dos estoques regulares. “A
gente chama de intervenção, mas na verdade é sustentação de preço para o
consumidor, que era o mais importante até então. Colocávamos no mercado não
para prejudicar o produtor, mas sempre visando o consumidor final, para que o
preço não chegasse onde está chegando hoje”, comenta. “Não interessa formar
estoques, mesmo que o preço mínimo esteja a metade do preço de mercado. O
negócio é exportar”, completa. Política de liberdade total para o mercado.
Hands free (mãos livres), define o analista.
Comendo no lixo
Com os interesses voltados ao
agronegócio e o PAA vivendo de emendas no orçamento, o país perdeu segurança e
soberania alimentar, lamenta Dalla Costa. “Ou seja, o consumidor está na mão do
que o mercado quiser cobrar. Pouco importa se estão comendo no lixo. Eu nunca
vi um país como o nosso, continental, com as mazelas que tem, não ter estoques
estratégicos, para socorrer nessa hora. Claro que temos que pensar em
sustentação de preço para o produtor. Por isso temos o preço mínimo”, diz,
referindo-se à PGPM, a Política de Garantia de Preços Mínimos.
A própria Conab já manteve
políticas que ajudavam a aproximar o produtor do comerciante, outro mecanismo
de certa regulação dos preços dos alimentos. Apenas o “livre mercado” não
atenderá a população, diz Dalla Costa, defendendo a política de estoques. “É o
que os americanos fazem”, acrescenta.
Segundo Silvio Porto, os Estados
Unidos mantêm um estoque equivalente a 30% de seu consumo anual. O Japão fica
perto disso (35%), enquanto a China vai a 80%. Para ter um volume
correspondente a 20% do consumo, o Brasil precisaria ter pelo menos 2,2 milhões
de toneladas, quantidade irreal nos dias atuais.
Uma das consequências dessa política, entre outros fatores, aponta, está no aumento da fome nos últimos dois anos, como mostrou pesquisa divulgada em abril pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Pensann). Mais da metade da população estava em situação de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave). E mais de 19 milhões de brasileiros estão passando fome.
No Jornal GGN
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