O relato é cru, mas esclarecedor. O ditador argentino Jorge
Rafael Videla admitiu que matou “sete ou oito mil pessoas” durante a ditadura.
Friamente, o ditador, hoje preso, afirmou que as vítimas estavam detidas ou
sequestradas e que fez desaparecer seus restos “para não provocar protestos
dentro e fora do país”. “Cada desaparição pode ser entendida certamente como a
maquiagem, ou dissimulação de uma morte”. Estas declarações estão incluídas no
livro “Disposição Final, a confissão de Videla sobre os desaparecidos”, do
jornalista argentino Ceferino Reato, publicadas nesta sexta-feira (13) pelo
jornal La Nación, da Argentina.
Segundo o La Nación, o repressor descreve de forma detalhada
o “método” utilizado durante a repressão ilegal, justifica o uso da tortura e
destaca a influência da “Doutrina Francesa” usada na Argélia, na luta contra as
guerrilhas.
"Não havia outra solução, (os militares) estávamos de
acordo em que era o preço a pagar para ganhar a guerra contra a subversão e
necessitávamos que não fosse evidente para que a sociedade não percebesse.
Havia que eliminar um conjunto grande de pessoas que não podiam ser levadas à
justiça nem tampouco fuziladas", afirmou o ditador.
Organismos de Direitos Humanos afirmam que o número de
desaparecidos por ação da ditadura cívico-militar na Argentina corresponde a
30.000 pessoas.
No livro, de próxima distribuição, Videla afirma que fez
desaparecer corpos de pessoas mortas em tiroteios, como o do chefe do Exército
Revolucionário do Povo (ERP) Mario Santucho, porque "era uma pessoa que
gerava expectativas; a aparição desse corpo ia dar lugar a homenagens, a
celebrações. Era uma figura que devia ser apagada". Sustenta também que a
reação da ditadura não estava relacionada com uma “Solução Final”, mas com
“Disposição Final”, diz Videla.
O repressor sustenta que as pessoas que “deviam morrer” para
ganhar a guerra contra a subversão o foram por sua preparação militar e
ideológica. Enfoca seu relato no Exército Revolucionário do Povo (ERP), a quem
aponta como “mais inimigo que os Montoneros”. “Era algo alheio, outra coisa. Os
Montoneros guardavam algo de nacionalismo, catolicismo, do peronismo com o qual
havia nascido”, afirma.
O livro inclui testemunhos de outros chefes militares,
guerrilheiros, políticos, funcionários e sindicalistas que permitem reconstruir
o contexto histórico no qual Videla e suas tropas decidiram tomar o poder, no
dia 24 de março de 1976, e matar e fazer desaparecer os restos dos milhares de
pessoas às quais consideravam “irrecuperáveis”.
Com respeito ao destino final dos desaparecidos, Videla
sustenta que “não existem listas definitivas, apenas algumas parciais e
desorganizadas”. Esta é a segunda vez que o ditador Videla se refere
midiaticamente aos desaparecidos. Em dezembro de 1977, frente à conferência de
imprensa que procurava resposta sobre as suspeitas de detenção e desaparição de
pessoas, Videla filosofou: “O desaparecido, enquanto permaneça como tal, é uma
incógnita. Se o homem aparecesse teria um tratamento "x", mas
enquanto seja desaparecido, não pode ter um tratamento especial. Os
desaparecidos são isso: desaparecidos; não estão nem vivos nem mortos; estão
desaparecidos, não têm identidade, não são”.
A cobertura que o jornal La Nación dedicou nos últimos
tempos às declarações do ditador Videla e suas justificativas dos crimes de sua
ditadura causaram desconforto. Em fevereiro deste ano, o tradicional veículo,
pertencente à também tradicional família Mitre, publicou parte da entrevista
que o repressor concedeu à revista espanhola Cambio 16. Entretanto, no dia 10
de abril passado, em seu editorial intitulado “Memória completa e
reconciliação”, tentou revalorizar a “teoria dos dois demônios” propondo uma espécie
de “reconhecimento” aos soldados, oficiais e policiais que morreram “cumprindo
com seu dever” na década de 70, além de se pronunciar contra a anulação das
leis de obediência devida e ponto final, reivindicando-as junto com os indultos
aos genocidas, como “avanços à reconciliação”.
“A este jornal só podemos reconhecer o mérito da coerência
histórica. São os mesmos que apoiaram todo golpe de estado presenciaram e
protegeram em suas páginas a ditadura militar genocida. São os que fizeram
negócios milionários com o governo de fato, cujo caso emblemático é a aquisição
da empresa Papel Prensa”, afirmou o presidente da Federação de Estudantes da
Universidade de Buenos Aires, Ignacio Kostzer.
Francisco Luque
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