Há uma dimensão pouco examinada no avanço das lógicas
neoliberais. Um sistema que estimula competição, disputa e rivalismo produzirá
“líderes” brutais e sem empatia. Eleger gente generosa e sensível requer uma
nova democracia.
Sigmund Freud afirmou que “os grupos assumem a personalidade do líder”. |
Por George Monbiot*
Via - Portal Vermelho
Quem, em seu juízo perfeito, poderia desejar esse trabalho?
É quase certo que acabará, como descobriu Theresa May, em fracasso e execração
pública. Procurar ser primeiro-ministro britânico, hoje, sugere ou confiança
imprudente ou fome insaciável de poder. Talvez necessitemos de uma ironia como
a de Groucho Marx: alguém louco o suficiente para candidatar-se a essa função
deveria ser desqualificado para concorrer.
Alguns anos atrás, a psicóloga Michelle Roya Rad listou as
características de uma boa liderança. Entre elas figuravam justiça e
objetividade, desejo de servir à sociedade e não a si mesmo, falta de interesse
em ser famoso e ocupar o centro das atenções, resistência à tentação de
esconder a verdade ou fazer promessas impossíveis. Por outro lado, um artigo
publicado no Journal of Public Management & Social Policy (Jornal de Gestão
Pública e Política Social) listou as características de líderes com
personalidade psicopata, narcisista ou maquiavélica. Elas incluem: tendência à
manipulação dos outros, disposição em mentir e enganar para alcançar seus
objetivos, falta de remorso e sensibilidade, desejo de admiração, atenção,
prestígio e status. Quais dessas características descrevem melhor as pessoas
que estão competindo para ser “governantes” no mundo contemporâneo?
Na política, vê-se em todo lado o que parece ser a
externalização de déficits ou feridas psíquicas. Sigmund Freud afirmou que “os
grupos assumem a personalidade do líder”. Penso que seria mais preciso dizer
que as tragédias privadas dos poderosos tornam-se as tragédias públicas
daqueles que eles dominam.
Para algumas pessoas, é mais fácil comandar uma nação,
mandar milhares para a morte em guerras desnecessárias, separar crianças de
suas famílias e infligir sofrimentos terríveis do que processar sua própria dor
e trauma. Aparentemente, o que vemos na política, em todos os cantos, é uma
manifestação pública de profunda angústia privada.
Essa talvez seja uma força particularmente forte na política
britânica. O psicoterapeuta Nich Duffell escreveu sobre “líderes feridos”, que
foram separados da família na primeira infância para ser enviados ao colégio
interno. Eles desenvolveram uma “personalidade de sobrevivente”, aprendendo a
reprimir seus sentimentos e projetar um falso eu, caracterizado pela
demonstração pública de competência e autoconfiança. Sob essa persona está uma
profunda insegurança, que pode gerar necessidade insaciável de poder, prestígio
e atenção. O resultado disso é um sistema que “sempre revela pessoas que
parecem muito mais competentes do que realmente são”.
O problema não está confinado a estas paragens. Donald Trump
ocupa a cadeira mais poderosa do planeta, e ainda assim parece roer-se de
inveja e ressentimento. “Se o presidente Obama tivesse feito os acordos que
fiz”, afirmou há pouco, “a mídia corrupta os consideraria incríveis… Para mim, apesar
do nosso recorde em economia e tudo o que fiz, não há crédito!”. Nenhuma
riqueza ou poder parece capaz de satisfazer sua necessidade de afirmação e
segurança.
Penso que deveria ser necessário a qualquer um que quisesse
participar de uma eleição nacional passar por uma formação em psicoterapia. A
conclusão do curso seria a qualificação para o cargo. Isso não mudaria o
comportamento de psicopatas, mas poderia evitar que, ao exercer o poder, certas
pessoas impusessem sobre os outros suas próprias feridas profundas. Fiz dois
cursos: um influenciado por Freud e Donald Winnicott, outro cuja abordagem
tinha foco na compaixão de Paul Gilbert. Considero os dois extremamente úteis.
Penso que quase todo mundo se beneficiaria desses tratamentos.
A psicoterapia não iria garantir uma política mais gentil. A
abertura admirável de Alastair Campbell ao falar sobre sua terapia e saúde
mental não o impediu de comportar-se – quando desempenhou as funções de
assessor político e porta-voz de Tony Blair – como um valentão desbocado, que
intimidava as pessoas a apoiar uma guerra ilegal, em que centenas de milhares
de pessoas morreram. Tanto quanto sei, não demonstrou remorso por seu papel
nessa guerra agressiva, que cabe na definição de “crime internacional supremo”
do tribunal de Nuremberg.
O problema, na verdade, é o sistema no qual essas pessoas
competem. Personalidades tóxicas prosperam em ambientes tóxicos. Aqueles que
deveriam ser menos confiáveis para assumir o poder são justamente os que mais
provavelmente vencerão. Um estudo publicado no Journal of Personality and
Social Psychology sugere que o grupo de traços psicóticos conhecido como
“domínio sem medo” está associado a comportamentos amplamente valorizados nos
líderes, tais como tomar decisões ousadas e sobressair-se no cenário mundial.
Se assim for, nós, por certo, valorizamos as características erradas. Se para
alcançar o sucesso no sistema é necessário ter traços psicopatas, há algo
errado com o sistema.
Para pensar uma política eficiente, talvez fosse útil trabalhar
de trás para frente: primeiro decidir que tipo de gente gostaríamos que nos
representassem e depois criar um sistema que as levasse ao primeiro plano.
Quero ser representado por pessoas ponderadas, conscientes de si e
colaborativas. Como seria um sistema que promovesse essas pessoas?
Não seria uma democracia puramente representativa. Esse tipo
de democracia funciona com o princípio do consenso presumido: você me elegeu há
três anos, então presumo que consentiu com a política que estou para implementar,
não importa se na época eu a mencionei ou não. Ela recompensa os líderes
“fortes e determinados” que tão frequentemente levam suas nações à catástrofe.
Um sistema que fortaleça a democracia representativa com democracia
participativa – assembleias de cidadãos, orçamento participativo, co-criação de
políticas públicas – tem mais possibilidades de recompensar os políticos
sensíveis e atenciosos. A representação proporcional, que impede governos com
apoio minoritário de dominar a nação, é outra salvaguarda potencial (embora não
seja garantia).
Ao repensar a política, é preciso desenvolver sistemas que
incentivem gentileza, empatia e inteligência emocional. É preciso nos
desvencilhar de sistemas que encorajem as pessoas a esconder sua dor e dominar
os outros.
*Jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino
Unido.
Publicado no site Outras Palavras
Tradução: Inês Castilho.
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