A reforma da Previdência: um tiro no pé, danação — já se
deram conta?
Tantos diálogos revelados e a reforma da Previdência vai
passando de cambulhada. Aliás, parece que é favas contadas. A reforma é cheia
de maldades. Reforma contra a população. Do vigilante ao policial, passando por
professores e quejandos. Até pensão por morte, de um salário mínimo, será
lixada. Portanto, para não dizer que não falei em Previdência, deixo registrada
minha crítica e algumas sugestões.
A reforma pega todo mundo, alguém dirá, e esse é o lado bom.
Resposta: não, todo mundo, não. Tem muita gente que não precisa se aposentar. O
andar de cima não se preocupa com descontos e diminuições de benefícios. Os
rentistas, banqueiros, grandes proprietários, apresentadores da Globo News
etc.: estes se lixam para coisas mundanas como aposentadoria. Ou fingem.
O bicho pega, mesmo, é para a população pobre, porque 82% da
conta será paga pelo Regime Geral da Previdência. Sim. Fato. Desse couro é que
sairá a maior parte das correias.
O relatório do deputado Samuel Moreira, de forma
inconstitucional, retira e reduz, de maneira muito dura, direitos
previdenciários de servidores públicos civis, sem que fosse aprovado um único
destaque em favor desses trabalhadores públicos, num verdadeiro rolo compressor
antidemocrático. Trabalhadores públicos: são os vilões do templo. Os
privilegiados. Vilões do novo tempo. Passaram o rodo. Só quem se deu bem foram
os militares e os parlamentares. No restante, o pau comeu.
Pleitos justos e razoáveis dos servidores públicos civis
relativos a regras de transição, ao cálculo da pensão por morte, à retirada do
caráter confiscatório das alíquotas previdenciárias, ao cálculo dos benefícios
previdenciários, dentre outros, não foram minimamente atendidos. Criou-se uma
narrativa de que a reforma da Previdência salvará o Brasil. O Brasil é ANP e
DNP (antes da nova Previdência e depois da nova Previdência).
Ora, prever uma suposta “regra de transição” em prejuízo
apenas aos servidores públicos civis com pedágio de 100% — que dobra o tempo
(sim, dobra o tempo) que resta para a obtenção da aposentadoria —, além da
observância de uma idade mínima — que esvazia ainda mais a “transição” —,
enquanto fixa regras bem mais suaves para os militares e os próprios
parlamentares, da ordem, respectivamente, de 17% e 30%, vai contra qualquer
discurso de tratamento igualitário ou “quebra de privilégios”, em total
discriminação aos servidores civis. Poxa. O inferno são os outros; os
privilegiados são os outros. Sempre os outros. Quando se trata da base
eleitoral, aí não é corporativismo. Humpty Dumpty passou pela Escola de
Chicago.
Mas o pior nem é esse. Há mais: falo da inconstitucional
desconstitucionalização de diversas normas, inclusive remetendo para lei
complementar a obrigatoriedade de extinção de todos os regimes próprios de
Previdência já existentes com a consequente migração obrigatória dos servidores
para o Regime Geral de Previdência Social, gerido pelo INSS. O ultraliberalismo
da nova ordem veio com a chibata em riste. E o látego pegou. Quem (sobre)viver
sofrerá.
Direitos adquiridos? Essa palavra não existe para o relator
nem para os deputados. Fazem blague, dizendo “privilégios adquiridos”. Estão
matando o conceito de lei no tempo (pobre memória de Limongi França) e o
princípio constitucional do ato jurídico perfeito.
Só que, na medida em que a narrativa — e, hoje, tudo é
narrativa — vigente é a da ANP/DNP, criou-se igualmente a tese de que não se
pode falar nada que contrarie a “nova Previdência”. Ser contra suas injustiças
é, dizem eles, ser “contra o Brasil”. Em face de qualquer crítica, a resposta
é: “então proponha!”. Certo. Trago algumas sugestões mais específicas.
Eis o resumo dos pontos que deveriam ser alterados:
regras de transição mais justas e isonômicas, que prevejam
pedágios semelhantes aos conferidos também para militares e parlamentares;
regras mais razoáveis para o cálculo da pensão por morte,
tendo em vista que a fixada no relatório pode reduzir em mais de 50% o atual
valor concedido, deixando cônjuges, filhos e familiares desprotegidos;
retirada do caráter confiscatório das alíquotas, que,
cumuladas com as do Imposto de Renda, podem reduzir, mensalmente, quase metade
do salário dos servidores públicos;
manutenção do cálculo dos benefícios previdenciários em 80%
das maiores contribuições;
supressão da desconstitucionalização que prevê, inclusive, a
imposição de extinção dos regimes próprios de Previdência com a consequente
migração obrigatória de todos os servidores públicos civis para o Regime Geral
de Previdência Social, gerido pelo INSS;
supressão de dispositivo que atinge direitos adquiridos ao
declarar nulas aposentadorias concedida a servidores públicos civis com base no
arcabouço legislativo vigente, sobretudo até a Emenda Constitucional 20/1998, o
que trará instabilidade e insegurança jurídica a milhares de aposentados.
Enfim, é o que tenho lido por aí. Tenho ouvido muitos discos
(sou do vinil!), conversado com pessoas, respondido a whatsapps, encontrando
vigilantes, policiais, juízes, promotores, professores... enfim, tenho
discutido com parlamentares que acreditam que a redenção está aí: a reforma ou
o armagedom. Até assinei uma petição pública tratando dos pontos acima.
Você sabia que o professor do fundamental ou segundo grau,
com 25 anos de trabalho, perderá 30%? Para receber 100% de benefício, terá que
trabalhar 40 anos? Não é uma maldade? Trabalha o tempo mínimo, ganha 60% do
valor. A cada ano, mais 2%. Resultado: tem de trabalhar 40 anos para chegar a
100%. Alguém dirá: que bom. Mais trabalho, mais ganhos. A ver, no futuro.
As aposentadorias ligadas ao Regime Geral da Previdência
terão redução de até 40%. Haverá corte de pensões. Viúvas podem perder 50% de
seus benefícios. Essa pode ser a maior maldade. Porque onde o sapato aperta é
nas viúvas que ganham o mínimo. Ou não é assim?
A narrativa é que a reforma da Previdência trará um novo
país. A narrativa sobre a reforma trabalhista também dizia que traria um “novo
país”... só que aumentou o desemprego. Quem disse que a reforma da Previdência
terá o condão de criar empregos? E desde quando esse tipo de reforma, ao lado
de prejudicar milhões de pessoas, faz surgir, do nada, novos postos de
trabalho? Esse é o busílis da questão. A Previdência é a nova panaceia. Qual
será a próxima? Ou será que realmente se pensa que O Mercado, essa entidade
metafísica, estará satisfeito?
Cálculos mostram que ninguém se aposentará com totalidade de
proventos. E a idade mínima é uma ficção, na conjugação com os percentuais a
serem recebidos na aposentadoria.
Resumo da ópera: cada um de nós tem uma tia arrependida;
cada um de nós tem parentes que, via neocaverna do uatisapi, viraram cientistas
políticos espalhando fake news.
Bom, agora a reforma da Previdência, a nova Previdência,
está pegando pesado. E as tias e os parentes, os neocientistas políticos, acham
que isso tudo é fake news. Até verem seu holerite.
Não é verdade que a reforma prejudicará gente como eles. É,
mesmo. Não é verdade (piscadela de olho!). Claro que não (nova piscadela de
olho!). Afinal, se é bom para O Mercado, é bom para mim. Certo? Eu, que tenho
um dinheirinho no banco, faço parte da elite financeira. Certo?
Frango, quando faz propaganda do frigorífico, só não sabe de
uma coisa: que ele é um frango! Comunique-se, pois, a má notícia ao frango. As
sombras não são sombras, gritava o filósofo na caverna... já os frangos são
frangos, ainda que não saibam disso!
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito
Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade
Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Via - Portal Vermelho
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