Quando em 2007 ainda cursando história na FAFIPA, fizemos eu e as companheiras de curso, Andréia Bruno, Conceição Aparecida e Eliete Filipini, um seminário sobre o cangaço. Na ocasião, fechei o seminário declamando o cordel "A chegada de Lampião no inferno", uma sátira, um clássico deste estilo de literatura que de forma cômica enaltece a bravura e o heroísmo de Lampião. A autoria é do cordelista José Pacheco.
Naquela ocasião, após salvas de palmas, alguns companheiros de sala quizeram a história em escrito ou um exemplar do livreto da editora Luzeiro que trazia a história e que ainda o tenho em minha biblioteca pessoal.
Antes tarde do que nunca, transcrevo aqui a história completa, para que os amigos e os amantes do gênero, deliciem-se com este clássico da literatura de cordel, escrita pelo grande José Pacheco.
A CHEGADA DE LAMPIÃO NO INFERNO
Por *José Pacheco
Um cabra de Lampião
Por nome Pilão Deitado
Que morreu numa trincheira
Em certo tempo passado
Agora pelo sertão
Anda correndo visão
Fazendo mal-assombrado
E quem foi quem trouxe a notícia
Que viu Lampião chegar
O inferno neste dia
Faltou pouco pra virar
Incendiou-se o mercado
Morreu tanto cão queimado
Que faz pena até contar
Morreu a mãe de Canguinha
O pai de Forrobodó
Três netos de Parafuso
Um cão chamado Cotó
Escapuliu Boca Insossa
E uma moleca nova
Quase queimava o totó
Morreram dez negros velhos
Que não trabalhavam mais
E um cão chamado Traz-cá
Vira-Volta e Capataz
Tromba Suja e Bigodeira
Um por nome de Goteira
Cunhado de satanás
Vamos tratar da chegada
Quando Lampião bateu
Um moleque ainda moço
No portão apareceu:
— Quem é você, cavalheiro?
— Moleque, eu sou cangaceiro
Lampião lhe respondeu
— Moleque, não! Sou vigia
E não sou seu parceiro
E você aqui não entra
Sem dizer quem é primeiro
— Moleque, abra o portão
Saiba que sou Lampião
Assombro do mundo inteiro
Então esse tal vigia
Que trabalha no portão
Dá pisa que voa cinza
Não procura distinção
O negro escreveu não leu
A macaíba comeu
Lá não se usa perdão
O vigia disse assim:
— Fique fora que eu entro
Vou conversar com o chefe
No gabinete do centro
Por certo ele não lhe quer
Mas conforme o que disser
Eu levo o senhor pra dentro
Lampião: — Vá logo
Quem conversa perde hora
Vá depressa e volte já
Eu quero pouca demora
Se não me derem ingresso
Eu viro tudo asavesso
Toco fogo e vou embora
O vigia foi e disse
A satanás no salão:
— Saiba, vossa senhoria
Aí chegou Lampião
Dizendo que quer entrar
E eu vim lhe perguntar
Se dou-lhe o ingresso ou não
— Não senhor, satanás disse
Vá dizer que vá embora
Só me chega gente ruim
Eu ando muito caipora
Estou até com vontade
De botar mais da metade
Dos que têm aqui pra fora
Lampião é um bandido
Ladrão da honestidade
Só vem desmoralizar
A minha propriedade
E eu não vou procurar
Sarna para me coçar
Sem haver necessidade
Disse o vigia: — Patrão
A coisa vai arruinar
Eu sei que ele se dana
Quando não puder entrar
Satanás disse: — Isso é nada
Convide aí a negrada
E leve os que precisar
Leve três dúzias de negros
Entre homem e mulher
Vá na loja de ferragem
Tire as armas que quiser
É bom escrever também
Pra virem os negros que tem
Mais compadre Lucífer
E reuniu-se a negrada
Primeiro chegou Fuxico
Com um bacamarte velho
Gritando por Cão de Bico
Que trouxesse o pau da prensa
E fosse chamar Trangença
Na casa de Maçarico
E depois chegou Cambota
Endireitando o boné
Formigueiro e Trupizupe
E o crioulo Quelé
Chegou Benzeiro e Pacaia
Rabisca e Cordão de Saia
E foram chamar Bazé
Veio uma diaba moça
Com a calçola de meia
Puxou a vara da cerca
Dizendo: — A coisa está feia
Hoje o negócio se dana
E disse: — Eita baiana
Agora a ripa vadeia
E lá vai a tropa armada
Em direção do terreiro
Pistola, faca e facão
Clavinote e granadeiro
E um negro também vinha
Com a trempe da cozinha
E o pau de bater tempero
Quando Lampião deu fé
Da tropa negra encostada
Disse: — Só na Abissínia
Oh! Tropa preta danada
O chefe do batalhão
Gritou: — As armas na mão
Toca-lhe fogo, negrada!
Nessa voz ouviu-se tiros
Que só pipoca no caco
Lampião pulava tanto
Que parecia macaco
Tinha um negro nesse meio
Que durante o tiroteio
Brigou tomando tabaco
Acabou-se o tiroteio
Por falta de munição
Mas o cacete batia
Negro embolava no chão
Pau e pedra que pegavam
Era o que as mãos achavam
Sacudiam em Lampião
— Chega, traz um armamento
Assim gritava o vigia
Traz a pá de mexer doce
Lasca os ganchos de Caria
Traz o birro de Maçau
Corre vai buscar um pau
Na cerca da padaria
Lucífer mais satanás
Vieram olhar do terraço
Todos contra Lampião
De cacete, faca e braço
O comandante no grito
Dizia: — Briga bonito
Negrada, chega-lhe o aço
Lampião pode apanhar
Uma caveira de boi
Sacudiu na testa dum
Ele só fez dizer: — Oi!
Ainda correu dez braças
E caiu enchendo as calças
Mas eu não sei de que foi
Estava a luta travada
Já mais de hora fazia
A poeira cobria tudo
Negro embolava e gemia
Porém Lampião ferido
Ainda não tinha sido
Devido a sua energia
Lampião pegou um seixo
E o rebolou num cão
A pedrada arrebentou
A vidraça do oitão
Saiu um fogo azulado
Incendiou-se o mercado
E o armazém de algodão
Satanás com esse incêndio
Tocou um búzio chamando
Correram todos os negros
Os que estavam brigando
Lampião pegou olhar
Não viu mais com quem brigar
Também foi se retirando
Houve grande prejuízo
No inferno nesse dia
Queimou-se todo dinheiro
Que satanás possuía
Queimou-se o livro de pontos
Perderam seiscentos contos
Somente em mercadorias
Reclamava satanás:
— Horror maior não precisa
Os anos ruins de safra
E mais agora essa pisa
Se não houver bom inverno
Tão cedo aqui no inferno
Ninguém compra uma camisa
Leitores, vou terminar
Tratando de Lampião
Muito embora que não posso
Vos dar a resolução
No inferno não ficou
No céu também não chegou
Por certo está no sertão
Quem duvidar nessa história
Pensar que não foi assim
Querer zombar do meu sério
Não acreditando em mim
Vá comprar papel moderno
Escreva para o inferno
Mande saber de Caim
Biografia:
José Pacheco da Rocha, ou José Pacheco, como é mais
conhecido, nasceu no Município de Corrientes, em Pernambuco, residindo algum
tempo na cidade de Caruaru, naquele mesmo estado.
Viveu muitos anos em Maceió, Alagoas, vindo a falecer
naquela cidade, provavelmente em 1954. Folhetos de sua autoria foram publicados
pela Luzeiro Editora, de São Paulo. Recentemente, a Editora Queima-Bucha, de
Mossoró (RN), publicou o folheto A intriga do cachorro com o gato. Além disso,
há edições de suas obras pela Catavento, de Aracaju (SE); Lira Nordestina, de
Juazeiro do Norte (CE); Coqueiro, de Recife (PE), e por outras editoras.
Seus folhetos mais importantes são História da princesa
Rosamunda ou a morte do gigante e A chegada de Lampião no inferno. As histórias
de gracejos são um dos aspectos marcantes dos cordéis de José Pacheco,
considerado um dos maiores cordelistas satíricos do Brasil. Mas o poeta se
dedicou também a outros temas, como histórias de bichos, religião e romances.
Referências
▪
GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Secretaria do Estado de Ciência e Cultura
e Departamento de Cultura – INEPAC/Divisão de Folclore. O cordel no Grande Rio.
Rio de Janeiro: 1978.
▪
LOPES, Ribamar. Literatura de cordel: antologia. Fortaleza ((CE): 1983, BNB.
▪
PROENÇA, Manoel Cavalcanti (Org.). Literatura popular em verso: antologia. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Rio de
Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1986.
▪
CARDOSO, Tânia Maria de Souza Cardoso. Cordel, cangaço e contestação: uma
análise dos cordéis "A chegada de Lampião no inferno" (José Pacheco
da Rocha) e "A chegada de Lampião no céu" (Rodolfo Coelho
Cavalcante). Rio Grande do Norte: Coleção Mossoroense, 2003.
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