Esta obra visa sanar uma deficiência na literatura de
divulgação científica do país, a de um livro atualizado, em língua portuguesa,
sobre evolução humana. O último foi publicado há 16 anos e é uma tradução de um
autor norte-americano, que foi, inclusive, revista por Walter Neves (Evolução
humana, de Roger Lewin, São Paulo, Atheneu, 1999).
Este novo livro surgiu a partir de um curso de
pós-graduação, sendo os próprios alunos, auxiliados pelos seus docentes, os
autores dos capítulos. Não há nele, no entanto, a heterogeneidade tão comum em
obras multiautorais, pelo que seus organizadores estão de parabéns: o livro é
enxuto e altamente didático.
O livro tem uma apresentação do jornalista Reinaldo José
Lopes, uma introdução e sete capítulos. Walter Neves participou diretamente da
elaboração de dois capítulos, enquanto Miguel Rangel Junior e Rui Murrieta
contribuíram no preparo de um cada. Além disso, Rangel Junior foi responsável
por 65 das 91 figuras. Essas ilustrações são mais um aspecto positivo da obra,
sendo em boa parte reproduções da maior coleção de réplicas fósseis da América
Latina, a coleção Thomas van der Laan. Além deles, 14 outros pesquisadores
participaram na redação dos textos, que se originaram no Laboratório de Estudos
Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo, núcleo de excelência e
reconhecimento internacional por pesquisas de ponta na área.
Duas outras características positivas são: (a) a seção O que
há de novo no front?, em que são abordadas novidades que podem levar a mudanças
significativas no rumo desses estudos e (b) referências a 36 obras gerais sobre
os assuntos abordados, 34 de autores estrangeiros, mas duas publicadas em
português: Chimpanzés não amam! Em defesa do significado, de Eliane S. Rapchan
e Walter A. Neves (Revista de Antropologia (USP), v. 48, 2005); e Pegando fogo:
como cozinhar nos tornou humanos, de Richard Wrangham (São Paulo: Zahar, 2010).
Para compreender a caminhada do título do livro, é
necessária uma longa incursão no tempo. É bom destacar que nossa espécie é
especial apenas em determinados aspectos. A comparação taxonômica nos coloca
dentro de uma ordem especial, os primatas, sendo os chimpanzés os nossos
parentes mais próximos. Mas, como surgiram os primatas? Aparentemente, eles
eram apenas um dos muitos grupos de pequenos mamíferos que passaram a explorar
os vários nichos eco- lógicos abertos com a extinção dos dinossauros. O uso de
ferramentas, que alcançou sua expressão mais alta no Homo sapiens, não é
privilégio da espécie: elas são utilizadas por outros primatas e,
surpreendentemente, estudos recentes indicam que os corvos são tão inteligentes
quanto os primatas. Mais uma desilusão para quem imaginava uma diferença
qualitativa entre humanos e não-humanos.
A radiação evolutiva (fenômeno pelo qual se formam, em curto
período de tempo, várias espécies a partir de um mesmo ancestral) que deu
origem aos primatas ocorreu há 10 milhões de anos, e existem pelo menos três
hipóteses para explicar seu surgimento: (a) arborícola: a mudança da vida no solo
para as árvores colocou em movimento pressões seletivas que culminaram no
primata ancestral; (b) predação visual: a caça de pequenas presas necessitou de
um aparelho visual especializado e boa coordenação motora; e (c) a aparição das
angiospermas, plantas frutíferas importantes para a dieta desses organismos
ancestrais. Possivelmente todos esses fatores agiram em conjunto para
condicionar essa nova linhagem evolutiva.
Quando surgiu a capacidade de comportamento humano moderno?
Calcula-se que ela já estaria pronta há 170 mil anos, e é por essa época que
aparecem os neandertais, linhagem que só se extinguiu há 30 mil anos e que deve
ter convivido com o homem anatomicamente moderno. Cerca de 200 mil anos atrás
surgiu o Homo sapiens, originado na África, de onde se espalhou por todo o
mundo. Em termos de indústria lítica, costuma-se relacionar dois períodos: o
Paleolítico e o Neolítico. No classificado como Paleolítico Superior, há 50 mil
anos, houve uma transição fundamental: a vida e os objetos passaram a ter
significados abstratos.
Por outro lado, no Neolítico, iniciado há 12 mil anos,
ocorreram revoluções importantes, que resultaram na domesticação de plantas e
animais, enquanto a vida social tornava-se gradativamente mais complexa.
Desenvolveram-se, então, articulações sociopolíticas e ecológicas, que
condicionaram a origem de estados e impérios. Isso nos conduz à época atual.
Somos uma espécie extremamente dominadora, que tem modificado de maneira muitas
vezes irreversível o ambiente. Mesmo sociedades com economias simples alteraram
a paisagem da região, levando ao chamado ‘imperialismo ecológico’. Espera-se
que, com um desenvolvimento tecnológico ecologicamente mais consciente,
alcancemos uma situação de equilíbrio com o ambiente e de eliminação (ou pelo
menos diminuição) das desigualdades sociais que hoje afligem indivíduos e
nações por toda parte.
A única falha deste livro é a ausência de um índice
remissivo de assuntos e autores, que tornaria uma busca específica mais
eficiente e rápida. Mas, pelo que foi mencionado antes, esta obra deve ser
leitura obrigatória nos cursos universitários de graduação e pós-graduação, bem
como para o leigo inteligente, que procura se informar sobre a nossa fascinante
história biológica e cultural. Vou adotá-lo na disciplina que ministro na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Assim caminhou a humanidade. Walter Alves Neves, Miguel José
Rangel Junior e Rui Sergio S. Murrieta (Org.). São Paulo, Palas Athena
*Francisco M. Salzano - Departamento de Genética - Instituto
de Biociências - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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