Faz 35 anos da derrota para a Itália na Copa de 1982, mas o
Brasil de Telê, Zico, Sócrates e Falcão provou que futebol não é apenas
resultado.
A primeira Copa do Mundo da qual tenho lembrança é a da
Argentina, 1978. Meu pai apareceu um dia em casa com um televisor novo com um
painel repleto de botões, parecido aos da cabine de comando da Estrela da
Morte, de Star Wars. Foi a minha primeira Copa do Mundo colorida. No dia da
final, olhava surpreendido aos torcedores argentinos rebufando de frio como um
cardume de peixes recém-capturados nas redes do gol, enquanto na minha cidade,
Sevilha, no extremo sul da Europa, sofria-se um dos dias mais quentes daquele
verão. Não podia entender aquela diferença horária e térmica. Aos seis anos,
acreditava que entre minha casa e o estádio portenho não havia mais que uma
dúzia de ruas, em vez de milhares de quilômetros de distância.
Sevilha, precisamente, foi quatro anos mais tarde a primeira
sede da seleção brasileira na Copa do Mundo da Espanha. Presenciei a estreia da
canarinha diante da antiga União Soviética (URSS), com uma cena de discórdia
doméstica entre minha mãe e meu pai, mais interessado no rebolado das passistas
brasileiras que nas exibições de Zico, Sócrates, Falcão ou Toninho Cerezo. A
reconciliação só aconteceu quando Éder marcou o gol da vitória contra Dasayev,
goleiro da URSS.
O segundo jogo que vi foi Brasil e Nova Zelândia. Zico
marcou dois golaços, mas daquela noite ficou o incidente de uma pipa branca
empinada por um torcedor, com extraordinária graça e habilidade. Em várias
ocasiões, a pipa pousou no campo de jogo e, assim que o juiz se agachava para
pegar o objeto inerte que descansava sobre o gramado, revivia, serpenteava
durante alguns segundos entre as pernas do colegiado e despertava novamente o
voo, desenhando nos espectadores um sorriso de chiste de cinema mudo.
Nessa fase da Copa, nas peladas do pátio da escola, não
sabíamos que jogador escolher. Todos queríamos ser Zico, Sócrates, Júnior ou
Falcão. O destino teceu suas malhas ao colocar o Brasil com a Argentina e a
Itália na fase seguinte. O Brasil derrotou claramente os seus rivais
sul-americanos com a mesma exibição de jogo de passe e toque que havia
demonstrado nas partidas anteriores. Uma falta de Éder bateu na trave. Poderia
ter sido um dos gols mais bonitos da história das Copas.
A eterna Itália da disciplina tática, forte na marcação e do
catenaccio, seria o último obstáculo antes das semifinais. O embate foi em
Barcelona, no velho estádio à beira da estrada de Sarriá. Eu não voltei a ver o
jogo. Nunca quis que a realidade contaminasse minhas lembranças.
Além de um magnífico goleiro e uma defesa prodigiosa, a
Itália tinha um meio de campo especialmente técnico. Naquele tempo, também
queria ser Bruno Conti, Antognoni e, claro, o miúdo Paolo Rossi, contraponto do
tanque Serginho, cuja falta de cadência e elegância destoavam no jogo coral
brasileiro.
O requebrado de Falcão, que desorientou em bloco a defesa
azzurra no segundo gol do Brasil, parecia ter fechado o jogo. Para a seleção
canarinha era suficiente o empate. Mas Paolo Rossi, com a picardia de um
predador de área, caçou uma bola e eliminou o Brasil. O que mais admirava nessa
seleção de Telê Santana era seu toque e sua elegância, todos dominavam e
conduziam a bola com a cabeça erguida.
Moviam-se majestosamente, como personagens de um videogame,
bem antes de existir a tecnologia digital. Sabiam que eram únicos e favoritos.
Eram como os verdadeiros heróis que lutam com orgulho, mas sem altivez. Tanto
na vitória quanto na derrota.
Depois do apito final, calou-se o som das batucadas e
marchinhas. A enxurrada de bandeiras, cartazes e a pipa, definitivamente sem
vida, deixaram na arquibancada de Sarriá uma borra de final de carnaval.
Um casal chorava abraçado perto da marca de escanteio de
onde veio o gol da vitória italiana. A moça usava uma camiseta branca, sem
mangas. A polícia espanhola daquela época vestia-se de marrom. Essa foi a cor
do final daquela tarde de verão em Barcelona, um marrom ácido e turvo de leite
derramado.
De fora, o estádio de Sarriá parecia uma caixa de
ferramentas aberta. Quando foi demolido, as arquibancadas desmoronaram,
sepultando o gramado como as ondas que engolem aos marinheiros náufragos. Não
existem vestígios do antigo estádio, nada recorda esse jogo. É preciso
mergulhar na memória para reencontrar esses dias azuis e amarelos da infância.
Um conjunto habitacional e um parque ocupam o lugar do
antigo terreno de jogo. No final da tarde, na mesma hora daquele encontro,
talvez no lugar onde Dino Zoff fez a defesa mais importante da vida, alguns
meninos correm imitando os gestos de seus ídolos ao festejar um gol, com as
mochilas escolares e os agasalhos demarcando as traves. O sangue que arde em
seus joelhos ralados é o mesmo que leva ao desespero as mães depois de um jogo
improvisado, seja em uma pracinha de Nápoles ou em uma praia do Rio de Janeiro.
Dizem que no futebol o que vale é o resultado final, mas não
é bem assim. Ninguém se lembra da Alemanha ganhadora da Copa de 1954 e sim da
Hungria de Puskas, Kocsis e Higdekuti, ou da Holanda de Cruyff, seleções que
não conquistaram a Copa.
Sem ignorar os méritos de uma Itália prática e fabulosa, que
ganhou da Alemanha a Copa de 1982, meu coração e minha memória estão com aquela
seleção brasileira. Sou torcedor de um time cujo lema é Salve o Betis, mesmo
que perca (Viva el Betis, manque pierda). Muitos torcedores concordam com esse
pensamento. Como no faroeste clássico, entre o resultado e a lenda, preferem
ficar com a lenda.
Fonte: El Pais
Via – Portal Vermelho
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