João da Cruz e Sousa nasceu numa fazenda em Nossa Senhora do
Desterro (SC), em 1861, filho de escravos que receberam alforria. Poeta e
jornalista, introdutor do Simbolismo no Brasil, dirigiu o jornal Tribuna
Popular, no qual publicou artigos contra a escravidão e o racismo.
Dois conhecidos retratos de Cruz e Sousa: Poeta foi reconhecido pelas principais vozes de nossa historiografia literária |
Por Claudio Daniel
Casou-se com Gavita Gonçalves, com a qual teve quatro
filhos, todos mortos precocemente, de tuberculose, o que levou a mãe à loucura.
A vida trágica do poeta, que revolucionou a literatura brasileira, encerrou-se
em 1898, com apenas 36 anos de idade.
Cruz e Sousa, considerado o maior poeta do movimento
simbolista no Brasil, publicou em 1893 o livro Broquéis (1893) introduziu na
poesia brasileira o novo estilo. Esse livro estranho, inventivo, de uma beleza
nervosa, é diferente de tudo o que foi publicado antes, entre nós. Conforme
José Aguinaldo Gonçalves, o poeta simbolista, “fascinado pelo mistério e pelo
caráter fluídico das coisas, aprofundou o universo das sugestões, da
ambiguidade, da abstração mística, do sentimento sensorial do mundo. Para isto,
vai criar um universo vocabular próprio, voltado para a neblina, o onírico, o
vaporizante, o lactescente, o litúrgico, o etéreo, o plangente, o soluçante, o
errante, o luminoso, as brumas e o encantatório transcendente”.
O poeta se voltava contra a objetividade naturalista, a
descrição minuciosa de detalhes, em favor de uma construção de imagens “vagas,
fluidas, cristalinas”, próximas a um certo abstracionismo. Cruz e Sousa seguiu,
em sua mirada de miragens, a pista indicada por Mallarmé: “Nomear um objeto
significa eliminar três quartos do prazer de adivinhá-lo. Sugerir, eis o
sonho”. Essa é uma linha paralela à técnica de acordes isolados na música de
Débussy e ao pontilhismo de Pissaro e Seurat, na pintura, que prenunciavam a
superação da tonalidade e do figurativismo por novos modos de composição.
O talento plástico de Cruz e Sousa é evidente sobretudo em
Missal, coletânea de poemas em prosa publicada no mesmo ano que Broquéis.
Assim, na peça intitulada Navios, o poeta nos diz: “Praia clara, em faixa
espelhada ao sol, de fina areia úmida e miúda de cômoro. Brancuras de luz da
manhã prateiam as águas quietas, e, à tarde, coloridos vivos de ocaso as
matizam de tintas rútilas, flavas, como uma palheta de íris”. Em outra peça,
Bêbado, lemos: “O mar tinha uma estranha solenidade, imóvel nas suas águas, com
uma larga refulgência metálica sobre o dorso. Da paz branca e luminosa da lua
caía, na vastidão infinita das ondas, um silêncio impenetrável. E tudo, em
torno, naquela imensidade de céu e mar, era a mudez, a solidão da lua...”. O
efeito cromático é mais eficaz com o recurso de sonoridades raras, pois é a
música que melhor expressa o sentimento de vago, difuso, diáfano, despertando a
intuição e o sonho. Para Edgar Allan Poe, poesia é a “construção precisa do
impreciso”, “criação rítmica da Beleza”, e, seguindo nessa trilha, Verlaine irá
reivindicar “a música antes de tudo”. Cruz e Sousa, afinado com seus mestres
espirituais, irá fazer da melopéia um dos pilares de sua filosofia da
composição e o fio condutor de todas as relações sinestésicas.
Em Outras Evocações, o poeta nos diz: “O estilo é o sol da
escrita. Dá-lhe eterna palpitação, eterna vida. Cada palavra é como que um
tecido do organismo do período. No estilo há todas as gradações de luz, toda a
escala dos sons. (...) A palavra tem a sua autonomia; e é preciso uma rara
percepção estética, uma nitidez visual, olfativa, palatal e acústica
apuradíssima para a exatidão da cor, da forma e para a sensação do som e do
sabor da palavra”. As palavras, em sua corporalidade, e não apenas como
conceitos, têm força de expressão mágica, evocatória, como notou Mallarmé; por
essa razão, diz o autor de Brise Marine, o poeta deve buscar “o verso que, de
diversos vocábulos, refaz uma palavra total, nova, estranha à língua e como que
encantatória”. É dessa construção do estranhamento, do inusitado, que advém a
experiência do êxtase estético, que Joyce chamava de epifania. Cruz e Sousa,
como um taumaturgo morfológico, criou, em seu cadinho de quintessências, um
novo vocabulário, mesclando termos em neologismos insólitos, tais como:
absíntica, nirvânica, pantérico, tantálico, beethovínica, estradivário,
torcicolosamente. Além disso, assimilou um léxico luxuoso e alucinado, com
laivos gongorinos: neblinoso, alampadário, flamívona, alabastrino, espumaroso,
empurpuresce. Com esse livro mágico de sortilégios e encantações, Cruz e Sousa
conduziu aliterações (“suspira, sofre, cisma, sente, sonha”), anagramas (“areia
úmida e miúda”), paronomásias (“torvas e turvas”, “gralha, grasma e grulha”),
assonâncias (“Das tuas asas serenas”), anáforas (“só fúria, fúria, fúria,
fúria, fúria”) e outras magias com a habilidade de um mestre consumado.
A poética de Cruz e Sousa não teve uma evolução estética
linear; ela oscilou entre a abstração e a caricatura, a elipse e o discurso, a
brevidade e o jorro verbal, o gosto refinado e o kitsch. De Broquéis a Faróis,
o poeta mudou a sua maneira de olhar para os objetos, e o resultado é uma nova
forma de fanopéia, menos etérea, mais densa. Como nos diz Roger Bastide, o
poeta “tinha começado pela dissolução das formas exteriores dos objetos,
diluindo-os na bruma do sonho, e termina pela volta à matéria, porém matéria
sutilizada e preciosa, cintilação de cristal ou de joia, certamente encarnação
da Forma inteligível, mas encarnação em algo que nada mais tem de sensual e que
nada retém do calor do concreto. Destruição das formas (no plural) nas
cerrações da noite, cristalização da Forma (no singular) ou solidificação do
espiritual numa geometria do translúcido, tais são, afinal, os dois grandes
processos antitéticos e complementares ao mesmo tempo, que permitiram a Cruz e
Sousa trazer aos homens a mensagem da sua experiência e apresentá-la em poesia
de beleza única, pois que é acariciada pela asa da noite e, todavia, lampeja
com todas as cintilações do diamante”.
Faróis, publicado em 1900 (edição póstuma), é um livro de
imagens sombrias que têm a marca do triste fado do poeta: Cruz e Sousa, o filho
de escravos, nascido na cidade de Desterro (hoje Florianópolis), sofreu o
preconceito racial, a miséria e, nos seus últimos anos, a morte do pai e a
loucura da esposa, Gavita. O pessimismo do autor, seu “tantalismo dantesco”,
expressou-se aqui em poemas longos, narrativos, retórico-discursivos, com tinturas
expressionistas que recordam por vezes a poesia de Trakl e a pintura de Munch:
“Os miseráveis, os rotos/ são as flores dos esgotos./ São espetros implacáveis/
os rotos, os miseráveis”; “Coalha nos lodos abjetos/ O sangue roxo dos fetos”;
e, com a terrível veemência dos freaks, dos danados: “Vermes da inveja, a lesma
verde e oleosa,/ Anões da Dor torcida e cancerosa,/ Abortos de almas a sangrar
na lama”.
O tom realista, sarcástico, que abusa do grotesco,
aproxima-se, por vezes, do kitsch. O uso excessivo de adjetivos, por sua vez, é
outro aspecto a ser observado: em Música da Morte, por exemplo, há nada menos
que 20 adjetivos nos 14 versos do soneto! Faróis é um livro irregular; não tem
a mesma alta qualidade de Broquéis. É o testemunho dramático dos insucessos de
seu autor, mais do que ninguém, um “gauche na vida”. Deve-se destacar, no
entanto, o poema de abertura, Recolta de Estrelas, dividido em dísticos de sete
sílabas, em que o poeta usou nada menos que 42 rimas diferentes; o poema de
construção semelhante intitulado Litania dos Pobres; Tédio, talvez seu poema
mais próximo ao expressionismo; o conhecido Violões que Choram; e Flores da
Lua, em que há ecos distantes de Laforgue (que escreveu Fauna e Flora da Lua).
Faróis, apesar dos desníveis de escritura, é um livro que merece ser lido, pois
é a gênese da mórbida e bela antiepopéia de Augusto dos Anjos.
Em Últimos Sonetos, talvez a mais bem acabada de suas obras,
o poeta, já fatigado da existência, aborda o anseio de união mística com o
Absoluto, Nirvana búdico, que representa o fim do ciclo de intermináveis
transmigrações. Neste livro admirável, Cruz e Sousa levou à perfeição o soneto
como gênero literário, com uma precisão técnica impecável e uma pureza de
expressão raramente igualadas por outros nomes da poesia de língua portuguesa.
É notável, nesta obra formalmente tão rica, a reconciliação do poeta com o
quinhentismo camoniano e os modos do barroco, em versos como: “Almas vis, almas
vãs, almas escuras”, “O infinito gemido dos gemidos” e, sobretudo, o quarteto
inicial de Flor Nirvanizada: “Ó cegos corações, surdos ouvidos,/ Bocas inúteis,
sem clamor, fechadas,/ Almas para os mistérios apagadas,/ Sem segredos, sem eco
e sem gemidos”. Precisamos citar, também, Alucinação, soneto que é quase uma
antecipação de Pessoa: “Ó solidão do Mar, ó amargor das vagas,/ Ondas em
convulsões, ondas em rebeldias,/ Desespero do Mar, furiosa ventania,/ Boca em
fel dos tritões engasgada de pregas”. O Poeta Negro, aqui, transcendendo as
cortinas neblinadas do Simbolismo, alcançou um timbre universal.
A fortuna crítica do poeta é póstuma, mas ele foi
reconhecido pelas principais vozes de nossa historiografia literária. Sílvio
Romero considerou Cruz e Sousa “o melhor poeta que o Brasil tem produzido” e “o
ponto culminante da lírica brasileira após quatrocentos anos de existência” (e,
portanto, superior a Castro Alves, Gonçalves Dias e Olavo Bilac). Também José
Veríssimo expressou seu respeito pela “flor singular, de rara distinção e
colorido, de perfume extravagante mas delicioso” da poesia de Cruz. Por fim,
obteve o reconhecimento internacional, como demonstra o ensaio O Drama de Cruz
e Sousa, de Bastide, que coloca o Poeta Negro ao lado de Mallarmé e Stefan
George como a tríade máxima do Simbolismo.
A poesia de Cruz e Sousa é a retorta alquímica de onde
provêm as líricas saturnais de Alphonsus de Guimaraens, Pedro Kilkerry, Ernâni
Rosas, Maranhão Sobrinho e Augusto dos Anjos; e está presente na primeira fase
de Manuel Bandeira, no místico surrealismo de Murilo Mendes e Jorge de Lima e
nas modernas experiências intersemióticas, que levaram o princípio da
sinestesia, filtrado pelas teorias de Charles Peirce, aos meios eletrônicos de
comunicação, como o vídeo e o computador. João da Cruz e Sousa, o poeta do
Desterro, não é um esqueleto esquecido na tumba de seus ancestrais, mas um dos
inventores de nossa poesia moderna.
Via – Portal Vermelho
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