Biografia da viúva do presidente João Goulart mostra
aspectos menos conhecidos de um período turbulento da história do país, do
ponto de vista de uma mulher discreta e determinada.
Publicado por Vitor Nuzzi, da RBA
São Paulo – Maria Thereza era uma adolescente criada na
fazenda quando, em 11 de dezembro de 1950, recebeu a missão de entregar um
envelope a um dos mais conhecidos moradores de São Borja: João Goulart, mais
conhecido como Jango, 17 anos mais velho. “Simpático, sorridente e bonito”,
contou às amigas, que esperavam pelo relato. Em um diário, guardou para si a
impressão de ter visto também um menino mimado. Começa assim a narrativa de Uma
Mulher Vestida de Silêncio – A Biografia de Maria Thereza Goulart (Record),
escrita pelo jornalista Wagner William. Obra de quase 650 páginas que narra a
trajetória de uma mulher que viveu de perto o poder e a perseguição, o amor e a
solidão, em um dos períodos políticos mais turbulentos da história brasileira.
João e Maria casaram-se em abril de 1955. Ficaram juntos até
6 de dezembro de 1976, data da morte do ex-presidente, no interior de
Argentina. Nesse intervalo de duas décadas, um golpe tirou Jango do poder e desestruturou
a família. Em 1964, o casal tinha dois filhos: João Vicente, nascido em 1956, e
Denize, que veio no ano seguinte. Tiveram de sair às pressas do Brasil. Maria
Thereza e as crianças, ainda sem o pai, chegaram ao Uruguai em 3 de abril. A
menina queria saber se lá tinha banana e o garoto, de que cor era aquele país.
“Não sei, filho. Acho que é azul.”
Em apenas dois dias, ela saíra com os filhos de Brasília
para Porto Alegre, da capital gaúcha para São Borja e de lá para o Uruguai,
tendo como primeiro destino uma casa isolada em Solymar, uma cidade litorânea.
Maria Thereza chegou a apelar para uma vizinha, que não conhecia, para pedir
comida, que entregou biscoitos, doces e leite. Trazia apenas uma mala – e não
19, como se chegou a dizer, em uma das várias maledicências de que foi alvo.
Com pesquisa, Wagner William encontrou reportagem do jornal uruguaio La Mañana,
em 4 de abril de 1964, mostrando a chegada da família em um pequeno avião, que
jamais comportaria tamanha bagagem.
Outra “notícia”, esta bem mais grave, punha a primeira-dama
em suspeita da morte do marido, com suposto uso do letal gás sarin. “Quem
checa?”, questiona o autor, que na última quarta-feira (29) participou de
debate na sede Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, ao lado do psicanalista
e escritor Jacob Pinheiro Goldberg, autor de um texto de apresentação do livro.
Na plateia, Eugenia Zerbini, filha da advogada Therezinha, ativista de direitos
humanos, e do general Euryale Zerbini, cassado por se opor ao golpe.
Sempre contextualizada, a obra é recheada de histórias
íntimas do casal, mostrando, por exemplo, que Jango cochilou durante uma sessão
do filme E o Vento Levou, para indignação de Maria Thereza, a quem alegou
cansaço. Ou quando, já no Uruguai, ela se surpreendeu vendo o marido colocar
terra na boca – ele procurava um lugar para plantar arroz e queria testar a
acidez do terreno. No Vaticano, os pais ficaram constrangidos porque, em plena
audiência com o Papa João XXIII, em 1959, o pequeno João Vicente precisou ir ao
banheiro, levado com urgência pelo assessor de imprensa do então
vice-presidente, Raul Ryff. Outra história saborosa é a do presente que Maria
Thereza recebe de Frank Sinatra: uma carta e discos do cantor norte-americano.
Ela não conteve o entusiasmo e acabou interrompendo uma reunião do presidente
com alguns de seus ministros.
Renúncia e crises
Jango já tinha sido deputado, secretário estadual e ministro
do Trabalho, sempre pelo PTB de Getúlio Vargas. Vice de Juscelino Kubitschek em
1955, foi reeleito vice em 1960, em uma época de votações separada para vice e
para presidente – o eleito foi Jânio Quadros (PDC). Mas a relativa
tranquilidade estava prestes a acabar. Em agosto de 1961, Jango cumpria visita
oficial na China e Maria Thereza estava com as crianças na França, como
hóspedes comuns. Até a manhã do dia 26, quando ela chegou para o café da manhã,
de biquíni e saída de praia, e foi aplaudida ao entrar no restaurante. Só
entendeu quando o dono do hotel a avisou que ela era a nova primeira-dama do
Brasil. No dia anterior, Jânio havia renunciado. Mas Jango, mesmo sendo o vice
constitucional, enfrentou um veto militar e só pôde assumir depois de uma
improvisada “solução” parlamentarista.
O jornalista retrata vários momentos tensos do governo
Jango, como o Comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março,
a menos de um mês do golpe. O cardiologista Euryclides de Jesus Zerbini pediu a
Jango que adiasse o evento, por causa de suas condições de saúde. O presidente
disse que era “questão de honra” comparecer. Ali, ele anunciaria várias das
reformas de base. Havia também boatos sobre um atentado. Tamanho clima fez
Maria Thereza esquecer seu pânico da multidão e decidir comparecer, para ficar
ao lado do marido no palanque, em imagem que ficaria para a posteridade e está
na capa do livro. Às pressas, ela comprou um vestido azul-turquesa na loja My
Fair. Mas avisou o estilista Dener, precursor da moda no Brasil, de quem foi
amiga próxima. Ele só ficou tranquilo quando soube que não era marrom e, sem
saber da escolha da primeira-dama, sugeriu justamente a cor azul-turquesa.
Durante o debate, Wagner William chama a atenção para esse
momento, que considera simbólico: pela primeira vez, uma mulher está presente
no palanque de um grande comício no país. Maria Thereza era uma mulher
discreta, mas decidida. Dirigia muito bem e sabia atirar. Ela também ocupou a
presidência da Legião Brasileira de Assistência (LBA), mas deixou o cargo por
não querer ser apenas um “ornamento”.
A beleza de Maria Thereza sempre foi um prato cheio para a
mídia. O autor da biografia conta que ela foi um foi um dos primeiros alvos da
“onda paparazzi” no Brasil, retratada no filme A Doce Vida, de Federico
Fellini. Também estampou capas de revista. Recebeu elogios além da conta do
príncipe Philip, marido da rainha Elizabeth, e principalmente do presidente da
extinta Iugoslávia Josip Broz, o Tito.
Longe das câmeras, havia uma mulher zelosa com a família e
pés no chão – ao contrário do Jango, nunca contou com o retorno ao Brasil.
Viveu momentos felizes e amargos no exílio. Foi presa algumas vezes, e em uma
dessas ocasiões foi obrigada a tirar a roupa. O jornalista revela poemas
escritos por Maria Thereza, reveladores de seu estado de espírito: “Ando
buscando el amigo/ Porque estoy sola/ Y tengo ganas de llorar“.
Os capítulos do livro – resultado de um trabalho de 12 anos
e mais de uma centena de entrevistas – fazem menção a canções da música popular
brasileira. “Na época que Maria Thereza considera a mais feliz de sua vida, com
dois filhos pequenos em Copacabana, a trilha sonora do Brasil era a Bossa Nova.
Tom Jobim ‘ficava na minha orelha, cantando sem parar’ enquanto eu escrevia.
Usei isso em um capítulo, conforme ia escrevendo e as épocas iam mudando,
mudava também as ‘músicas que tocavam em minha cabeça’. Decidi então nomear
quase todos os capítulos com trechos das dessas canções”, explica o autor. Um
bom exercício é procurar trechos de música “escondidos” nas páginas de Uma
Mulher Vestida de Silêncio, panorama da história do Brasil pela ótica de um
mulher que, assim como seu marido, passou muito tempo excluída das narrativas oficiais.
Isso ajuda a entender a escolha de Wagner William, de 50
anos, por seus personagens – ele já havia publicado, em 2005, O Soldado
Absoluto, sobre o marechal Henrique Teixeira Lott. “Eu queria fazer justiça ao
Lott, queria fazer justiça à dona Maria Thereza. A principal motivação é fazer
justiça.”
Você diz que um dos principais objetivos, com o livro, é
fazer justiça. Maria Thereza, assim como Jango, ainda não têm seu devido lugar
na História brasileira?
Acredito que eles estejam no lugar “errado” na História.
Sobre Jango, repete-se a ladainha de presidente fraco e inepto. Mas qual foi o
único presidente a assinar e seguir em frente com as reformas? É fácil explicar
essa desvalorização do governo Jango: a ditadura precisava justificar sua
chegada ao poder. Nada mais óbvio que desclassificar seu antecessor. Vinte anos
depois, o que entregaram aos brasileiros?
Seu livro também faz críticas ao comportamento da imprensa,
não apenas na ditadura. Há “fatos” que não resistiriam a uma checagem básica,
como as tais 19 malas e o gás sarin. Por que isso não foi feito?
Não posso dizer exatamente por que essa checagem não foi
feita, mas é possível pensar numa
“continuação” da tática da ditadura de desvalorizar o governo Jango. Quanto
mais se atacar Jango ou pessoas ou políticos ligados a ele, melhor para o
discurso histórico que se seguiu até recentemente, quando até grandes meios de
comunicação do Brasil reconheceram que o apoio ao golpe foi um erro.
A introspecção parece ser uma característica de Maria
Thereza. Você teve, pela informação contida no final do livro, 18 encontros com
ela. Como foram esses contatos?
As entrevistas eram normais. Claro que, durante esse longo
trajeto de 12 anos, houve alguns problemas e interrupções, algumas até
propositais, quando, por exemplo, se fez o exame dos restos mortais do
presidente. O resultado poderia mudar minha linha narrativa. (Em 2013, o corpo
de Jango foi exumado e passou por análises para apurar um possível
envenenamento por agentes a serviço da ditadura. O resultado da perícia foi
inconclusivo. No mesmo ano, o Congresso anulou, simbolicamente, a sessão que
depôs o então presidente em 1964.)
Ao decidir participar do comício da Central, em 13 de março
de 1964, Maria Thereza rompeu paradigmas. Como você descreveu, era um local (o
palanque) dominado por homens, assim como a política. Qual foi o peso simbólico
desse momento?
Ali, pela primeira vez, há uma mulher no palanque de um
grande comício no Brasil. Era o primeiro tabu quebrado. Por trás daquela foto
histórica e daquele discurso que mudava o destino do país, havia um homem que
sofrera um grave distúrbio cardíaco dias antes e uma esposa que estava
preocupada, em primeiro lugar, com seu marido. Para acompanhá-lo, superou sua
fobia de multidão e acompanhou todo discurso, tensa e com raros sorrisos, ao
lado do presidente.
Maria Thereza teve de deixar o país às pressas, sem o marido
e com dois filhos pequenos. Chegou ao Uruguai quase sem bagagem e na primeira
noite pediu comida a uma vizinha para alimentar as crianças. Foi seu pior
momento, entre tantos difíceis?
De maneira indireta, podemos dizer que sim. Essa afirmação
subjetiva baseia-se apenas em um fato. Entre vários momentos tensos que narrou,
essa passagem foi a única em que ela reconheceu para mim que não guardava lembranças
exatas dos acontecimentos.
Jango sempre sonhou
com o retorno ao seu país. E ela?
Nunca. Maria Thereza encarou o golpe como uma escolha do
Brasil. E repetia isso a Jango: “Se o Brasil não nos quis, não temos motivos
para querer voltar”. Esse foi o ponto que foi minando, devagar e dolorosamente,
a relação do casal. Enquanto ela queria fazer uma nova vida no Uruguai, Jango
sonhava com o retorno a qualquer momento.
Acredita que Maria Thereza se reconciliou com seu país?
Não sei. Será que o Brasil, que consumia revistas e revistas
com a admirada primeira-dama na capa, reconciliou-se com Maria Thereza?
O clima vivido atualmente no país despertou nela “fantasmas”
que pareciam definitivamente adormecidos?
Acredito que qualquer pessoa que tenha passado por momentos
traumáticos e violentos durante a ditadura esteja com certas “ressalvas”. Há vários
momentos descritos no livro em que Maria Thereza reconhece que não conseguiu
superar o medo e que suas bruxas estavam soltas para aterrorizá-la.
Via - Rede Brasil Atual
Nenhum comentário:
Postar um comentário