O passaporte de Lúcia e as desconfianças da PIDE
Fundador da obra tinha um plano expansionista e queria começar por abrir uma delegação na França, mas intervenção da irmã Lúcia fez que Portugal fosse o primeiro país, a seguir à Espanha, a contar com a presença do Opus Dei. O Estado Novo e o próprio patriarca desconfiaram da obra, que a PIDE nunca deixou de seguir de perto.
O fundador do Opus Dei, Josemaría Escrivá de Balaguer, saiu de Madrid num dia de inverno com um objetivo: "conquistar" Portugal, fundando a obra no País. Mas havia um problema: não tinha passaporte que lhe permitisse passar a fronteira. Contou, no entanto, com a ajuda de uma amiga: a pastorinha Lúcia. Foi a 29 de janeiro de 1945 (há 68 anos) que Josemaría conseguiu chegar à fala com Lúcia, e a empatia foi imediata, tendo a vidente de Fátima pedido ao beato espanhol para fundar a obra em Portugal. Para isso era preciso entrar no País e ter o aval do cardeal Cerejeira, nada que Lúcia não conseguisse.
Com um simples telefonema, a vidente de Fátima - que tinha influência junto das mais altas figuras do regime - conseguiu, em tempo recorde, um visto para Josemaría. E se até este ponto da história as várias conversas com membros do Opus Dei e os factos relatados na principal bibliografia sobre a obra são unânimes, quanto ao destinatário do telefonema de Lúcia já não há consenso.
Há quem defenda que a chamada terá sido feita diretamente ao presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, que permitiu que o fundador da obra entrasse no País. Certo, certo é que sete dias depois de ter chegado à Galiza, Balaguer já estava em Fátima.
A irmã Lúcia chegou a confirmar parte da história ao bispo de Leiria e sacerdote do Opus Dei, Cosme do Amaral, a quem disse sobre Balaguer: "Conheci-o em Tuy. Vinha com ele D. Álvaro del Portillo [segundo líder do Opus Dei]. Pedi-lhe para fundar a obra. Mas ele não tinha passaporte e eu consegui fazer um jeitinho para que tudo se resolvesse e pudesse vir a Fátima."
O próprio fundador da obra viria a reconhecer mais tarde, numa carta enviada ao mesmo bispo, que "foi a irmã Lúcia o instrumento do Senhor que nos abriu as portas de Portugal". A 6 de fevereiro de 1945, Josemaría até se deixou fotografar com a mãe de Francisco e Jacinta, junto à casa onde nasceram os pastorinhos (foto 3). No dia seguinte, foi dado o passo mais importante para o início da obra em Portugal: o aval do cardeal Cerejeira, que mais tarde sentiria a sua liderança ameaçada pela obra.
Hugo de Azevedo, sacerdote do Opus Dei e maior especialista da história da obra no País, explica ao DN que "o primeiro passo previsto [para a expansão da obra] era a França. Sem a intervenção da irmã Lúcia, não seria tão rápida a extensão ao nosso país." Hugo de Azevedo salienta que a fundação em Portugal foi vantajosa para a obra, numa altura em que era "importante que se tornasse visível o seu carácter universal quanto antes, e Portugal foi o primeiro país, depois da Espanha, a dar-lhe essa visibilidade."
Depois da diplomacia, havia que começar a implementar a obra no terreno. O espanhol Francisco Martínez ficou encarregado de o fazer e assentou arraiais em Coimbra, em 1946. Começou por ficar hospedado no Hotel Avenida e em pouco tempo conseguiu alugar aquele que seria o primeiro edifício do Opus em Portugal (hoje nas mãos de uma cooperativa), numa rua a menos de dez minutos da Praça da República. É nesta pequena residência que começa a morar o primeiro numerário português da obra: o filósofo Mário Pacheco. Seguem-se o médico Óscar Candeias e os padres Nuno Girão e o padre Hugo de Azevedo.
As primeiras mulheres portuguesas da obra acabariam por sair do círculo familiar destes membros, nos quais se destaca a irmã de Nuno Girão: Maria do Céu - já falecida, mãe do antigo deputado do PS Manuel Maria Carrilho.
Pouco tempo depois, a prelatura começou a instalar-se na capital, na zona da Estefânia, onde funcionou uma residência de estudantes e, mais tarde, a sede da obra em Portugal (que atualmente é no Lumiar). É também nesta zona de Lisboa que a obra abre uma editora, a Aster, que inicia publicações culturais, como a revista Rumo, onde colaboram os numerários Mota Amaral, Adelino Amaro da Costa e Oliveira Dias (ver topo da página). Além de Lamego e da Régua, em 1962, já a obra chegara ao Minho, havendo centros da prelatura em Braga.
PIDE preocupada informa Salazar
De acordo com o livro Salazar e a Conspiração do Opus Dei, de António José Vilela e Pedro Ramos Brandão, foram vários os escritos que os agentes da PIDE dedicaram ao Opus Dei. Desde correspondência apreendida até constantes relatórios de vigilância, passando por descrições pormenorizadas de membros da obra (incluindo, naturalmente, a ideologia política), foram várias as preocupações da polícia política com a prelatura. O livro Caminho, a "bíblia" do Opus, conheceu a sua primeira versão portuguesa em 1946, sendo que, posteriormente, várias edições foram apreendidas pela PIDE.
Os ministros de Salazar Leite Pinto e Vieira Barbosa chegaram também a ser vigiados pela PIDE, que desconfiava da pertença destes políticos ao Opus Dei. A polícia política terá também enviado uma nota a Salazar dizendo: "Presume-se que o professor Marcello Caetano seja um dos filiados." O que nunca se confirmou.
Antes disso, Salazar também já havia sido informado - no documento "As Atividades do Opus Dei em Portugal" - que, através do Banco do Atlântico, o Opus Dei espanhol fizera entrar 18 milhões de pesetas (6,1 milhões de euros nos dias de hoje) no País para financiar a obra em Portugal.
Cerca de um mês antes do 25 de Abril, a desconfiança da PIDE leva mesmo um inspetor a escrever num relatório: "Todo aquele que tiver qualidades é levado aos postos mais altos da sua classe, mas, ali colocados, ficam com a missão de protegerem a organização, sendo possível contar já alguns ministros e outras altas patentes, colocadas nos postos de comando por aquela organização", conta o mesmo livro, que, juntamente com Primeiras Viagens de S. Josemaría a Portugal, de Hugo de Azevedo, e Opus Dei em Portugal, de José Freire Antunes, reconstituem a história da obra em Portugal.
Já depois de instituída a democracia, o Opus Dei continuou a crescer e na década de 80 contava já com 2000 membros em Portugal. Desde então tem conseguido manter a dimensão, embora nos dias de hoje se contem apenas 1550 membros (números de fevereiro de 2012).
Atualmente, existem vários centros espalhados pelo País, desde Braga, Porto, Miramar (junto a Vila Nova de Gaia), Viseu, Coimbra, Lisboa, Montemor-o-Novo e até Ponta Delgada, nos Açores.
Rui Pedro AntunesNo Diário de Notícias via Com Texto Livre
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