Por Alexandre Figueiredo
Felizmente, recomeçamos a debater a cultura. Depois de dez anos intimidados por uma intelectualidade - de Milton Moura a Pedro Alexandre Sanches, passando pelo tecnocrático Ronaldo Lemos - que defendia, com "categoria", as tendências duvidosas lançadas pelo jabaculê, retomamos o debate sério que não teme desmitificar o "estabelecido".
Afinal, era muito simplório acreditar no que a intelectualidade dominante dizia, achando que basta a Economia para salvar a Cultura. Prevalecia a utopia, que depois se tornou inútil, de que bastasse um programa trainée para transformar os ídolos brega-popularescos em "novos gênios da MPB".
Muitos apostaram, em vão, que Chitãozinho & Xororó reviveriam o Clube da Esquina, que Alexandre Pires seria o novo Wilson Simonal, que o "funk carioca" seria o novo mangue bit, que Joelma e Chimbinha trariam de volta a Tropicália, que Frank Aguiar faria renascer o baião e Victor & Léo a moda de viola, felizes na tese confortável mas não muito confiável de que "tudo é MPB". Há quem ache, pasmem, que até o MC Naldo e MC Buchecha fariam reviver o astral da Bossa Nova no nosso país.
Pois nem tudo é MPB, porque a MPB não se define por lotações de plateia. A sigla é uma combinação entre os termos "música", "popular" e "brasileira". Evidentemente ocorrem eventuais tensões entre essas três palavras, mas o que prevaleceu, nos últimos dez anos, no discurso intelectual, foi a ênfase, ainda que um tanto discutível, da palavra "popular" na referida sigla.
Um tanto discutível, sim. Afinal, o que é "popular" hoje em dia. Será que o povo realmente gosta de brega-popularesco? A ditadura midiática inclui no seu cardápio a ditadura do marketing, e o chamado gosto popular é claramente manipulado pelas intervenções midiáticas, processo há muito conhecido na Teoria da Comunicação.
Teoria hipodérmica? Talvez. Embora muitos vejam no exagero dessa teoria, que analisa o processo de manipulação midiática na vontade das pessoas, é evidente que muito do sucesso do tal "mau gosto" na apreciação popular se deve à insistente campanha persuasiva da grande mídia. A ditadura midiática manipula o povo pobre pela cultura, não pelo noticiário político que muitos não conseguem entender.
IMBECILIZAÇÃO CULTURAL
O debate foi aquecido por um artigo de Mino Carta na sua revista Carta Capital, intitulado "A Imbecilização do Brasil". A ideia trabalhada pelo autor de que os grandes mestres de nossa cultura são em maioria idosos já foi descrita neste blogue no texto que se refere à MPB autêntica. Cabe destacar o primeiro parágrafo do impactuante texto de Mino.
"Há muito tempo o Brasil não produz escritores como Guimarães Rosa ou Gilberto Freyre. Há muito tempo o Brasil não produz pintores como Candido Portinari. Há muito tempo o Brasil não produz historiadores como Raymundo Faoro. Há muito tempo o Brasil não produz polivalentes cultores da ironia como Nelson Rodrigues. Há muito tempo o Brasil não produz jornalistas como Claudio Abramo, e mesmo repórteres como Rubem Braga e Joel Silveira. Há muito tempo…"
Em seguida, veio o texto de Cynara Menezes, intitulado "Em Que Tipo de Arte Você Acredita? Ou: A Imbecilização da Elite", contestando a tese de Mino de que haja um "deserto cultural" no país, afirmando que "uma nova cultura está surgindo, mas é preciso ter olhos para vê-la".
Embora a exposição de Cynara seja correta, e ela é bastante pertinente quando se fala da imbecilização das elites, a abordagem dela a respeito da enorme produção criativa que vem em torno das periferias sempre requer alguma cautela.
Afinal, se aceitarmos apenas a tese de que tudo que vem do povo pobre é criativo, sem verificarmos sua qualidade ou seu processo, iremos cair nas mesmas armadilhas que os intelectuais dominantes montaram em torno do discurso que prevaleceu sobre a tal "cultura das periferias", misturando alhos com bugalhos, trigo com joio, juntando criativos e medíocres, honestos com fraudulentos, folclore com jabaculê.
AS ELITES IMBECIS SEMPRE ACEITARAM O "BREGA-POPULARESCO"
Evidentemente, seríamos injustos se disséssemos que não há um novo Chico Science surgindo nas garagens das zonas urbanas diversas. E devemos fazer justiça à arte dos grafiteiros, que não substitui a dos grandes quadros, mas a complementa como uma nova linguagem, um novo tipo de expressão.
Da mesma forma, o rap não substitui a música que tradicionalmente conhecemos, com voz cantada e instrumentos de verdade, mas é um outro tipo de expressão. O hip hop conquistou seu espaço, mas a intelectualidade é que costuma superestimar seu papel na sociedade brasileira.
Por outro lado, a intelectualidade dominante, aquela que acreditava que o jabaculê radiofônico dos últimos 20 anos iria definir o folclore de amanhã - através de acadêmicos-estrelas como Milton Moura, Hermano Vianna, Ronaldo Lemos, Paulo César Araújo e o festejado crítico Pedro Alexandre Sanches - tentou distorcer muitas abordagens em torno da cultura das classes populares.
Na sua gororoba discursiva em que o sofisticado "justificava" o grotesco e o moderno "justificava" o cafona, esses intelectuais chegaram mesmo a uma ideia simplória de que as periferias só ouviam duas coisas: hip hop e "funk carioca".
E esses intelectuais são contrários ou alheios ao poder midiático? Eles estão de fora da chamada elite imbecilizada? Não. Eles são produto dela, são produtos de um projeto intelectual sobre cultura popular lançado pelos mesmos acadêmicos que hoje estão no PSDB, a partir do próprio Fernando Henrique Cardoso, para o qual a cultura não deveria estar incluída de sua agenda neoliberal.
Muitos intelectuais também são gente de elite, e eles também têm seus preconceitos. São tão preconceituosos que ninguém percebeu que, quando alguém tem vergonha de seus defeitos, tenta parecer forçadamente o contrário deles. Daí o discurso "sem preconceitos" que enganou muita gente.
Os pontos de vista dessa intelectualidade eram empurrados para a agenda esquerdista, mas a grande mídia, mesmo a mais reacionária, assinava embaixo. Daí a desconfiança. Há vários jornalistas da Folha de São Paulo e de O Globo escrevendo igualzinho Pedro Alexandre Sanches. Que escreve igualzinho Caetano Veloso na sua coluna. Qual é a diferença?
Para uma geração que se educou com apenas o monopólio de três críticos musicais - Álvaro Pereira Jr., Tom Leão e Carlos Albuquerque - que sobrou depois do colapso da revista Bizz (que nos anos 80 era a principal fonte de aprendizado cultural da juventude moderna), as avaliações sobre cultura brasileira acabaram polarizando entre o elitismo de Reinaldo Azevedo e o paternalismo de Pedro A. Sanches.
De um lado, as elites mais fechadas querendo proteger seu gosto musical erudito. De outro, elites mais flexíveis que não deixam de proteger seu gosto musical, também flexível, mas sempre comprometido a alguma vanguarda artístico-cultural.
Os primeiros atacavam o brega-popularesco, porque querem ver os pobres na pior. Os segundos defendiam o brega-popularesco, porque querem ver os pobres no "menos ruim". Mas nem uns nem outros são muito diferentes assim. Afinal, os "generosos" defensores do brega-popularesco acreditam na domesticação do povo pobre, seu elitismo, em vez de ser intolerante, é tão somente paternalista.
Só que num caminho ou em outro, vemos Gilberto Dimenstein, Nelson Motta, Marcelo Madureira, Marcelo Tas, Carlos Alberto di Franco, Miriam Leitão e William Waack, todos da mídia direitista, expondo os mesmos pontos de vista que vemos em Pedro Alexandre Sanches e até mesmo num dirigente funqueiro protegido dessa intelectualidade, MC Leonardo. Coincidência? Não. É afinidade de interesses.
E por que o jornal O Globo dá tanto cartaz a Paulo César Araújo, queridinho das "esquerdas médias"? Outra coincidência? Até agora não soube de qualquer informação de que o autor dos livros Eu Não Sou Cachorro Não e Roberto Carlos em Detalhes tenha juntado guerrilheiros zapatistas para invadir o prédio do jornal na Cidade Nova e criar uma rebelião guevarista lá. Se houvesse, ao menos a Globo News teria noticiado, o que nunca ocorreu.
Deixemos de brincadeira. Tivemos uma intelectualidade cultural que também é reflexo da ditadura midiática em que vivemos. E Mino Carta, neste caso, tem razão, quando não temos mais um novo José Ramos Tinhorão para realizar verdadeiras polêmicas (ele ainda está vivo, mas se aposentou). Mas temos um Eugênio Arantes Raggi que soa como se Reinaldo Azevedo virasse uma caricatura do Tinhorão.
A intelectualidade cultural dominante apenas prolongou e agravou a imbecilização cultural que tomou conta das emissoras de tevê e do rádio, e que empurrou a breguice até para o público universitário. Isso por conta de seus malabarismos "científicos" para tentar provar que o jabaculê de hoje é o folclore do futuro, protegidos pelo rótulo "popular" que permite qualquer baixaria que ocorra nos subúrbios e roças do país.
Numa tentativa de equilibrar as duas teses, podemos concordar com Mino Carta de que não existem grandes mestres com visibilidade, como tínhamos em Tom Jobim, Cartola, Guimarães Rosa, Otto Maria Carpeaux, Joel Silveira, Mário de Andrade, Cândido Portinari, Oscar Niemeyer, Rubem Braga, Raymundo Faoro, Clarice Lispector etc.
Por outro lado, podemos concordar com Cynara Menezes, de que haja gente bastante criativa nos vários cantos de nosso país. E podemos reconhecer que, no exemplo da arte de atuar, temos grandes talentos como Lázaro Ramos e Marcelo Adnet, pessoas muito dinâmicas e criativas, grandiosos talentos. Adnet anda feito trabalhos medianos ultimamente, mas se ele quiser ele cria ou se envolve com grandes obras.
Talvez o grande problema está no desequilíbrio que temos entre a qualidade artística e criativa e a visibilidade midiática. Temos pessoas muito criativas hoje como há 50 anos atrás. O problema que elas não aparecem. É a grande mídia que não abre muito espaço a elas e, quando abre, é sempre em segundo plano.
Por outro lado, a grande mídia sempre acreditou que a imbecilização é que chama mais público. E que seus intelectuais associados (de forma não-assumida por eles) tentaram relativizar a imbecilização tentando promovê-la como "outros valores culturais". Essa visão não deu certo, até porque não ultrapassava os limites dos interesses midiáticos que não conseguiram resolver as tensões acerca do tema cultura brasileira.
Via Mingau de Aço
Quem não acha que o Brasil se imbecilizou culturalmente talvez precise dar uma boa voltinha nas ruas, principalmente da periferia. Abram bem os ouvidos, aliás, nem precisa, a "música" sai pelos alto-falantes dos carros, sem respeitar decibéis ou o gosto alheio. Atrás da imbecilização cultural, promovida pela péssima educação escolar brasileira, vem a falta de educação e a violência. Uma agressividade generalizada. Há arte que sensibiliza e não tem sido o funk e similares que tem feito isso. Mas ao pobre é dada a lata para bater. Violino, jamais. Afinal é caro e bonito. Vamos dizer que é de elite.
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