'Index' proíbe 79 livros de autores portugueses
Autores e especialistas portugueses mostram-se indignados por o Opus Dei ter uma lista de livros que proíbe os seus membros de ler. José Saramago é um dos escritores mais castigados ao nível mundial, sendo um dos recordistas no número de livros proibidos. Também 'censurada', Lídia Jorge diz que o Opus Dei deveria ter "vergonha" de ter este tipo de listagem, igualmente arrasada pela Sociedade Portuguesa de Autores. A lista é, porém, 'legal'.
José Saramago e Eça de Queirós são os escritores portugueses mais castigados pela "lista negra" de livros do Opus Dei. A organização da Igreja Católica tem uma listagem de livros proibidos, com diferentes níveis de gravidade (ver topo da página), na qual põe restrições a 33 573 livros. Nos três níveis mais elevados de proibição encontram-se 79 obras de escritores portugueses. Autores portugueses contactados pelo DN mostram-se indignados com o que classificam de "Index" e "livros da fogueira".
O Opus Dei sempre teve um Guia Bibliográfico, onde incluía os livros proibidos, com uma classificação de 1 a 6 (o nível mais elevado). Há quatro anos, aquilo que era uma lista de Excel que circulava pelos membros da obra, ganhou forma na Internet (http://almudi.org) e passou a estar aberto à contribuição dos membros. Como explica o Opus Dei Portugal, passou a existir um site "tipo crowdsourcing, aberto à contribuição de interessados, moderado por dois editores: Carlos Cremades e Jorge Verdià [membros da obra]". Mudaram-se as designações, dividiram-se os livros em duas partes (literatura e não ficção), mas mantiveram-se os níveis de proibição. E há uma novidade: uma lista de filmes "desaconselhados".
"Deus é um filho da puta", escreveu Saramago num dos livros proibidos (Caim). Porém, não é preciso haver um nível tão direto de confronto à Igreja para que o livro seja proibido. Só nos três mais elevados níveis de interdição, Saramago tem 12 livros. Caim, o Evangelho Segundo Jesus Cristo, o Manual de Pintura e Caligrafia e o Memorial do Convento são definidos como os mais perigosos (6; LC-3).
A presidente da Fundação Saramago e viúva do escritor, Pilar del Río, classifica em entrevista ao DN (ver página 33) este índice de "grosseiro e repugnante", deixando várias críticas à obra: "É uma organização a que chamamos seita porque somos educados. Por acaso, eles não são." Pilar revela ainda que Saramago nunca escreveu sobre o Opus Dei porque considerava a organização "uma formiga" e mostra-se ainda chocada pelo facto de "neste nível de pensamento cartesiano e da razão haja quem se submeta à irracionalidade das seitas".
A escritora Lídia Jorge - que também tem dois livros no mais elevado nível de proibição (Costa dos Murmúrios e O Dia dos Prodígios) - confessou-se "chocada" quando confrontada pelo DN com a existência da lista. Lídia Jorge disse mesmo que os membros do Opus Dei deviam ter "vergonha" e classifica quem fez a listagem de "gente retrógrada e abstrusa". "São pessoas que desprezo porque se armam em mentores, em guardas morais, quando, no fundo, revelam uma ignorância absoluta sobre o papel da literatura." Quanto às duas obras proibidas, Lídia Jorge explica que têm "uma linguagem e uma atitude mais libertária perante a vida" e que, talvez por isso, tenham sido censuradas. O que a repugna.
SPA condena lista
O presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), José Jorge Letria, disse ao DN que esta entidade "repudia a lista porque é atentatória da liberdade de expressão. Somos contra listas negras, sejam religiosas ou políticas". Jorge Letria diz ainda não estar surpreendido "com a listagem feita, porque corresponde à pior tradição das práticas da Igreja Católica, que nos faz lembrar a Inquisição". A lista inclui, aliás, associados da SPA, que a sociedade pretende proteger.
Quem já não se pode defender e está nesta lista é Eça de Queirós, outro dos autores portugueses mais proibidos. A Relíquia, O Crime do Padre Amaro e o Primo Basílio estão no mais elevado nível de proibição (6; LC-3). Porém, Eça tem quem o defenda. O antigo diretor da Biblioteca Nacional e especialista na obra queirosiana, Carlos Reis, considera que "qualquer lista de livros ou similar, que contribua para limitar o acesso das pessoas à informação e à cultura é, por princípio, inaceitável". Carlos Reis defende que esse tipo de procedimento é "contrário a princípios fundamentais" e "abre caminho a repressões ou, no mínimo, a uma 'vigilância' que nenhuma religião ou ideologia tem o direito de impor". O professor catedrático da Universidade de Coimbra e ex-reitor da Universidade Aberta diz ainda que "foi por este caminho que a História conheceu episódios tão lamentáveis como as perseguições religiosas ou as queimas de livros". E acrescenta: "Num mundo civilizado é intolerável a existência de tais instrumentos, mesmo que confinados a uma organização tão fechada e elitista como aquela de que falamos."
Carlos Reis lembra que "se Eça de Queirós é um escritor lido, estudado e admirado deve-se isso, em parte, à argúcia e à coragem com que, no seu tempo, soube enfrentar e denunciar mistificações e deformações como as que a Igreja Católica praticava. [...] O que deveria fazer pensar quem proíbe livros ou restringe o acesso a eles é qual a razão ou razões pelas quais continuamos a falar na atualidade de Eça".
Há também livros de não ficção proibidos, como o Portugal Amordaçado, de Mário Soares (5; PC-2) e A Revolução de 1383, de António Borges Coelho (6; PC-3). O historiador confessou ao DN que o facto de o seu livro estar na lista até lhe dá "vontade de rir", uma vez que "não tem que ver com a doutrina da Igreja, é um livro objetivo sobre um período fantástico da História de Portugal". Mostrou-se ainda surpreendido: "Não sabia que me tinham colocado num 'Index' em pleno século XXI mas isso muito me honra." Por o livro não ter matéria contra a Igreja, Borges Coelho considera que a proibição é "mais dirigida ao homem do que propriamente ao livro".
Legal, mas só até certo ponto
Os especialistas defendem que, do ponto de vista legal, a existência desta lista é "inatacável", uma vez que não existe uma proibição "coativa" e as pessoas têm a liberdade de escolher se fazem ou não parte da obra. O caso muda de figura se um professor que seja membro do Opus Dei não der, por exemplo, Os Maias aos seus alunos porque a organização o proíbe.
O especialista em Direitos Humanos e membro da Comissão da Liberdade Religiosa (CLR), Pedro Bacelar de Vasconcelos, considera que "a lista não levanta um problema de legalidade porque essa imposição é prescrita apenas no interior da organização, sendo uma espécie de recomendações para os fiéis". Como aceitação da proibição é "voluntária", esta é "uma questão do foro da consciência", defende.
O também constitucionalista e ex-membro da CLR Jorge Bacelar Gouveia corrobora que "o Estado não pode aplicar sanções nesta situação porque é do domínio canónico. A liberdade religiosa permite às pessoas entrar e sair quando quiserem e de cumprirem ou não as regras". Além disso, recorda, "não são proibições coativas, daí o Estado não poder intervir".
Mas a presidente da Fundação Saramago questiona: "Então e um miúdo português não pode ler Os Maias? Vão castrar o estudante? E os professores? O que fazem os professores do Opus Dei nessa situação?" Diogo Gonçalves, supranumerário e professor na Faculdade de Direito de Lisboa, garante que a situação não se coloca. "Se as suas profissões o exigirem, os membros podem ler o que quiserem. Somos libérrimos nesse aspeto", diz.
Caso um professor do Opus Dei altere o programa por não estar de acordo com o livro, já se levantariam questões legais. Pedro Bacelar de Vasconcelos explica que "não é compatível com o estatuto de professor censurar partes do programa com base nas convicções religiosas. Aí poderia estar em causa o direito ao ensino, tornando-se num problema legal ou até mesmo constitucional". Poderia estar ainda em causa, recorda, "o princípio da laicidade".
Também Carlos Reis comenta que nesta situação existiria "claramente um atropelo da liberdade de ensino. Para além do mais, quem proíbe livros esquece a lição contida na famosa imagem bíblica do fruto proibido...".
Rui Pedro AntunesNo Diário de Notícias
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