A ditadura argentina escondeu locais de tortura e presos políticos durante a Copa do Mundo de 1978 para dar a impressão de que as acusações contra o regime eram infundadas. As informações constam de documentos oficiais e sigilosos da ONU aos quais o jornal O Estado de S. Paulo teve acesso.
Por Jamil Chade, no Estado de S. Paulo
Jorge Rafael Videla com os jogadores argentinos, em 4 de julho de 1978: vitória sob suspeita| Foto: O Globo |
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Em cartas de presos e relatos de oficiais da entidade, a ONU
constatou que a operação "Limpeza" foi estabelecida durante a Copa
para esconder crimes e sequestros de dissidentes. O principal relato foi
prestado em 30 de setembro de 1978 ao secretário do Conselho Econômico e Social
da ONU, Teodoro Van Boven pelo dissidente Jaime Feliciano Dri.
Ele havia sido sequestrado no Uruguai, levado para a
Argentina e torturado na Escola de Mecânica da Armada (Esma), em Buenos Aires.
O local se transformou em símbolo da tortura ao longo do governo militar.
Na Copa de 78, algumas seleções pensaram em boicotar o
torneio. Na época, grupos de direitos humanos acusaram a Fifa de chancelar o
regime argentino. Diante da discussão, a junta fez campanha para melhorar sua
imagem internacional. "Nos primeiros meses de abril, em uma operação
chamada Limpeza, levaram um jornalista britânico para mostrá-lo as instalações
e para que ele constatasse que era mentira o que se dizia da Esma",
relatou Dri.
O preso revelou que outros jornalistas foram levados apenas
para um dos andares do prédio, onde os locais de tortura eram transformados em
quartos normais. Os prisioneiros eram escondidos durante as visitas. "Os
sequestrados eram obrigados a se vestir com uniformes de oficiais e suboficiais
da Marinha, alguns da Polícia Federal, para mostrar que ali não era um centro
de detenção, só de inteligência contra a subversão", afirmou. Os locais de
tortura eram também disfarçados. "As salas foram desmanteladas. As camas
de ferro, fixadas no chão, foram arrancadas", disse o dissidente.
Nos meses que antecederam a Copa, o governo decidiu
controlar suas fronteiras, temendo a fuga de dissidentes e também para
controlar a entrada de membros da oposição de países vizinhos. "Desde o
início do ano de 1978, o Grupo de Tarefa da Escola Mecânica da Armada tinha
pouca gente. Mas, diante dos feitos da resistência popular, eles decidem lançar
uma operação de controle de fronteiras com Bolívia, Paraguai, Brasil e Uruguai,
onde realizam sequestros políticos e colaboraram com as Forças Armadas",
declarou Dri. Em outros documentos do mesmo ano, delegados da ONU confirmam o
endurecimento do governo argentino antes do Mundial, além de ações em outros
países.
Em campo, a política também pesaria. A goleada da Argentina
sobre o Peru, que deixou o Brasil fora da final, foi cercada de rumores. Há
dois anos, denúncias feitas a um juiz afirmam que o resultado foi um pacto
entre os militares de Peru e Argentina.
Para disputar a final, os argentinos precisavam vencer o
Peru por quatro gols de diferença - fizeram 6 a 0. Em 2011, o juiz argentino
Norberto Oyarbide abriu investigações sobre o ex-ditador peruano Francisco
Bermúdez e pediu sua prisão por sequestros e assassinatos.
De acordo com o jornal argentino El Tiempo, uma das
principais testemunhas do caso, o ex-senador peruano Genaro Ledesma, revelou ao
juiz que a goleada havia sido acertada entre os ditadores dos dois países e era
parte de um acordo maior de cooperação entre os dois governos. Segundo a
versão, o ditador argentino, Jorge Videla, aceitou receber 13 prisioneiros
peruanos que, em Lima, lutavam para derrubar o governo. Em troca, Videla pediu
que o Peru entregasse a partida.
Ledesma afirma que ele mesmo foi um dos presos negociados na
troca. "Videla nos aceitou na condição de que o Peru permitisse a vitória
da Argentina na Copa do Mundo", disse. "Ele precisava do triunfo para
limpar a imagem da Argentina no mundo."
Ao Estado, um dos presos políticos que esteve na Esma, em
1978, Juan Gasparin, confirma a existência de salas de tortura e o esquema para
escondê-los. Segundo ele, no dia da final entre Argentina e Holanda, os
militares deram sinais de flexibilidade e colocaram uma TV para que os presos
acompanhassem o jogo. "No fim, comemoramos e nos abraçamos", lembra
Gasparin. "Mas, naquele clima de conquista, ninguém escutava os gritos dos
torturados dentro dos centros de detenção. Estavam todos surdos."
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