“Não conseguiram nem conseguirão matar nossos sonhos”, dizem
presos políticos da matança que provocou golpe do Paraguai.
“Camponês sem-terra não é camponês. Queremos plantar feijão,
mandioca e milho para que todos tenham o que comer. Graças às pessoas que nos
apoiam frente à injustiça, não conseguiram e nem conseguirão matar nossos
sonhos. Nós somos presos políticos e queremos que vocês sejam nossos
porta-vozes”.
A carta-exortação dos camponeses de Curuguaty presos em
Tacumbú, em Assunção, capital do Paraguai, foi lida em meio às lágrimas,
quinta-feira (15), em frente ao Palácio de Justiça, pela jovem Ramona González,
esposa de Néstor Castro — que após ter levado um tiro no rosto que dilacerou
sua mandíbula, foi condenado a 18 anos de reclusão.
Ao lado de Ramona, Karina Godoy e a pequena Alma Vitória —
respectivamente esposa e filha de Arnaldo Quintana, também com pena de 18 anos
— expressavam o respaldo das famílias à luta por “Terra, Justiça e Liberdade”.
Massacre
O dia 15 de junho marca o quinto aniversário da carnificina
na estrada que leva à região de Marina Kue, em Curuguaty, onde foram mortos
seis policiais e 11 trabalhadores sem-terra, numa ação iniciada por
franco-atiradores.
O estilo foi exatamente o mesmo utilizado pela CIA no golpe
contra Hugo Chávez, na Venezuela, 10 anos antes, quando se assassinaram
governistas e oposicionistas para tentar derrubar o presidente. Em Curuguaty,
balas certeiras mataram o interlocutor militar, Erven Lovera, e alguns dos seus
subordinados, bem como lideranças dos camponeses que iniciavam a negociação em
campo aberto.
No vídeo gravado pela polícia, se ouvem armas automáticas
precipitando o tiroteio. O cerco e o circo midiáticos, apoiados por um
judiciário e um Parlamento completamente apodrecidos, redundaram na deposição
do ex-presidente Fernando Lugo, uma semana depois.
No Tribunal, onde os advogados Jorge Bogarín e Raúl
Caballero entraram com recursos contra o absurdo jurídico movido pelo governo
de Horacio Cartes, que persegue as vítimas e mantém intocados os criminosos,
manifestantes condenaram os “escribas e fariseus”, defenderam “liberdade aos
presos por lutar” e uma “Reforma agrária, urgente e necessária”.
Em 150 páginas, a defesa demole um a um os eixos da
acusação, expondo a completa falta de fundamentação, feita em função dos
interesses do agronegócio para criminalizar a luta por justiça social.
“Esta é a última instância a que vamos recorrer antes de
levarmos o caso a um tribunal internacional”, informou Guillermina Kanonnikoff,
destacada dirigente do movimento de solidariedade e vítima da ditadura
pró-estadunidense de Alfredo Stroessner (1954-1989).
Referência da lgreja, Pai Oliva ressaltou que as
manifestações pela liberdade dos presos políticos “expressam a presença de
Jesus entre os pobres, de forma espiritual, pessoal e coletiva, para que,
enfim, acabemos com a dor e que tenhamos Justiça e alegria”. “Seremos
vitoriosos. Depois que conseguirmos a libertação [dos camponeses detidos]
teremos um dia inteiro de festa em nosso país”, acrescentou o religioso.
Conforme pesquisa da historiadora Margarita Durán Estragó,
“quem invadiu terras que não lhe pertenciam, numa completa agressão ao Estatuto
da Terra e à própria soberania alimentar, foi Blas Riquelme, com seus mais de
75 mil hectares”. Margarita mostrou cápsulas de projéteis de grosso calibre
encontrados no local por familiares e destacou “o mais completo descaso da
perícia, que a única coisa que quis e fez foi manipular provas para condenar
inocentes”.
O Serviço Paz e Justiça do Paraguai (Serpaj) recorda que
Marina Kue, em guarani significa “terras da Marinha” e esteve ocupada entre
1967 e 1999 por um destacamento militar, o que desmente o principal argumento
de Riquelme, proprietário da Campos Morombí, de que supostamente ocupa o
território por 34 anos. “Cinco anos depois que a Armada deixou o local,
Riquelme começou a desflorestar e cercar a terra”, frisa o Serpaj.
Basta de injustiça e desigualdade
Nas ruas de Assunção, em frente ao Palácio de Justiça e ao
presídio de Tacumbú, estudantes, professores, religiosos, trabalhadores do
campo, músicos, poetas e intelectuais denunciaram o alto grau de concentração
de renda no país: 2,5% dos proprietários são donos de 85% das terras
cultiváveis, 94% delas destinadas à exportação, enquanto 1,5 milhão dos sete
milhões de paraguaios padece de fome e um terço de desnutrição.
Ao mesmo tempo em que os manifestantes se comoviam diante da
divulgação das criminosas sentenças para os outros dois presos: Rubén Villalba,
30 anos de prisão e cinco anos de “medidas de segurança” e Luis Olmedo Paredes,
20 anos de prisão, repórteres da grande imprensa riam, antecipando a
“objetividade” da cobertura jornalística.
Ex-ministro da Corte Suprema de Justiça, Luiz Lezcano Claude
acredita que o Tribunal de Sentença “agiu de maneira parcial, incompleta,
mutilada, cerceada e discriminatória”, fazendo com que os camponeses servissem
de “bode expiatório”.
Para Lezcano, “há uma completa falta de objetividade na
investigação”, que “somente buscou imputar, acusar e conseguir a imposição de
drásticas e desmedidas penas aos camponeses que assinalava como supostos
autores”.
Condenando a versão do Ministério Público, o ex-ministro
aponta sua completa inconsistência. Pela acusação, observa, “um grupo de
camponeses constitui com antecedência uma organização criminosa (primeiro fato
punível), com vistas a invadir uma propriedade privada (segundo fato punível)
e, posteriormente, prepara uma cilada ou emboscada na que premedita a morte dos
agentes da Polícia Nacional que pretendia desalojar o grupo invasor (terceiro
fato punível)”.
Os fatos vão na contramão dos alegados pela “Justiça”, pois os
camponeses que reclamavam as terras cedidas para a reforma agrária tinham se
organizado por sugestão do Indert (Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural
e da Terra), reconhecida desde 2004. Não houve nenhuma invasão de imóvel
alheio, já que a empresa Campos Morumbí, de propriedade de Blas Riquelme,
íntimo do sanguinário Stroessner, jamais teve reconhecido seu direito sobre
ela.
O “homicídio doloso em grau de tentativa” também carece de
qualquer sentido, uma vez que como 60 camponeses, metade deles mulheres,
crianças e idosos, poderia ter “emboscado” a 324 policiais fortemente armados,
inclusive com helicóptero? Não é à toa que sumiram inúmeras provas como
projéteis das armas de grosso calibre, exames de raios-X, a filmagem e até o
piloto do helicóptero que morreu “acidentado” antes de depor.
“Mais do que nunca é imprescindível a solidariedade
internacional. Diante dos que querem nos calar, é hora de nos somarmos e
levantar a voz para garantir terra, Justiça e liberdade”, concluiu Guilhermina
Kanonnikoff, encerrando a visita da delegação aos presos políticos.
Edição: Vanessa Martina Silva
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