Ninguém mais está querendo sair na foto ao lado de
Bolsonaro. O bonde da barbárie está descendo a ladeira sem freio, e cada vez
menos gente está disposta a continuar nessa roubada. Quanto mais pessoas
pularem fora, melhor. Embora seja tentador, não podemos nos dar ao luxo de
ficar apontando dedos. Que os desertores sejam bem-vindos. Mas também não
podemos passar pano. Nem rancor, nem flores.
Depois do oportunista Bolsodoria, o governador pode até sair do bolsonarismo, mas o bolsonarismo não sairá dele tão fácil |
Por João Filho
A história precisa ser contada com precisão para que nunca
mais o país tope uma proposta declaradamente antidemocrática e fascistoide. É
fundamental que um país seja transparente com sua própria história. A ditadura
militar no Brasil, por exemplo, foi mal contada, e os criminosos do regime não foram
devidamente julgados e condenados. Esse foi um dos motivos que nos levou a
eleger um defensor do legado dos anos de chumbo.
Doria, MBL e partido Novo foram apoiadores entusiasmados do
bolsonarismo no segundo turno das eleições. Para tirar o PT do poder, o trio
liberal calculou que valeria a pena embarcar em um projeto extremista, liderado
por um ex-militar que passou a vida como um parasita na Câmara e que colocou
toda a sua família para mamar nas tetas do serviço público.
Eles consideraram razoável apoiar um candidato que durante
sua carreira assumiu ser homofóbico, incentivou a população a sonegar impostos,
exaltou a tortura e chamou os direitos humanos de “esterco de vagabundo”. Não
foi pouca coisa que eles aceitaram em nome do antipetismo. O “jeito novo de
fazer política” abraçou o lado mais caquético e assombroso da velha política na
primeira oportunidade. Ninguém irá pular desse barco sem ter manchado a roupa
de lama e de sangue.
A afinidade ideológica entre eles não é pequena, é preciso
dizer. São muitas as pautas que esses três atores políticos compartilham com o
bolsonarismo. Seja na área política, econômica ou moral, há muito mais
convergências do que divergências. Portanto, é impossível agora tentar remover
as digitais da tragédia instaurada.
Bastou o chimpanzé fascistoide anunciar durante a campanha
que Paulo Guedes seria seu futuro ministro da economia que os liberais passaram
a vê-lo com outros olhos. Acreditaram que um homem respeitado pelo mercado
resolveria todos os nossos problemas, e o homem-primata, devidamente adestrado
e comprometido com as reformas, não seria empecilho.
Mas a crença na mão invisível do mercado como saída para
todos os problemas não resistiu aos primeiros dias de governo. Bolsonaro se
mostrou um desastre sob qualquer ponto de vista. O arrependimento de antigos
apoiadores é bem-vindo, mas não beatifica ninguém. Eles sabiam que aquela mão
invisível do mercado portava uma metralhadora e aceitaram o rolê.
Doria tem se afastado do bolsonarismo, preparando o terreno para
2022, quando provavelmente se apresentará como uma alternativa moderada à
direita. O governador pode até sair do bolsonarismo, mas o bolsonarismo não
sairá dele tão fácil. Ele foi o candidato a governador mais entusiasmado com a
popularidade da candidatura Bolsonaro. Todos os sinais do apocalipse já estavam
ali, mas o tucano não fez qualquer objeção.
O rompimento precoce com o ex-capitão não surpreende.
Lealdade nunca foi uma marca de Doria, que ganhou espaço na política na base
das traições, chegando a trair seu mentor Geraldo Alckmin. A impopularidade
crescente do presidente despertou o apurado senso de oportunismo do tucano que,
com dissimulação – essa, sim, sua grande marca –, disse que “nunca esteve
alinhado com o governo Bolsonaro”.
Ainda no primeiro turno, quando o PSDB tinha seu candidato,
Doria já se mostrava simpático ao bolsonarismo. No segundo, o abraçou com força
e passou a propagar o voto Bolsodoria. A aliança não aconteceu apenas por uma
estratégia eleitoral em busca dos votos do capitão ou por ser a única
alternativa ao PT. Ela se deu por alinhamento ideológico e programático.
Além das afinidades na área econômica e no campo moral,
Doria tem o mesmo discurso violento de Bolsonaro para a área de segurança
pública, demonstrando igualmente um profundo desprezo aos direitos humanos. O
número de assassinatos cometidos por policiais aumentou na gestão do tucano. A
flexibilização do porte de armas do governo federal também contou com seu apoio
integral.
Doria demonstrou muita indignação com o recente ataque que o
presidente desferiu contra o pai do presidente da OAB, morto pelo regime
militar. Considerou “inaceitável” e lembrou do seu pai deputado que foi cassado
pela ditadura e teve que viver no exílio. Depois de passar muito tempo apoiando
sem ressalvas a veneração do bolsonarismo à ditadura militar, Doria subitamente
resolveu honrar a memória do seu pai e defender a democracia. Faria o mesmo se
a economia estivesse bombando e a popularidade do presidente em alta?
A resposta é óbvia. Essa repaginação da sua imagem é só o
primeiro passo para a criação de um novo produto para a próxima eleição: o
direitista moderado anti-Lula que rejeitou o bolsonarismo. Como diria o poeta
Vanucci, 2022 é logo ali e, portanto, é importante lembrar quem foram os
arquitetos da tragédia bolsonarista.
O MBL também não quer ter mais nada a ver com isso daí. É
mais um que alimentou o bolsonarismo sem nenhum pudor e que agora decide se
afastar. Mas, assim como Doria, o distanciamento é apenas pragmático, porque
ideologicamente continuam bastante próximos. O MBL não quer ser lembrado como o
grupo liberal que atuou como linha auxiliar da extrema direita, mas como o
grupo que só queria livrar o Brasil do PT.
Mas o histórico reacionário do MBL nos leva a crer que esse
arrependimento seja puro oportunismo. Não é preciso dizer que eles engoliriam
com tranquilidade todos os absurdos autoritários do governo se a economia
estivesse bombando. Afinal de contas, estamos falando da turma que se indignou
com gente pelada em museu, que foi pras ruas em favor do Escola sem Partido,
que nutre um fetiche por Donald Trump e cujo um dos seus líderes é um vereador
católico que quer a internação psiquiátrica compulsória de mulheres grávidas
que desejam abortar. O MBL pavimentou o caminho da extrema direita. A sua alma
bolsominion é inegável.
Em novembro de 2017, o líder do MBL e deputado estadual
Mamãe Falei (DEM-SP) deixou claro que as afinidades do grupo com Bolsonaro eram
enormes: “Concordamos muito com o Bolsonaro em diversas coisas: revogação do
estatuto do desarmamento, redução da maioridade penal… Concordamos em diversas
pautas. Inclusive quando ele falou mal da CLT, eu quase soltei fogos na minha
casa. Quando ele fala em criar leis antiterroristas que atinjam o MST, eu acho
que é um ato de extrema coragem. Eu acho uma palhaçada quando começam a
chamá-lo de racista e homofóbico”.
Renan Santos, um dos fundadores do MBL, fez um mea culpa em
entrevista recente à Folha. Admitiu que o grupo exagerou na retórica agressiva
e que não deveria ter apoiado Bolsonaro, “mas” – sempre tem o “mas” – “não
havia o que fazer. Se o PT chegasse ao poder, a gente teria guerra civil. A
classe média e o centro-sul não iriam aceitar o resultado”.
Ou seja, ele está dizendo que só apoiou a extrema direita
autoritária porque acreditou que a classe média não respeitaria a vontade da
maioria e iniciaria uma guerra civil. Para evitar essa ruptura democrática, o
MBL então decidiu apoiar um extremista de direita que defende a tortura e
renega a democracia.
Não faz o menor sentido, mas nos esforcemos em ser
compreensivos e pragmáticos. Que o MBL seja bem-vindo à luz depois dessa longa
jornada na escuridão, mas é preciso deixar claro quem eles são e por que
pularam do barco. A história mostra que o liberal brasileiro não vê problema em
flertar com o totalitarismo quando lhe parece oportuno.
O Novo também não quer mais ser associado ao chimpanzé
presidencial. O presidente do partido João Amoêdo disse ao Valor que o “Novo é
muito diferente do Bolsonaro”. A desfaçatez dos autoproclamados “novos
políticos” é mesmo impressionante. Apesar da fachada gourmet, o Novo sempre se
mostrou bastante alinhado às pautas radicais do PSL. Ou alguém considera que
essa peça de campanha de Ricardo Salles incitando crime “contra a esquerda”
está distante do pensamento padrão bolsonarista?
Ricardo Salles não se elegeu deputado, mas foi acomodado no
seio bolsonarista com o cargo de ministro do Meio Ambiente. Na entrevista, João
Amoêdo lavou as mãos diante da tenebrosa gestão do seu correligionário: “Ele
tem um estilo de atuação mais parecido com o do governo Bolsonaro do que talvez
de um governo do Novo”. De qualquer forma, o presidente do Novo acha que “do
ponto de vista técnico ele [Salles] tem mais acertado que errado”.
Apesar de querer aparentar distância do governo, o Novo tem
sido bastante fiel a ele nas votações no congresso. Luiz Philippe de Orléans e
Bragança, o deputado-príncipe do PSL, falou sobre a sintonia entre os partidos:
“Basicamente nós temos dois partidos que apoiam integralmente o governo: o PSL
e o partido Novo. Os dois têm votado 90% das vezes em consonância com as
propostas do governo.”
É compreensível que Amoêdo agora queira se descolar do
bolsonarismo, mas ninguém se livra do DNA bolsominion assim tão fácil. Logo nos
primeiros dias após a posse, o governador mineiro Romeu Zema, do Novo,
demonstrou que o PSL e seu partido estavam alinhadíssimos: “O DNA [dos
partidos] coincide 99,5%. Em pouquíssima coisa talvez não estejamos alinhados”.
A principal diferença, segundo ele, é que os bolsonaristas
são “um tanto quanto mais exaltados”, enquanto “somos comedidos”, explicou. Ou
seja, diferem apenas no tom do reacionarismo, o que me leva a crer que o Novo é
basicamente um PSL com focinheira e gravata borboleta.
Todos têm o direito de mudar de opinião, é claro, mas toda
inflexão desse tipo na política requer uma justificativa clara, contextualizada
e elaborada. Mudar ao sabor dos ventos é oportunismo. Mesmo assim, é salutar
esse crescente isolamento do bolsonarismo. Agora, é preciso deixar claro que
esse filho feio tem pai. Os liberais precisam assumir a paternidade. Não basta
sair à francesa.
Os co-autores deste projeto não podem agora simplesmente
lamentar como se tivessem apenas cumprido o papel de inocentes úteis. A
história precisa ser bem contada para não ser repetida. O país não pode comprar
novamente a ideia de que um extremista alucinado “tinha tudo pra dar certo”,
como achou a revista IstoÉ.
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