Há projeto a partir da desagregação? Por que ainda temos
tanta polidez no uso do conceito de fascismo, quase sempre prenhe de prenomes
latinos, aspas e constrangimentos os mais diversos?
Por Jornal GGN
Por Carlos Eduardo Rebuá – Blog Boitempo
Toda ordem social é marcada, à sua maneira, pelo controle do
tempo;
essa talvez seja a face mais invisível e mais onipresente do
poder.”
[Maria Rita Kehl, O tempo e o cão]
“Essa forma de dominação através da
dinâmica temporal que vem a ser o capitalismo.”
[Postone apud Arantes, O novo tempo do mundo]
O filme O sacrifício do cervo sagrado (2017), dirigido por
Yorgos Lanthimos, narra a história de Dr. Steven Murphy (Colin Farrell),
responsável pela morte de um homem em sua mesa de cirurgia, e o jovem Martin
(Barry Keoghan), filho do paciente, com quem estabelece uma delicada relação
após a tragédia. A trama é tecida a partir do vínculo de um adolescente com o
cardiologista, sua esposa Anna (Nicole Kidman) e seus dois filhos, o caçula
Bob, e a moça Kim. De um aparente vínculo de amizade revela-se um processo
doentio que amalgama culpa e vingança, suscetibilidade e ódio, sobretudo quando
os filhos do médico são acometidos por uma agressiva doença que os paralisa as
pernas e degenera rapidamente o organismo.
Recorrente na narrativa do diretor grego, como em O Lagosta
(2015), uma sensibilidade passiva ou um tipo de reação apática dos sujeitos
encarna uma espessura quase incomum diante da dor repentina, do trauma. A
materialização do mal não incita, de início, o susto, a resposta enérgica, o
movimento, mas a quase normalização, provocando no espectador um tempo
angustiante. O final da obra de certa maneira apresenta uma resolução possível,
sem, no entanto, abrir mão do mal-estar e do choque como afetos.
Na Nova República nunca sentimos tanto medo como agora, um
tempo presente anterior ao do governo Bolsonaro, mas organizado em termos de
vontade coletiva a partir de sua eleição, valendo-se da desorganização, do caos
e do incremento das formas de violência. Outro ingrediente que traduz relações
de força nesta média conjuntura é o desencantamento de amplos setores,
resultado de políticas e razões neoliberais, da agressão enquanto gramática
institucional, da crise econômica mundial e de pactos sociais pra menos, ambos
eliminando possibilidades concretas de experiências democráticas e o
enfrentamento de nossos estorvos.
Não custa lembrar uma sequência cronológica imprescindível
que começa em Junho e nas diversas polarizações no Estado ampliado, que não
foram vitória ou derrota simplesmente, mas a tradução de colapsos reais de/em
nossa democracia fantasmagórica[1]que é commodity e holograma. Em seguida temos
o Golpe de 2016, passando pelo assassinato de Marielle, a prisão de Lula, a
metástase das fake news no processo eleitoral de 2018, a perseguição nas
universidades federais a estudantes e movimentos antifascistas sob comando do
TSE.
Duas questões nos mobilizam nestas breves palavras: (i) há
projeto a partir da desagregação? (ii) por que ainda temos tanta polidez no uso
do conceito de fascismo, quase sempre prenhe de prenomes latinos, aspas e
constrangimentos os mais diversos? Rapidamente, como um trailer, entendemos que
para a primeira pergunta a resposta é sim e as negações têm justificação, em
maior ou menor grau, na incompreensão da ideologia enquanto hegemonia de
sentido e da hegemonia enquanto ação pedagógica. Para o segundo, temos (a
esquerda brasileira em todas as suas frentes) subestimado historicamente a
força da fragmentação e os impactos de nosso jeito especial de elaborar
coletivamente a dor, o trauma, o sofrimento nos modos de subjetivação dos
processos históricos, na experiência política, no humor, nas utopias, na
indústria cultural, nos espaços de saber.
Numa cola entre os dois pontos de inflexão há um nexo causal
entre o desmanche de formas de solidariedade/horizontes de mudança e o efeito
paralaxe de muitas interpretações do fascismo, desviadas da urgente atualização
de suas morfologias contemporâneas. A sociedade neo-neo
(neoliberal-neoconservadora) da transição do XX para o XXI é decisiva na
obliteração da percepção da catástrofe molecular do tempo fascista, uma
temporalidade que permanece para além da cronologia histórica do fascismo e que
fantasmagoriza visões de conjunto, porque funcional à generalização violenta,
mas palatável da cultura capitalista em todas as dimensões da vida. Essa
temporalidade, uma vez que o capitalismo é também um modo de dominação
temporal, dissemina experiências da duração vinculadas a perspectivas de
desencantamento, à violência, à fraude, à linearidade, à rapidez. Nem toda
configuração nesses termos termina em fascismos, mas todos os fascismos a
contemplam.
Defendemos que no longo e difuso processo de
fascistização[2] da cultura, as sociedades mais bem-sucedidas no controle do
embate entre memória e história, na lobotomia do luto e do trauma, de onde o
Brasil é caso paradigmático, têm fecundado generalizações da alienação –
fantasmagorias, que são projeções enganosas e enganos projetados –, capazes de
negar cinicamente a escravidão, as ditaduras, o nazismo, a tortura, as lutas de
mulheres, LGBT’s, negros, favelados, professores, índios, nordestinos. A
interpretação de Gramsci do fascismo como um tipo de gestão das novas formas de
conflito social[3] nos parece atualíssima. Ele não pôde verificar os
deslocamentos recentes onde fascismo ultraliberal e neofascismo bolsonariano[4]
se coadunam, tampouco as hesitações acadêmicas por aqui em estabelecer novas sínteses
entre colonialidade, escravidão, neoliberalismo, dependência, fascismo, como se
habitassem cada um o seu quadrado teórico-conceitual sem franjas, fronteiras.
Nos parece que houve um excesso, nas últimas décadas, de
análises políticas do fascismo dissociadas de sua decupagem filosófica, de uma
interlocução com o que podemos chamar de filosofia crítica antifascista, o que
aprofundou nosso estranhamento de formas de fascismo atualizadas, mas nem por
isso menos trágicas. O trato de seus efeitos hoje aparece em diversas análises
como descolado de uma interpretação não evolutiva do tempo: nossos próprios
usos do “neo”, indicando apenas o novo e não os museus de grandes novidades,
apontam para este sintoma da duração como continuum. Se a fascistização é processo
então precisamos de menos prefixos e mais atenção ao que os sufixos podem nos
dizer.
Em meio à ampliação do estado de exceção no núcleo
hegemônico do capitalismo, principalmente em suas periferias, três pensadores
merecem destaque como antídotos para a patologia citada, ao reforçarem o
fenômeno do fascismo como permanência heterogênea e, por isso, usarem fascismo
sem constrangimentos filológicos ou políticos: Leandro Konder[5], Umberto
Eco[6] e Octavio Ianni[7].
Konder defendia que o reaparecimento do fascismo, sob
condições históricas particulares, não seria óbvio, devendo ser considerado
sempre em seus movimentos de reinvenção, transformação, ou seja, em seu
desenvolvimento, sem elaborações de modelos esquemáticos. Por sua vez, Eco
defende que é preciso matizar alguns traços recorrentes do fascismo sem perder
de vista suas contradições fundamentais, atentando para o fato de que se apenas
uma característica se apresentar já temos matéria-prima para a formação de uma
nebulosa fascista. O culto da tradição, a recusa da modernidade, o deslocamento
da vontade de poder para questões sexuais, o desprezo pelos fracos, a violência
permanente, o heroísmo como norma são algumas das quatorze faces do Ur-Fascismo
(fascismo eterno) que periodicamente retorna sob vestes inocentes e invólucros
novos, devendo urgentemente ser desmascarado. Finalmente, Ianni demarca o
fascismo como uma ativa e agressiva cultura política que avançou no XX,
assumindo com o neoliberalismo a condição de sua religião, na esteira dos
efeitos de ampliação do sentimento de desencantamento do mundo e das fraturas
sociais provocadas pelos mecanismos neoliberais. Sendo intermitente, difuso e
esporádico, o fascismo – ele utiliza nazi-fascismo – também se amplia na medida
em que a globalização expande toda a soma de experiências catastróficas.
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