Num comício em Greenville, na Carolina do Norte, Donald
Trump expressou uma série de impropérios racistas e xenófobos contra a
congressista democrata Ilhan Omar, nascida em Mogadíscio, Somália, cidadã
norte-americana desde 2000. A multidão que assistia irrompeu aos gritos de
“mande-a de volta”, que tão bem conhecemos aqui como: “volta para a tua terra.”
Por Irene Flunser
Pimentel
Muitos expressaram a sua revolta e, em particular, Paul
Mason (New Statesman, 18/7/2019) concluiu que “o fascismo estava a chegar à
América”.
Sendo historiadora, não pude evitar lembrar-me também das
tiradas recorrentes de Goebbels e Himmler contra os judeus, que banalizaram o
racismo anti-semita na Alemanha. Como já aqui escrevi, a História não se repete
e, enquanto disciplina, estuda precisamente as singularidades. Ora, se o evento
é único, não poderia em rigor ser utilizado como chave em nenhuma outra
ocasião. No entanto, ao ser guardado na memória e na história, possibilita que
se recorra a ele para a ação no presente em função dessa lembrança.
Retirar de um evento passado uma lição para o presente supõe
um reconhecimento de traços comuns entre ambos e conhecimento. Por isso, em
História, a comparação é um ponto de apoio para melhor relevar as
singularidades próprias a cada sistema, permitindo distinguir, mas também
detectar as semelhanças.
Sem deixar de distinguir o que é diferente, pode-se comparar
situações históricas no mesmo contexto cronológico ou acontecimentos do passado
com outros do presente. Até ser preso em 1923, no Putsch da cervejaria de
Munique, Hitler pretendia derrubar pela violência “revolucionária” a República
de Weimar. Na prisão (a pena de cinco anos limitou-se a nove meses) não
escreveu só o Mein Kampf, mas procedeu também a uma mudança de estratégia
política. Doravante optou pela tomada do poder por via eleitoral, aliás sem
grande sucesso inicial.
Nas eleições para o Reichstag, em 1928, o partido nazi só
teve 2,6% dos votos, mas depois contou com o “milagre” da terrível crise
económica de 1929. Após fazer uma coligação com Alfred Hugenberg, o partido
nazi tornou-se no segundo maior partido alemão, nas eleições de Setembro de
1930, com 18,3% dos votos.
A dissolução do Parlamento e o uso pelo Presidente do artigo
48 da Constituição de Weimar, permitindo governar sem consentimento parlamentar
e aplicados de emergência, levou a eleições parlamentares, em Julho de 1932,
ganhas pelo partido nazi, com 37,3% dos votos, mas sem maioria absoluta. Embora
perdesse votos nas eleições de Novembro de 1932, Hitler insistiu que só
aceitaria o cargo de chanceler. Finalmente, com o apoio dos conservadores e da
Direita, foi nomeado para esse cargo em 30 de Janeiro de 1933, pelo Presidente
Hindenburg.
O novo chanceler convocou novas eleições, realizadas em
Março de 1933, onde o partido nazi obteve a maioria absoluta dos votos (43,9%).
Como se sabe, sucedeu o incêndio do Reichstag e, em 23 de Março de 1933, um
decreto deu plenos poderes a Hitler. Em três meses todas as organizações não
nazis, partidos e sindicatos deixaram de existir e o nazismo tornou-se numa
ditadura de partido único, com todos os seus adversários políticos, sobretudo
de esquerda e comunistas, nos campos de concentração. Paralelamente, começaram
a ser perseguidos os judeus, os principais inimigos raciais.
Embora não inelutável, o resultado da propaganda anti-semita
nazi foi o genocídio dos judeus europeus e o massacre em massa dos ciganos da
Alemanha, embora o Holocausto (a Shoá) só se iniciasse após a invasão da URSS,
em 1941. Até então, houve diversas etapas na política anti-semita: desde a
discriminação e retirada do espaço público dos judeus, da caracterização do
judeu à legislação anti-semita (1935) e à expulsão e arianização da propriedade
(1938). Depois, com a procura do Lebensraum(“espaço vital”) “livre de judeus” a
Leste, os nazis iniciaram uma política de guetização e deportação, que
desembocaram no genocídio.
Mas, regressando aos Estado Unidos, não por acaso as
congressistas da ala esquerda do Partido Democrata atacadas de forma racista
por Trump, Omar, Rashida Tlaib, Ayanna Pressley e Ocasio-Cortez, denunciaram o
tratamento desumano dos migrantes nos campos fronteiriços. A última comparou
estes com os campos de concentração (presume-se que nazis) – não com os centros
de morte do Holocausto – e foi considerada anti-semita e banalizadora do
Holocausto.
A ironia terrível é que Trump se erigiu como campeão do
anti-semitismo. Os mesmos extremistas de direita que, desde o século XIX, têm
sido os expoentes do anti-semitismo moderno são os que agora, em nome da defesa
do regime que vigora em Israel, acusam outros de anti-semitismo, o qual, como
qualquer racismo e identitarismo branco, está aliás em alta.
Também já aqui referi a diferença entre campos de
concentração (Dachau) e centros de morte (Treblinka ou Birkenau) onde
decorreram os assassinados em massa de judeus e ciganos.
Dito isto, a comparação em História é de tal forma
instrutiva que a International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA), na qual
Portugal acaba de ingressar, não só a defendeu, como esclareceu que o
reconhecimento de indícios de genocídio é a sua principal tarefa. O estudo e a
caracterização do genocídio dos judeus permite detectar indícios de qualquer
outro ainda em gestação.
Há quem tenha relutância em utilizar a palavra “fascista”
para caracterizar o tipo de pulsão autoritária de Trump, Bolsonaro ou Órban.
Tem sido criticada como anacrónica e abusiva a comparação entre períodos tão
diferentes como os séculos XX e XXI. É certo que se deve distinguir, mas, ao
falarmos coloquialmente de conceitos como fascismo, sabemos não só que estamos
a falar de formas de regime existentes no século XX, como estamos a
caracterizar algo, sem que se tenha de usar várias frases para significar o que
se trata.
E relembro que em todos os casos da chegada ao poder dos
actuais populistas autoritários e nacionalistas, as diversas etapas não só se
assemelharam entre eles como se pareceram com processos pretéritos. Penso mesmo
que, se nada sabem de História, têm assessores que a conhecem e tudo fazem,
neste mundo globalizado, para que as suas etapas se assemelhem às ocorridas no
passado industrial. Primeiro, ganham eleições por via democrática; tentam obter
influência nos meios de comunicação social; banalizam o racismo e a xenofobia,
o sexismo e a homofobia; polarizam a sociedade, erigindo bodes expiatórios;
elegem um crime a combater – a corrupção, que possibilita atingir as elites e
os políticos – e, finalmente, capturam a Justiça.
Todos tentam esvaziar a moral e a ética, banalizar o mal e
proceder a falsas equivalências, a maior das quais é a da verdade e mentira.
Também no nazismo, qualquer moral e verdade passaram a ser julgadas segundo o
critério de estarem de acordo com o interesse e a preservação do Volk alemão
“ariano”, cuja unidade era encarnada no Führer.
Hannah Arendt assinalou que o nazismo foi um perigoso buraco
negro que engoliu qualquer possibilidade de ética e que, em tempos sombrios, a
lei é suspensa e a moral é radicalmente negada. E a razão pura não é garantia
suficiente contra o mal radical, que impede os seres humanos de se colocarem
empaticamente na posição dos outros.
Em Eichman em Jerusalém, Arendt definiu o “crime contra a
humanidade”: “Foi só quando o regime nazi declarou que o povo alemão desejava
não apenas expulsar os judeus da Alemanha, mas também fazer com que a
totalidade do povo judaico desaparecesse da face da Terra, que apareceu um novo
crime.” Tentativas de expulsão, como de ciganos, na Itália, já estão a ocorrer;
vamos deixar que as etapas de radicalização do mal se sucedam?
Via DCM
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