Por Levon Nascimento
A sensação de injustiça tem sabor. No caso, um gosto amargo, que engulha o estômago e produz um sentimento de secura, vazio e raiva. É algo extremamente ruim e, provavelmente, faz muito mal à saúde física e moral que quem a nutre.
Pense, então, como devem ter se sentido os povos que habitavam o Brasil, há quinhentos anos, quando os homens brancos portugueses invadiram suas aldeias atirando, tocando fogo nas ocas, matando homens, estuprando mulheres, retirando fetos de ventres femininos abertos a golpes de facão e espada, perfurando olhos e estilhaçando membros indefesos. O medo, a dor, a humilhação e a impotência na sua forma mais brutal. A noção de que não havia ninguém por quem chamar; nenhum protetor a quem pedir socorro; nada de salvador por quem esperar. Enfim, a ausência de um poder a lhes salvar do suplício. Sensação de injustiça!
Avance para algumas décadas depois e transporte-se para um navio de tráfico negreiro em meio ao Atlântico, fazendo o percurso entre África e América, numa noite tenebrosa de tempestade. Corpos bronzeados e luzidios, da cor do ébano, nus como a liberdade da qual foram despidos, amarrados por grilhões nos pés e nas mãos, esfomeados e doentes, doloridos na carne e na alma. As mentes a martelar, como numa sessão de tortura, o instante em que foram capturados, arrancados e afastados de seus entes, pais, mães, mulheres, maridos, filhos em África, torpemente vendidos como escravos, objetos da nascente economia mercantilista-escravocrata de então. A quem poderiam gritar? Recorrer de que? Qual juiz lhes daria razão e restituir-lhes-ia o sentido de suas vidas de antes? Sensação de injustiça!
Mais alguns séculos adiante, na fria Europa, trabalhadores e trabalhadoras nas fábricas da industriosa Inglaterra. Dezesseis horas diárias dentro dos galpões das tecelagens, inalando gases e a fuligem da lã, em atividades repetitivas à exaustão. Seres humanos plantados em ambientes lúgubres, úmidos, sombrios, de pouca ventilação, fechados à entrada da luz do sol. Desprovidos dos direitos mais básicos. Submetidos todos, a família inteira, da criança de dois anos, passando pelos adolescentes e jovens, às mães e aos pais, e os idosos, à triste e determinista rotina das inovadoras rotatórias movidas a vapor. Constituíam-se em vítimas do tão louvado progresso que se inaugurava. De quem esperar complacência? Qual patrão ou governo as lhes prover dignidade? Donde aguardar clemência? Quem seria por eles? Sensação de injustiça!
Já no século 20, na década de 60, jovens estudantes, líderes comunitários, trabalhadores sindicalizados, no Brasil, todos esperando pelas reformas de base que poderiam antecipar em décadas o tão necessário e esperado desenvolvimento com equilíbrio social para o país. Na noite sombria de 31 de março para 1º de abril, tanques se levantam, botas militares marcham, a democracia é pisoteada, o governo constitucional eleito pelo povo é deposto. Os interesses econômicos dos poderosos mais uma vez tripudiam sobre os da maioria do povo pobre. Cassações, fechamento da ordem democrática, expurgos, prisões arbitrárias, censura e perseguição, tortura e desaparecimento. Amparados pelo imperialismo norte-americano, compungidos pela velha moléstia aristocrática da “casa grande”, classe média e elites se seduziram e se cegaram ante ao clamor por liberdade política e igualdade social. De novo, de quem suscitar socorro? De onde aguardar salvação? O que fazer? Sensação de injustiça!
Nos dias de hoje, apesar da aparente normalidade democrática e da suposta liberdade de expressão, a disputa legítima pelo poder, por parte do povo e das pessoas que colocam os interesses coletivos acima dos seus próprios, se faz contra os interesses mais mesquinhos e inconfessáveis. A degradação e a fraude do sufrágio ocorrem com o suborno coletivo das mentes. A compra da consciência e do voto. O uso do recurso público – sagrado para a solução das necessidades de libertação dos mais necessitados – inútil e vilmente utilizado como patrimônio próprio. A coerção de pessoas e de comunidades inteiras. A compra desleal e vil. A utilização de todos os recursos, supostamente criados para a defesa social, hereticamente voltados para coibir e coagir. Tudo isso desmobiliza e desmotiva os imbuídos de real interesse público; sacrifica a boa intenção; e sabota a boa inteligência. Ressalta as oligarquias; premia o menor esforço e falta de competência; exalta o puxa-saquismo; e pisoteia as melhores ideias. A quem os bem intencionados podem recorrer, se até mesmo o poder de aplicar a justiça se cala, se omite e se acovarda? De onde ou do que solicitar equanimidade e garantia de respeito? Mais uma vez, sensação de injustiça!
Para todas essas “sensações de injustiça”, iguais ou maiores, demorados ou imediatos, “sinais de esperança”! Para os nativos do Brasil, as esperanças imortais estão presentes nas lutas antigas ou atuais de Sepé Tiaraju, Juruna, Gaudino, Kaiowás-Guaranis, Casaldáliga e outros tantos! Dos negros, se levantaram imortais heróis como Zumbi, Chica, Patrocínio, Rebouças, Castro Alves, Mãe Menininha e muitos outros a espraiar esperanças cor-de-noite-brilhante! Para os trabalhadores de outrora e de hoje, comprimidos por máquinas desumanas ou por ditaduras sanguinárias, as esperanças são despertadas por tantos como os cartistas, os ludistas, os socialistas utópicos e científicos; as esperanças guerreiras de homens e mulheres como Olga e Prestes, Brizola, Lula e Dilma, Herzog e Tito de Alencar, Zuzu e Guevara. Para a democracia imperfeita e mutilada de nossos dias, de nossa cidade, a esperança no rosto do povo nas portas do Judiciário, em frente aos Fóruns e nas praças, carregando bandeiras cor-de-sangue e cor-de-céu de sonhos e de liberdade, a pé ou montados em bicicletas de sonhos, a manifestar que o interesse público é dom que não se compra nem se vende, que o direito de um precisa estar condicionado ao direito de todos! Espera... Esperança... Esperanças!
E se todas essas esperanças falharem, ainda restará uma esperança maior. Esperança de um jovem galileu que por aqui esteve há dois mil anos apenas praticando o amor. “Estranhamente”, mesmo amando tanto, foi condenado à morte por quem detinha o poder político em sua época. Apesar de todo o “sentimento de injustiça” que permeou sua morte numa cruz, brindou a todos com a “esperança vibrante” de voltar a viver ressuscitando três dias depois de sua execução pelos romanos. Espera... Esperança... Esperanças... presentes no doce sabor da justiça; exaladas no suave perfume da paz!
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