Embora o movimento negro e o feminismo estejam se tornando
cada vez mais abrangentes, várias pessoas ainda são excluídas dos espaços de
luta política. É o que acontece com as mulheres negras, especialmente aquelas
que são pobres e nordestinas, que sofrem enorme preconceito e ainda são
marginalizadas, mesmo dentro dos movimentos sociais.
Por Jarid Arraes* para o Blogueiras Negras
Esse problema não é uma exclusividade do Estado ou de
entidades que promovem ações de conscientização, mas também uma falha
proeminente dos movimentos sociais em si. O movimento negro e o feminista
acabam priorizando as pessoas sudestinas, o que monopoliza o discurso, de modo
que as ações políticas desses grupos não englobam a realidade de todas as
mulheres negras. Muitas das vivências e demandas políticas das mulheres negras
nordestinas são soterradas e acabam esquecidas sem jamais serem contempladas.
Ser mulher negra em uma cidade como São Paulo certamente não
é a mesma coisa que ser mulher negra no Cariri. Cada Estado ou região
geográfica possui seu próprio conjunto de características e especificidades
culturais. Não é possível construir um molde universal para todas as mulheres
negras brasileiras: a diversidade do Brasil é imensa e se for considerada a
discriminação já sofrida por pessoas nordestinas – especialmente aquelas de
cidades interioranas ou áreas rurais -, revela-se uma realidade extremamente preocupante.
O interior do nordeste tem uma longa história de seca e
religiosidade. A possibilidade de equiparidade entre as mulheres se torna
impossível sem que seja considerada a realidade da mulher negra católica que
mora com vários filhos em uma casa de taipa no meio do sertão. E a realidade
urbana da mulher negra no Nordeste, especificamente no Ceará, é muito mais
peculiar do que a imagem estereotípica do nordestino.
O Cariri é uma região onde a miscigenação é hegemônica e o
embraquecimento da população é extremamente recorrente. Não se fala em
negritude, pois a mesma é compreendida como um fenômeno externo: as pessoas
negras que vivem no Cariri e se reconhecem como tais são geralmente vistas como
provenientes de outros estados brasileiros. O povo caririense falha em se
reconhecer como negro, de modo que termos como “moreno”, “moreno escuro” ou
“moreno claro” acabaram se popularizando e tornaram-se um axioma local.
Essa face embraquecedora da miscigenação caririense é
bastante evidente. Durante a realização do Censo 2010, foram entrevistadas no
centro da cidade famílias inteiras de pessoas negras que não se reconheciam
como tais. É difícil encarar essa realidade quando há uma associação tão grande
entre negritude e pobreza, uma vez que a maioria massiva das pessoas vivendo em
situação de rua são negras. A identidade negra subjetiva e cultural é
simplesmente esquecida.
A religiosidade católica e os valores tradicionais do
patriarcado estão extremamente enraizados na história e cultura carirense e a
realidade da mulher negra no interior do Ceará é fortemente influenciada por
esses fatores. Expor o próprio cabelo crespo natural, por exemplo, é um ato
praticado apenas pelas mais ousadas. A possibilidade de resgate das religiões
de matriz africana é pesarosa: todas as escolas municipais possuem imagens de
santos católicos e, em muitas delas, a discriminação contra crianças de
famílias candomblecistas é frequente. Além disso, as estatísticas de violência
revelam que mulheres negras e pobres são as maiores vítimas de feminicídios no
interior do Ceará.
Apesar do peso da situação, as capitais e outras regiões do
Brasil voltam pouquíssima atenção para essa realidade. Não há espaços para que
sejam feitos discursos ou debates, tampouco há interesse acadêmico em compreender
as nuances culturais do Cariri ou para que o interior do Ceará se torne um
campo de pesquisa. A grande massa dos discursos de intersecionalidade dos
movimentos sociais não conseguem abarcar a situação da mulher negra caririense.
Ser mulher nessa região, ou ainda ser negra, pobre ou parte da sigla LGBT,
acarreta uma realidade distante das teorias acadêmicas, de forma que ninguém do
sudeste seria capaz de representá-la. A mulher negra caririense é a única que
conhece seu contexto de vida e é ela quem deve colocá-lo diante das demais
companheiras de luta.
Até mesmo eventos como a Marcha das Vadias – que são
realizadas em todo o país, incluindo as que acontecem no Cariri – não dão conta
de representar todas as nuances: há incontáveis mulheres que lidam com uma
rotina de misoginia e simplesmente não se sentem empoderadas aderindo ao rótulo
de “vadias”, não importa o quanto essa ressignificação seja libertadora para
outras. A depender da localidade e da cor da mulher chamada de “vadia”, a
palavra funciona como um castigo, uma barreira social potencializadora do
quadro já agudo de exclusão e violência.
As mulheres nordestinas, do interior, dos quilombos e
comunidades sertajenas, também precisam ser lembradas e contempladas. É
necessário atenção e receptividade para escutar as demandas das cearenses e
promover uma inclusão verdadeira, que naturaliza a sua presença ao invés de
contá-la como exceção. Essas mulheres precisam de muito mais do que um texto em
um blog na internet; elas precisam de reconhecimento, dignidade e oportunidades
para que possam ser inseridas socialmente.
*é blogueira
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