Marginalzinho: a socialização de uma elite vazia e covarde.
Parada em um sinal de trânsito, uma cena capturou minha atenção e me fez pensar
como, ao longo da vida, a segregação da sociedade brasileira nos bestializa
(Imagem: Pragmatismo Político) |
Era a largada de duas escolas que estavam situadas uma do
lado da outra, separadas por um muro altíssimo de uma delas. Da escola pública
saíam crianças correndo, brincando e falando alto. A maioria estava
desacompanhada e dirigia-se ao ponto de ônibus da grande avenida, que
terminaria nas periferias. Era uma massa escura, especialmente quando
contrastada com a massa mais clara que saia da escola particular do lado:
crianças brancas, de mãos dadas com os pais, babás ou seguranças, caminhando
duramente em direção à fila de caminhonetes. Lado a lado, os dois grupos não se
misturavam. Cada um sabia exatamente seu lugar. Desde muito pequenas, aquelas
crianças tinham literalmente incorporado a segregação à brasileira, que se
caracteriza pela mistura única entre o sistema de apartheid racial e o de
castas de classes. Os corpos domesticados revelavam o triste processo de
socialização ao desprezo, que tende a só piorar na vida adulta.
Mas eis que, de repente, um menino negro, magro e
sorridente, ousou subverter as regras tácitas. Brincando de correr em
ziguezague, ele “invadiu” a área branca e se esbarrou num menino que,
imediatamente, se agarrou desesperadamente no braço da mulher que lhe buscara.
Foi um reflexo automático do medo. O menino “invasor” fez um gesto de desculpas
– algo como “foi mal” -, e voltou a correr entre os seus, enquanto que a outra
criança seguia petrificada.
No olhar do menino “invadido”, havia um misto de medo, de
raiva, mas principalmente, de nojo – como que se a outra criança tivesse uma
doença altamente contagiosa. Não é difícil imaginar o impacto de esse olhar no
inconsciente do menino negro e pobre. Este aprendia, desde muito cedo, que era
um intocável, que vivia em uma sociedade na qual seu corpo, na esfera pública,
valia menos que o de um menino da mesma idade, que ainda não tinha nenhum
mérito conquistado, apenas privilégios herdados. As consequências desse gesto
minúsculo serão trágicas para o menino “invadido“, pois é vítima da ignorância
social. Mas será muito mais trágica para quem é negro e desprovido de capital
econômico, social e cultural. Para que essa que criança não se corrompa no
futuro, ela precisa ser salva do olhar de nojo.
É possível que, por meio de leitura e mistura, o menino
amedrontado se engrandeça politicamente no futuro, se liberte do muro que lhe
protege e dispense o braço da babá. Mas, infelizmente, há uma tendência grande
de que ele, cercado por medo e preconceito, passe o resto de sua existência se
protegendo do “marginalzinho”. Pivetes, favelados, fedorentos: isso é tudo que
o ele ouve sobre seus vizinhos. Trata-se de uma verdade histórica a priori,
para além da qual não se consegue pensar. Essas categorias compõem o discurso
forjado sobre a pobreza, que, em última instância, visa à intervenção e à
manutenção do poder. Reproduzindo este discurso, então, o menino tornar-se-á um
adulto. Ele blindará seu carro, colocará alarme em sua casa, pedirá a morte de
traficantes. Dirá que rolezinho é arrastão, pedirá mais polícia e curtirá a
vida em camarotes. Pode ser até que ele peça a volta da ditadura. Achando que é
um cidadão de bem que age contra a marginalidade do mal, forma-se um perfeito
idiota.
Ah, mas os pobres da África a gente gosta
Em 2012, enquanto eu estava em Harvard, recebi a visita de
uma orientanda do Brasil. Ela tirava fotos e se exibia no Facebook: “#Orgulho”,
“Minha orientadora é pós-doutora por Harvard, e a sua?”. Em uma pausa, ela me
perguntou em que escola eu havia estudado para ter chegado a uma universidade
da elite internacional. Ela buscava identificação. Eu era um exemplo de uma
mulher jovem, branca e “bem sucedida”, exatamente como ela se projetava nos
próximos dez anos. Eu, sabendo que ela havia estudado do lado de dentro do
muro, respondi que passei a parte mais rica da minha vida, dos 2 aos 17 anos de
idade, do outro lado do muro. Ela não postou, mas bem que pensou:
“#MinhaOrientadoraÉMarginalzinha…”.
A reação dela era de decepção, vergonha e certa pena de mim.
Ela ficou vermelha, desconcertada, sem chão. Engasgou-se e começou a tossir
para disfarçar a cor de suas bochechas. Isso tudo porque ela sabia muito bem
que tinha passado aproximadamente quinze anos de sua vida chamando pessoas como
eu de “tigrada”. Ela se socializou negando a alteridade e, portanto, nunca
imaginou que a relação de poder entre os atores dos diferentes lados do mundo
se inverteria. Tudo que ela havia aprendido sobre aquele Outro era simplesmente
de que se tratava de uma não-persona. O motivo pelo qual o seus vizinhos tinham
menos do que ela não cabiam em sua imaginação. Fazendo parte da meritocracia
sem mérito, ela simplesmente merecia ter o que tinha.
Ela, então, tinha que desvendar um enigma: como uma pessoa
que tinha vindo de um lugar tão ruim podia estar em uma Universidade tão boa? A
única maneira de ela se reconciliar com seus próprios preconceitos era me
classificar como um daqueles casos excepcionais de superação que aparecem Globo
Repórter. Eu respondi que não, que o destino de quem sai de lá tem sido muito
variado. Há quem entra para o crime e morre antes dos 18 anos, mas a maioria
tem histórias de lutas, perdas, mas, sobretudo, conquistas. Uma pena que ela
nunca quis saber dessas histórias e deixou de crescer por meio da alteridade.
Ironicamente, essa aluna estava voltando de um programa
voluntário para ajudar uma comunidade miserável de Ruanda. Havia poesia – e
alívio cristão – em (arrogantemente) querer salvar a África. Por algum motivo,
os pobres e negros do lado de lá do oceano (que não assaltariam a sua
caminhonete já adquirida aos 21 anos) eram mais dignos de sua profunda bondade
do que os pobres e negros que ela havia ignorado por toda a sua existência.
Eu sempre me pergunto as razões pelas quais esse perfil de
elite se comove com a pobreza romantizada, mas nega a solidariedade ao pobre da
mesma cidade. Nessas horas, me vem à cabeça o dia em que meus colegas de escola
estavam participando de um campeonato de futsal, mas não tinham quadra para
treinar.
Marcamos uma reunião com a diretora da escola do lado no intuito de
solicitar, em nome de nossa vizinhança, o uso da quadra durante a noite, que
ficava inativa. Em um ato de profunda humilhação, fomos “escoltados” até o
escritório e recepcionados com as piadas das outras crianças (que não teriam
tido coragem de debochar fora da fortificação). Depois de muita resistência, a
diretora liberou o uso do ginásio, o que foi vetado uma semana depois em função
de uma bola que tinha desaparecido. Apesar de eu ter convicção de que não houve
roubo, eu nunca vou poder afirmar isso com 100% de certeza. O que eu posso
afirmar para o resto da minha vida é que, desde então, eu sou contra a pena de
morte – e de toda a concepção de que bandido bom é bandido morto – justamente
porque muitos inocentes terão suas vidas abortadas por causa do preconceito.
Quinze jovens tiveram seu sonho de competir interrompido por causa de uma falsa
verdade: a de que nós só poderíamos ser ladrões. Consequentemente, “não adianta
mesmo querer ser generoso e dar oportunidade para marginal”.
Entender que o pobre do lado tem o mesmo valor do pobre da
África é uma tarefa para uma vida toda, pois envolve uma postura política de
grandeza reflexiva intelectual e o reconhecimento de nossa responsabilidade
sobre o Outro. Reclama-se da ineficiência do Estado brasileiro, mas toda a
violência estrutural gerada por este Estado é reproduzida por sujeitos covardes
e apáticos que negam, estigmatizam e inviabilizam o Outro.
Faz vinte anos que eu deixei a escola. Em minha última
visita, em 2014, as instalações estavam muito mais deterioradas. As goteiras
continuam lá. Sem professores em sala de aula, os alunos não podem ir para área
de esportes porque o lugar está interditado há seis anos por risco de o teto
desabar. Mas o muro da escola do lado continua a crescer.
Desde pequena eu aprendi que a violência é holista. As
elites não são vítimas da violência urbana. A agressão sofrida é a mesma que se
pratica. O olhar de nojo é também assassino. E os muros ferem mais do que
protegem. Será que as pessoas imaginam o quanto podem crescer derrubando muros?
Rosana Pinheiro-Machado, Carta Capital
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