Como explicar que um Papa, pela primeira vez, fala de ecologia num documento do “magistério” da Igreja? O Papa é o chefe espiritual (e político) de mais de um bilhão de homens e mulheres católicos em todos os continentes. Compartilha, com o outro bilhão de cristãos (evangélicos, protestantes, anglicanos, ortodoxos), a narração bíblica da criação (no Gênesis), que impõe ao homem dominar e proteger a terra e todos os frutos de uma natureza criada por Deus.
Da noite dos tempos, o Papa intervém, em tempo oportuno (e
com frequência inoportuno!), nos afazeres terrestres, fala de tudo o que diz
respeito à humanidade, sua grandeza e suas fraquezas, condena as guerras e a
opressão, exalta os pobres, milita “pela vida”, prega a favor da justiça
social, por um mundo mais justo, um gênero humano mais solidário. E precisamos
esperar este dia 18 de junho de 2015 para que um Papa publicasse, finalmente,
uma encíclica, quase inteiramente escrita por seu próprio punho, dedicada ao
ambiente, à “salvaguarda da Criação” e daquela que com razão define “a casa
comum”, com as relações entre os seres vivos num mundo vivo, as ameaças
ecológicas e climáticas que pesam sobre o futuro do planeta e sobre o destino
da humanidade.
Tomada de consciência
Alguns o deplorarão, como aqueles bons católicos
tradicionalistas (não necessariamente integralistas) que ainda identificam a
ecologia com uma batalha dos “esquerdistas”, dos filhos do ’68 e do Larzac. São
a favor de uma “ecologia humana” (defesa da vida, da lei natural, da família,
luta contra o aborto e o matrimônio para todos), mas desconfiam de uma
“ecologia ambiental e global”. O Papa será também criticado – e a coisa já
começou nos Estados Unidos – por todos os conservadores céticos sobre as causas
das mudanças climáticas, para os quais o aquecimento não é, em primeiro lugar,
o resultado da atividade humana e social, mas de dados puramente naturais.
Mas muitos outros ficarão bem felizes com esta (tardia)
tomada de consciência na cúpula da Igreja. Todos aqueles, certamente, crentes e
ateus, que, no mundo militante, estão na vanguarda das batalhas ecológicas.
Também todos aqueles que, nas comunidades cristãs, têm uma experiência direta,
em particular no mundo rural, no qual se protege – ou se destrói – o elo com a
vitalidade dos seres da natureza. Enfim, todos aqueles que compartilham desta
sensibilidade cristã ao tema bíblico da “salvaguarda da Criação”, indissociável
das outras lutas evangélicas pela “paz” e a “justiça”. Sobre isto, os cristãos
protestantes e ortodoxos sempre estiveram mais na frente dos católicos. Desde
1990, o Conselho mundial das Igrejas (com sede em Genebra) reunia em Seul uma
assembleia geral sobre o tema “Justiça, paz e salvaguarda da Criação”. Os
católicos não estavam presentes. A eclipse, sobre este tema, da doutrina
católica, demasiado presa apenas pela “ecologia humana”, iludiu por muito tempo
os teólogos da vanguarda. Como o patriarca ortodoxo de Constantinopla, chamado
o “patriarca verde”, está na chefia de muitas associações de defesa do
ambiente.
Certamente se poderá dizer que os predecessores do Papa
Francisco foram totalmente mudos sobre o argumento. Mas Paulo VI, João Paulo
II, Bento XVI ligavam os desafios ecológicos à esfera da “moral”, ou seja, dos
interrogativos sobre a família e sobre a bioética. Para eles, a “degradação” do
mundo era uma constatação entre as outras, consciente ou não, do projeto de
Deus para a humanidade e para a Criação. Em sua encíclica sobre a “caridade”
(Caritas in veritate [Caridade na verdade] de junho de 2009, Bento XVI punha em
discussão os entusiasmos de uma globalização que perturba todos os esquemas de
desenvolvimento, os modelos econômicos e as estruturas sociais até as “bases”
materiais da existência do planeta. Mas defendia em primeiro lugar uma
“ecologia do homem”, no qual a liberdade e a responsabilidade individual se
articulavam com o desenvolvimento. “Existe uma ecologia do homem”, sublinhava
ele ainda em 2011, diante do Bundestag em Berlim.
Ecologia global
O Papa atual ultrapassa um novo limiar. Passa da ecologia do
homem à ecologia global. Não é por nada que ele escolheu, na tarde de sua
eleição, o nome de Francisco, alusão a Francisco de Assis, santo patrono dos
ecologistas, símbolo de fraternidade universal, que dedicou sua vida à
reconciliação de todo o mundo criado, terra e céu Acumular bens era para ele
uma loucura. Francisco de Assis percorria as estradas, mendigava o seu pão,
pregava a conversão. Antes de morrer, compôs o famoso Cântico das criaturas,
universalmente conhecido, no qual convidava o “irmão Sol” e “nossa mãe Terra” e
todas as criaturas a louvarem Deus.
O título da encíclica do Papa Francisco, “Louvado seja”, é inspirado
neste Cântico das criaturas de Francisco de Assis. O Papa Francisco – Jorge
Mario Bergoglio – vinha de um continente, a América Latina, no qual as
urgências ecológicas estão entre as mais graves. Já tinha mostrado sua grande
sensibilidade aos problemas do ambiente por ocasião da conferência dos bispos
latino-americanos de Aparecida, no Brasil, em 2007. “Eu ouvia os bispos
brasileiros falarem do desflorestamento da Amazônia”, contará ele mais tarde.
Como arcebispo de Buenos Aires, apresentou recursos diante da Corte suprema da
Argentina para bloquear empresas de desflorestamento no norte de seu país. Hoje
se diz em Roma que, para a redação da encíclica, ele consultou padres
empenhados em todas as lutas da terra da Amazônia.
Mas, não basta. Tornado Papa, o bispo jesuíta
latino-americano fez da luta à pobreza o objetivo prioritário de seu
pontificado. A crítica violenta do “neocapitalismo selvagem”, que formula
regularmente, do “neocapitalismo selvagem”, do modelo econômico ultraliberal e
produtivista, do acúmulo de riquezas improdutivas, não é nova no discurso da
Igreja. Desde a encíclica “Rerum novarum” do Papa Leão XIII – em 1891 – a
Igreja produziu um corpus de “doutrina social” sólido, que denunciava
vigorosamente as desigualdades sociais, respeitado e seguido por gerações
inteiras de responsáveis políticos, patronais, sindicais, associativos. Mas,
pela primeira vez – e é a novidade da encíclica publicada no Vaticano aos 18 de
junho – a Igreja menciona as consequências, em termos ecológicos, traduzidas em
outras tantas ameaças para o inteiro planeta, de sua radical contestação dos
modos de produção, distribuição e consumo. Após o texto de 2013 que denunciava
a “cultura do descarte” e do esbanjamento dos países ricos, a imprensa
conservadora dos Estados Unidos havia definido Francisco como “Papa marxista”.
Amanhã, tornar-se-á o “Papa ecologista”, louvado por uns, detestado pelos
outros.
Via DCM
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