João Henrique Andrade, das noitadas de anarquia em João Pessoa para a advocacia em Paranavaí
João Henrique Andrade - Foto - Facebook
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Nos anos 1980, João Henrique Andrade percorria as ruas de João Pessoa, na Paraíba, usando calças jeans rasgadas, jaqueta de couro com patches, rebites e frases, além do tradicional tênis converse ou coturno. “Andar com calça rasgada em 1986 tinha dois significados para a maioria das pessoas: você estava pedindo dinheiro ou era maluco. Então era difícil”, admite.
Integrante do movimento punk de João Pessoa, João Henrique,
que começou a trabalhar com 13 anos, sempre marcava presença no Gueto, um lugar
conhecido como o submundo da noitada punk. No local eram realizados muitos
shows, discussões e estudos sobre anarquismo e ações do Grupo de Ação
Libertária (GAL), aliado da Confederação Operária Brasileira (COB).
Participante das panfletagens, Andrade era o vocalista e
guitarrista da banda Mercenários da Anarquia (M.E.R.D.A.) que chegou a compor
mais de 30 músicas até o final da década de 1980.
Naquele tempo, os eventos de punk-rock também chegavam ao
centro, levando uma legião de anarquistas para o Teatro Lima Penante. “O
público sempre lotava as festas punks em que tocávamos, até porque era um
estilo de vida.
Só não chegamos a gravar nada porque na época era muito caro
e não tínhamos acesso a nenhum estúdio, uma realidade bem diferente da atual”,
explica João Henrique, lembrando que a tecnologia era precária e os
instrumentos musicais de boa qualidade eram praticamente inacessíveis.
Antes de formar a primeira banda, Andrade começou a fazer
aulas de violão clássico. Entediado, agitado e motivado pelos ideais de
contestação que conquistavam os jovens da época, decidiu comprar uma guitarra.
“Eu queria fazer barulho. Então montei a M.E.R.D.A. em 1986
e escrevemos as canções ‘Ônibus’ e ‘A Balada do Vagabundo’. Entendíamos pouca
coisa de música, mas o nosso estilo não exigia mais que três ou quatro notas e
uma boa batida. Era coisa simples e que ajudava a dar voz para as insatisfações
da época”, enfatiza.
Amigo de Williard Fragoso, realizador do programa Jardim
Elétrico, transmitido pela Rádio Universitária de João Pessoa, João Henrique
conta que a programação era baseada em muito rock e também na divulgação das
atividades e eventos do movimento punk. “O Jardim Elétrico deu a oportunidade
para que muita gente conhecesse os grandes clássicos do gênero. Também
estimulava e ajudava as bandas locais”, garante.
Quem levava informações e novidades sobre o que acontecia no
cenário punk mundial eram os membros da banda Restos Mortais que viajavam com
frequência para São Paulo. Outro destaque da época era a banda Disunidos que
realizou três edições do show “União de Forças”.
“A cena não vingou muito porque era difícil articular o
movimento. Só que tínhamos muitos fanzines [revistas pequenas feitas pelos
próprios fãs] e aquela coisa boa da sujeira, do selvagem, do bruto. Isso era
legal! Lembro até hoje de Urubus Leprosos, uma banda que o pessoal curtia muito
em João Pessoa. Eram punks que faziam releituras de músicas de Reginaldo Rossi,
Odair José, entre outros”, relata.
No mesmo período, Andrade conheceu a banda de rock carioca
Hojerizah que emplacou sucessos como “Que Horror” e “Pros Que Estão em Casa” e
tinha como vocalista o célebre Toni Platão. “Outro dia conversei com o
Clemente, dos Inocentes.
Um cara muito pra frente. Comentei com ele sobre as
Mercenárias, um grupo pós-punk que o Edgard Escandurra [do Ira!] produziu no
início dos anos 1980. Elas estão coroas e continuam na ativa, cantando”,
revela, sem deixar de mencionar que a banda punk Cólera, fundada em 1979 em São
Paulo foi uma grande referência para os Mercenários da Anarquia.
Influenciado pelo livro “As Cinco Lições de Psicanálise”, de
Sigmund Freud, João Henrique compôs músicas norteadas pelo conteúdo
introspectivo e sonoridade psicodélica. “A base eram os níveis da personalidade
humana, o estado de consciência e inconsciência que Freud divide em id, ego e
superego”, confessa.
Em 1988, escreveu “Quarta-Feira Cinzenta” na quarta-feira de
cinzas, música que integrou o repertório da segunda banda, a ID. “Tinha lido
muito o apocalipse da Bíblia. Então sentei na cama com a minha velha Gianini
branca e assim saiu a letra e a música numa pancada só. Chegamos a nos apresentar
depois no Espaço Cultural José Lins do Rego e na Praça do Povo em João Pessoa”,
narra.
Quando se mudou para o Paraná em 1991, Andrade se afastou um
pouco da cultura punk para tocar em barzinhos. Em Cruzeiro do Sul, a pouco mais
de 60 quilômetros de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, ajudou a reorganizar a
banda MDC, nome extraído da música “Tu És o MDC da Minha Vida”, de Raul Seixas.
“Parei de cantar minhas composições nessa época. Só retomei quando vim pra
Paranavaí em 1997. Voltei a compor em frequência menor e me aproximando mais do
pop, de algo ainda mais simples”, diz.
Em Paranavaí, João Henrique retomou os estudos e se casou
com Luzimar Ciríaco Andrade. Por incentivo de um tio, e contrariando todas as
expectativas, ingressou no curso de direito. “Eu queria ser jornalista e isso
era o que todo mundo da minha família costumava achar que eu seria. Acabei me
formando na área e comecei a advogar”, confidencia.
Embora seja reconhecido como músico, Andrade prefere se
definir apenas como punk, numa perspectiva bem pessoal. Justifica que carrega
na essência o apego ao minimalismo e ao improviso, sem se preocupar muito com
técnica. “Embora eu toque outros estilos hoje, ainda gosto muito do punk. Acho
que é o som mais extravasante que existe. Não é difícil de tocar e alegra
bastante. Tenho muitas coisas na cabeça, então acho que consigo fazer um disco
numa tarde”, reitera sorrindo.
Em parceria com a esposa Luzimar, João Henrique realiza
shows beneficentes para ajudar pessoas doentes ou que estão enfrentando grandes
crises financeiras. “Também fazemos parte do grupo ‘Doutores da Tapioca’,
formado por advogados e amigos. Tudo que arrecadamos é doado”, assinala. Como
palestrante, ministra cursos de oratória com duração de 15 a 20 horas, além de
oficinas de empregabilidade para jovens que estão em busca do primeiro emprego.
“É um trabalho que fazemos de graça e com muito prazer para
entidades que não visam lucro”, afirma. Atual presidente da Associação
Negritude de Promoção da Igualdade Racial de Paranavaí (Anpir), João Henrique
está se empenhando em firmar parcerias para a realização de oficinas de
percussão na periferia de Paranavaí. O objetivo é ensinar crianças e
adolescentes a produzirem e a tocarem os instrumentos.
O retorno ao punk-rock
Atualmente João Henrique Andrade tem uma grande parceria com
o poeta e letrista João Zaia, de Prudentópolis, no Sudeste paranaense, com quem
já produziu mais de dez composições. “Hoje o que mais me inspira são as coisas
do coração e da vida. O ódio generalizado, o poder da grande mídia e a mudança
de temperamento das pessoas na internet também me estimulam a escrever e fazer
o bem”, admite.
Andrade começou a gostar de música ouvindo Secos &
Molhados e os britânicos do Queen. Mais tarde, quando conheceu a banda inglesa
The Smiths se redescobriu musicalmente, principalmente pela complexidade lírica
do pós-punk. “Aquele estilo deprê do Morrissey logo chamou a minha atenção. Foi
a minha banda preferida por muito tempo. Também curti bastante O Terço, uma
banda carioca das antigas que chamam de lado B, alternativo”, frisa e ressalta
que até hoje curte clássicos do punk-rock como Sex Pistols, Dead Kennedys,
Ramones, The Clash, Misfits e Black Flag.
Relembrando os velhos tempos, recentemente João Henrique
localizou o radialista Williard que produzia o programa Jardim Elétrico em João
Pessoa, na Paraíba. “Aquele cara que deu tanta força pro movimento punk
continua trabalhando com música e também se tornou filósofo. Conversamos muito
sobre aquele período”, destaca.
Com a experiência de quem vive em Paranavaí há 18 anos,
avalia o movimento musical local como maravilhoso. “Temos o grande Festival de
Música e Poesia de Paranavaí [Femup], além de um movimento em ascensão
capitaneado pelo Hugo Ubaldo da banda Sub-Versão e o Quintal Mágico, projeto do
multiartista Sérgio Torrente que abre espaço para músicas autorais. Outro ponto
alto é o Estúdio Garagem, dos irmãos Bellanda. Temos muita coisa coletiva e
legal”, argumenta.
Andrade planeja retomar um antigo projeto que é a formação
de uma banda de punk-rock voltada para a sonoridade dos anos 1980 e com letras
que abordam temas atuais. “Vou voltar a falar um pouco de id, ego e superego,
conceitos da psicanálise. Na realidade, já estou abrindo um pouco de espaço
para a autoralidade, tanto que nos shows que faço atualmente em barzinhos já
incluo alguma música minha. É uma forma de abrir caminho para que os outros
também façam isso”, justifica.
Homenagens e premiações no Femup
A primeira vez que João Henrique Andrade se inscreveu em um
festival foi em 2003. Sem pretensão, enviou uma música com produção caseira
para o Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup), mas não se
classificou. “Era só voz e violão. Não desisti e continuei compondo. Só que
optei por voltar a concorrer só em 2013, quando entrei em estúdio para gravar a
música ‘Pra Sempre Vou Te Amar’ em homenagem ao meu filho Bruno. Daí veio a
minha primeira premiação”, lembra.
No ano seguinte, o músico foi premiado no Femup pela autoria
de “Mandela”, um reggae que escreveu quando ainda morava em João Pessoa e ficou
sabendo da soltura do sul-africano Nelson Mandela em 11 de fevereiro de 1990.
“Tenho escrito mais músicas em homenagens aos familiares e amigos de
antigamente. Também estou resgatando canções antigas que não gravei, como é
caso de ‘Quasar’ que fala um pouco do que vivi na Paraíba até 1992”, pontua. Na
região de Paranavaí, João Henrique também conquistou muita popularidade após
fundar e se apresentar muitas vezes com a banda Tio João.
Saiba Mais
*João Henrique Andrade também tem formação em teatro pela
Fundação José Lins do Rego, de João Pessoa, na Paraíba.
*Clemente, da banda Os Inocentes, com quem João Henrique
teve um breve contato, é um dos expoentes da cultura punk no Brasil e um dos
principais membros da banda brasiliense Plebe Rude.
Fonte: David Arioch - Especial para o Diário do Noroeste
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