No rastro de Maria Bonita, dezenas de mulheres mudaram de vida ao integrar os famosos bandos do sertão.
Maria Bonita
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*Ana Paula Saraiva de Freitas
Criminosas. Quando se fala da participação das mulheres no
cangaço, geralmente elas são reduzidas a esta palavra. Uma imagem que perde de
vista os medos, os desejos e as frustrações que rondaram as cangaceiras nas
décadas de 1930 e 1940, e que ignora as razões que as levaram para essa vida.
Enquanto algumas ingressaram nos bandos voluntariamente, outras foram coagidas
e privadas do convívio com seus familiares.
Nesta clássica foto vemos Benjamin Abrahão,
o armado Lampião e a sua Maria Bonita ostentando
uma profusão de correntes de ouro.
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Embora os motivos fossem variados, a maioria daquelas que
aderiram ao cangaço carregava a ilusão de que viveria em festa e teria
liberdade, sensação alimentada pela vida nômade e errante daqueles homens. A
realidade revelou um cotidiano bem mais complicado: além dos embates violentos
contra forças policiais, muitas vezes os cangaceiros ficavam mal alimentados,
sem água nem lugar para repousar, caminhando quilômetros sob sol e chuva.
A faixa etária das cangaceiras variava de 14 a 26 anos, e
suas origens socioeconômicas eram diversas, incluindo mulheres de famílias
abastadas. Elas viam no cangaço uma oportunidade para romper com os padrões
sociais: naquele grupo poderiam conquistar outros espaços além da esfera
privada do lar e tinham a oportunidade de escolher seus parceiros sem a
interferência dos acordos familiares.
Dadá, a amada do cangaceiro "Corisco" |
Uma vez integradas aos bandos, as jovens tinham que se
adaptar à nova vida, sem chance para arrependimento: tentar fugir implicava
retaliações
tanto por parte de cangaceiros quanto por parte das volantes, como
eram chamados os grupos de policiais que perseguiam os “bandidos do sertão”.
Nesse espaço permeado pela violência, eram submetidas aos desejos sexuais de
seu raptor, sem contato com a família, sentenciadas à morte em caso de
adultério e envolvidas nos confrontos com forças policiais. Capturadas pelas
volantes, apanhavam, eram estupradas e sofriam diversas humilhações.
No cangaço os papéis sociais eram bem definidos: ao homem
cabia zelar pela segurança e o sustento dos bandos. À mulher, ser esposa e
companheira. Durante a gestação, muitas ficavam escondidas. Depois do
nascimento do bebê, eram obrigadas a retornar ao cangaço e entregar a criança a
amigos.
Inacinha, em vestido de batalha,
mostra como a perneira
casava com a alpercata
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A convivência entre elas não era totalmente pacífica.
Testemunhos dão conta de que uma queria ser melhor do que a outra. O status da
cangaceira era medido pelos bens que possuía: joias, vestidos, animais. As
qualidades bélicas também estabeleciam diferenças entre elas. Sérgia Ribeiro da
Silva, conhecida como Dadá, tornou-se emblemática por sua coragem e desempenho
com armas nos embates com as volantes. Chegou a assumir o comando do grupo no
momento em que o líder Corisco se encontrava ferido. Mas o prestígio feminino
acabava sempre associado ao lugar ocupado pelo companheiro na hierarquia dos
grupos.
Maria Bonita (Maria Gomes de Oliveira), famosa companheira
de Lampião, foi a primeira figura feminina a ingressar no cangaço, em meados de
1930. A partir daí, mais de 30 mulheres participaram da vida nos bandos. A
Bahia foi o estado que forneceu maior número de moças ao banditismo do sertão
nordestino, seguida por Sergipe, Alagoas e Pernambuco.
Durvalina (Durvinha) esposa de "Moreno" |
As andanças dos cangaceiros repercutiam na imprensa, e a
presença feminina era mencionada de forma genérica e depreciativa. Nos jornais
O Estado de São Paulo e Correio de Manhã, aquelas mulheres eram chamadas de
bandoleiras, megeras e amantes. Eram estereotipadas como masculinizadas,
belicosas e criminosas, além de serem tratadas como objetos de satisfação
sexual.
A imagem apresentada pelos jornais, porém, difere daquelas
que o fotógrafo sírio-libanês Benjamin Abrahão Boto produziu na década de 1930.
Suas fotografias mostram como as cangaceiras pretendiam ser lembradas: realçam
sua feminilidade, evidenciam cuidados com o corpo, a aparência e a postura,
destacam a beleza dos trajes e o apreço por joias. Algumas se faziam retratar
com jornais e revistas da época, sinalizando o desejo de serem identificadas
como mulheres letradas. Essas preocupações ficam explícitas nas fotos em que
algumas – como Maria Bonita – reproduziram a postura e o gestual das mulheres
da elite rural e urbana, como se estivessem posando em estúdios consagrados.
A maioria dos folhetos de cordel reforça esse aspecto da
participação feminina no cangaço. Os versos destacam a preocupação das
cangaceiras com a beleza, o amor e a cumplicidade dedicados às relações
afetivas, além da coragem nos embates. Nesse tipo de literatura o perfil
feminino é recriado a partir de uma perspectiva mítica, envolvendo um misto de
heroína e de bandida.
As práticas e as representações das mulheres naquele
universo da caatinga foram variadas, e elas não tinham um perfil único. Quando
o cangaço chegou ao fim, cada uma teve de reconstruir sua vida conforme os
parâmetros sociais vigentes. Do cotidiano duro e arriscado das andanças pelo
sertão, as ex-cangaceiras largaram as armas e a fama de criminosas para encarar
outros papéis: mães, donas de casa e, em alguns casos, trabalhadoras fora do
âmbito doméstico.
*Ana Paula Saraiva de Freitas é historiadora e autora da
dissertação “A presença feminina no cangaço: práticas e representações
(1930-1940)”, (Unesp, 2005).
Fotos do blogue Mendes&Mendes
Saiba Mais
ARAÚJO, Antonio A. C. de. Lampião, as Mulheres e o Cangaço.
São Paulo: Traço, 1985.
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta: Lampião e
Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Faperj/Mauad, 2000.
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. História do Cangaço. 2. ed. São
Paulo: Global, 1986.
MELLO, Frederico P. de. Guerreiros do Sol. Violência e
banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004.
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