Pude refletir muito ao passar o dia ao lado de gente tão
decente, mas com medo de levarem saúde e conforto da cannabis a seus filhos.
O teatro, lotado. No palco, histórias tão irreais que
somente poderiam estar ali, acontecendo diante de meus olhos. Um homem muito
magro, com um sorriso simpático e acolhedor conta uma história de dores
insuportáveis, daquele nível de dor desumanizante e dos vaticínios médicos que
lhe davam alguns meses, no máximo, uns poucos anos ainda de vida. Outro,
padecia de uma depressão fortíssima que levou também médicos à prescrição de
eletrochoques, única maneira disponível de fazer com que abrisse os olhos e se
convencesse minimamente de viver. Aquele senhor, a quem nossos hermanos
chamariam de comeaños, observa a cena.
Uma outra conta que possui três filhos, todos eles com
peculiaridades, que a impedem de trabalhar; ou melhor, impediam. Houve quem
ainda, como se todos estivessem à roda de uma fogueira, contasse que seu
rebento dormia apenas uma ou duas horas, em vários dias.
A vigília involuntária do filho tornou um inferno tudo o que
por ele passasse. Hoje, não. Ele dorme, abraçado a um travesseirinho e dorme
tanto que precisa ser acordado para ir à escola, onde se alfabetizou, para
surpresa dos, claro, médicos que o atendiam. Uma menina fala pelos cotovelos,
ri da própria piada. Faz caretas, exibe-se orgulhosa, beija sua mãe, beija seu
pai. O garotinho corre para todos os lados, como se fosse um filhote de gazela.
Ela era catatônica e ele, diagnosticado como portador de síndrome de espectro
autista, severo, muito em razão de sua absoluta incomunicabilidade. Na roda do
fogo das histórias, temia-se o pior dos infernos: a cadeia, anunciada pelo anjo
da morte, a polícia. Todos ali temiam ser presos a qualquer momento.
Dois casais ainda jovens corriam de outro fantasma real, a
possibilidade de perda do poder familiar que detinham sobre os filhos,
portadores de grave quadro de esclerose. Todos, ali, foras-da-lei, exceção
feita a um pequeno grupo de companheiros de mais sorte, que desfrutavam da paz
oriunda de um salvo-conduto, expressão que dá nome a habeas corpus preventivos.
Em outras palavras, com óleo de maconha. Os adultos cuidam
de si mesmos, fazem o próprio óleo e tomam gotas diárias, cada qual na sua
necessidade. Todos voltaram a viver, todos voltaram para a luz do sol, todos
voltaram à dignidade.
O uso do óleo de cannabis, da maconha, é, em tese, proibido
pela Lei de Drogas, constituindo-se em grave crime, considerado hediondo. Um
roteiro, que é o próprio mapa de um labirinto, existe para que não se corra os
risco de ser preso(a): um médico precisa prescrever o uso do óleo de cannabis.
É um nó: ao regulamentar essa situação, o Conselho Federal de Medicina criou
entraves fortíssimos. Somente neurologistas, neurocirurgiões e psiquiatras
podem prescrever, criando uma seletividade incompreensível e desnecessária,
colocando as demais especialidades médicas sob suspeita. São os chamados
prescritores, estranha especialidade, que se remete à possibilidade de
prescrição da cannabis.
Os médicos prescritores, todavia, somente podem indicar o
uso do cannabidiol, nome técnico do princípio ativo desse óleo, para crianças e
adolescentes. Por alguma razão insondável, adultos, de todas as idades, ficam
de fora. E, quebrando todo o sigilo médico, direito inalienável, os pacientes
que recebem esse tratamento, de médicos prescritores, que devem ser previamente
cadastrados, deverão ter seus nomes e qualificação revelados, a fim de serem
“monitorados”.
É uma Resolução de fazer corar ao mais fascista dos
drogofóbicos e feita para não ser atendida ou, caso o seja, a exigir das
famílias um sacrifício dispendioso e cruel, valendo lembrar que essa
autorização não se refere ao plantio da cannabis, mas somente à sua utilização,
via importação, a preços que estão além de qualquer sistema econômico e que não
são aceitas pelo SUS. O CFM deixou de proteger a vida e preferiu isolar a
doenças ou doenças e seus portadores e portadoras à própria sorte.
Os resultados são visíveis nas pessoas que enfrentaram todos
os medos para mostrar e demonstrar que nada justifica o preconceito e a
ignorância de quem dificulta o acesso a uma forma de tratamento, cuja melhora
devolve a cidadania e devolve humanidade.
Todos sofrem com seus preconceitos, todos temem ser
confundidos como lenientes ao inimigo da Guerra Contra As Drogas, que jamais
existiu, mas que justificou e justifica todas as formas de negação de direitos
fundamentais, notadamente a quem vive fora do “círculo de cidadania”.
Passei um dia na companhia de quem precisa desesperadamente
do óleo de cannabis, de quem precisa cultivar, de quem precisa extrair da flor
da maconha a esperança, a salvação própria ou de entes queridos e que não são
jamais os traficantes exibidos pela TV, como inimigos públicos. São pessoas
calejadas e trabalhadoras, na imensa maioria muito pobres.
Quando penso que são tratadas com grosseira desconfiança e
que correm riscos de prisão, me envergonho do país em que vivo. Queria
abraçá-los, chorar com eles e oferecer-lhes meus ombros, minha enxada e meu
suor.
Há muito tempo não via tanta gente digna, tanta gente
amorosa, que ama tanto que desafia uma lei estúpida. Sentado com eles, senti
que o amor não modifica apenas vida de cada um, individualmente, mas pode mudar
estruturas, pode mudar um país.
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