O escritor Rómulo Gallego é comparado ao brasileiro Machado
de Assis e teve 15 indicações ao Prêmio Nobel de Literatura.
Depois de nove décadas Doña Bárbara continua fazendo parte
do imaginário venezuelano / Foto: Fania Rodrigues.
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Fania Rodrigues
A Venezuela também é um celeiro da literatura
latino-americana. O mais clássico dos romances venezuelanos, o livro "Doña
Bárbara", de Rómulo Gallego, completou 90 anos em 2019. Sua primeira
edição foi publicada em 1929. Desde então foi traduzido em 12 idiomas e
reeditado mais de 20 vezes na Venezuela.
A obra chegou a ser considerada como "possivelmente o
romance latino-americano mais conhecido", pela Hispanic Review, revista
estadunidense dedicada à publicação de pesquisas e obras literárias hispânicas.
Gallego está para a literatura venezuelana, como Machado de
Assis está para a brasileira. Doña Bárbara retrata a Venezuela rural dos anos
1920, a disputa pela terra, o poder do latifúndio, o classismo, mas também a
reconciliação racial, assim como os vícios e virtudes do homem e da mulher
venezuelanos.
O autor também fez carreira política, chegando a governar o
país por nove meses, e trabalha alguns aspectos da construção cultural da
sociedade venezuelana.
O petróleo e o êxodo rural
“Gallego retrata nesse livro a parte mais nobre dos homens e
das mulheres venezuelanos, mas também a mais miserável”, afirma o escritor
venezuelano Nelson Guzman, doutor em filosofia e professor de Ciências Sociais
da Universidade Central da Venezuela.
Escritor Nelso Guzman fala sobre os 90 anos do livro de
Rómulo Gallego (Foto: Fania Rodrigues).
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A história se passa no estado de Apure, na planície
venezuelana, na época em que começou o êxodo do campo para a cidade.
A Venezuela é o país com a menor população rural da América
Latina. Justamente na década de 1920, o país passou a exportar petróleo e deu
um giro na sua economia. Em 1928, a Venezuela era o segundo maior produtor e
exportador de petróleo do mundo, com 275 mil barris por dia. Foi o petróleo
venezuelano que possibilitou a etapa estadunidense da segunda Revolução
Industrial.
Esse processo de industrialização com base no petróleo
acelerou a migração interna. Foi nessa efervescência econômica e a transição
entre o rural e o urbano que sugiram os personagens de Rómulo Gallego, um autor
que terminou influenciando várias gerações de escritores latino-americanos.
Reza a lenda que o romance teria sido escrito em tão somente 27 dias, em algum mês do ano de 1927, segundo o escritor venezuelano Nelson Guzman (Foto: Fania Rodrigues). |
O sexto dos 17 livros escritos por Gallego, Doña Barbara é
considerado sua obra-prima. Apesar de ter ganhado o Nobel, o trabalho do
escritor venezuelano recebeu quinze indicações ao Prêmio Nobel de Literatura,
de acordo com a Academia Sueca.
Um certo Evaristo Luzardo, forasteiro rico que decidiu se
instalar na zona e fundou por lá sua fazenda: Altamira. Quanto Evaristo morre
começa a etapa mais intensa da trama, pois a longa extensão de terra passa a
ser o centro das disputas. O herdeiro de Evaristo, o jovem Santos Luzardo,
havia mudado para a capital, Caracas, ainda adolescente, onde estudou e se
tornou “doutor” (advogado).
Nesse meio tempo, a fazenda esteve abandonada nas mãos de
administradores de reputação duvidosa. O descuido que permitiu a ascensão da
personagem que dá título ao livro: Doña Bárbara, que toma as rédeas da
administração da fazenda, que nesse momento já tinha mudado de nome e passou
chamar Barcareña.
O autor descreve a personagem principal, Doña Bárbaba, como
uma mulher de origem indígena de beleza única: ela é quem tem o controle da
situação. Bárbara é uma sobrevivente da violência do campo e do machismo, que
mais tarde fez uso da violência em benefício próprio.
Quando o herdeiro, Santos Luzardo, decide vender a fazenda para
mudar-se para o exterior, ele volta ao lugar e se dá conta do abandono e do
descuido. Doña Barbara, por sua vez, tinha tornado-se violenta, astuta e
severa.
Doña Bárbara representava então a barbárie típica do campo
nessa época. Suas formas contraditórias são o produto de sua herança mestiça e
refletem o comportamento selvagem de seu ambiente. Seu comportamento é uma
reação ao trauma que sofreu em sua infância, tendo sido vítima de estupro.
Já o advogado Santos Luzardo é caracterizado pelos modos
típicos da "civilização e do progresso", um homem com "grande
profundidade psicológica e é essencialmente uma boa pessoa".
Santos apaixona-se por Bárbara.
Para o crítico de arte Alejandro Carrillo, o personagem
Santos Luzardo tinha algo de Hamlet. “Ele levanta questões muito simples mas
esclarecedoras sobre a incerteza que o rodeia, as intrigas do palácio, o
envenenamento do pai, a traição. ‘Algo fede no reino da Dinamarca’, disse o
príncipe dinamarquês. Algo cheirava mal na atmosfera da terra natal do jovem advogado
apressado, quando percebeu que em sua fazenda tinha algumas coisas que não iam
bem”.
Também escritor e professor de Música da Universidade
Central da Venezuela, Alejandro Bruzual, concorda que Gallegos discute grandes
dilemas. “O personagem Maricela, filha de Doña Bárbara, questiona o conceito de
educação, pois ‘educação não é apenas ler e escrever’, diz a personagem. E tem
esse conflito entre civilização e barbárie que a novela não resolve”, destaca.
Escritor e professor Alejandro Bruzual destaca
particularidades de Doña Bárbara (Foto: Fania Rodrigues).
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O escritor explica ainda que o livro possui várias metáforas.
“O livro é permeado pela violência. A força da violência da nação. Vemos duas
metáforas principais, uma delas é o cavalo selvagem, que representa a planície
selvagem venezuelana. É o símbolo da força indomável da Venezuela do século 20,
o espírito rebelde que está presente na cultura. E o segundo é a conciliação
racial, apresentado pelos personagens Maricela e Nelson. É uma novela
absolutamente otimista”, diz Alejandro Bruzual.
Portanto, esse romance, considerado um clássico da
literatura, parece ter sido construído por Rómulo Gallego como uma peça
sinfônica, com ritmo da boa pluma, algumas pausas e muitos pontos de tensão,
onde estão presentes os dilemas e sentimentos universais.
Edição: Rodrigo Chagas e Daniela Stefano
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