Em 14 anos, o Brasil elevou de 3,5 milhões para 7,2 milhões
as matrículas em universidades. O golpe de 2016 interrompe esse ciclo, dominado
pela visão de que inclusão é gasto e atrapalha o mercado.
A defesa da educação desencadeou as maiores manifestações
populares em poucos meses de governo bolsonaro.
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Por Cláudia Motta e Paulo Donizetti de Souza, da RBA
São Paulo – O Brasil iniciou, a partir da década passada, um
ciclo inédito de investimento em educação e de expansão de vagas no ensino
superior. Seja pela inauguração e ampliação das escolas federais – as
universidades e institutos tecnológicos –, seja pelo acesso dos jovens de baixa
renda a faculdades particulares, por meio de programas como ProUni, Fies e
Refis, além da política de cotas.
Quem já ouviu ao menos um pronunciamento do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva sabe o quanto lhe foram caras essas políticas,
considerando o fato de um torneiro mecânico com curso primário e Senai ter
inaugurado o maior movimento de inclusão de jovens na universidade da história.
A pesquisadora Ana Luiza Matos de Oliveira comprovou essa
movimentação durante quatro anos de estudos, iniciados em 2015, em sua tese de
doutorado em Desenvolvimento Econômico, na Unicamp. A pesquisa de Ana Luiza,
professora visitante da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais
(Flacso), resultou no trabalho Educação Superior brasileira no início do século
21: inclusão interrompida?, em que constata que, entre 2001 e 2015, mais do que
duplicou o número de matrículas nas faculdades e universidades brasileiras, que
passou de 3,5 milhões para 7,2 milhões no período.
Segundo a pesquisadora, a expansão foi também qualitativa,
do ponto de vista do movimento de maior inclusão dos jovens de baixa renda,
negros e moradores nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste – sem prejuízo no
aumento de vagas também nas regiões Sul e Sudeste.
Entre 2003 e 2015, Lula e Dilma criaram 18 novas
universidades federais e 173 novos campi. Mais de 360 institutos federais
permitiram a interiorização da educação no Brasil, criando oportunidades nas
cidades mais distantes sem que os estudantes precisassem deixar o lugar onde
vivem suas famílias. Esse legado é sempre citado como um dos maiores orgulhos
de Lula, ele mesmo um dos milhões de jovens brasileiros que jamais tiveram
acesso ao ensino superior.
Acompanhe o depoimento de Ana Luiza à RBA
Não foi gasto, foi investimento
O orçamento do Ministério da Educação evoluiu de R$ 16,2
bilhões, em 2002, para R$ 92,6 bilhões, em 2014. Entre 2005 e 2015, o Programa
Universidade para Todos (ProUni) beneficiou mais de 2,5 milhões de estudantes
com bolsas de estudo integrais e parciais e a reformulação do Fies permitiu a
mais de 2,1 milhões de alunos garantir financiamento para continuar os estudos
entre 2010 e 2015. Além disso, entre 2011 e 2015 foram concedidas mais de 101
mil bolsas do Programa Ciência sem Fronteiras.
Ana Luíza Matos, dividiu sua pesquisa em dez grupos de
acordo com a renda, os “quase mais ricos”, ou o nono grupo, que eram 28% nas
universidades em 2001, caíram para 17% em 2015. Os 10% mais ricos caíram de 40%
para 18%. Isso não significa que a presença desses perfis diminuiu em números
absolutos. Significa apenas que, em termos proporcionais, as oportunidades dos
mais pobres é que cresceram.
“Em termos de renda houve uma popularização do perfil dos
estudantes tanto na educação superior pública quanto privada”, explica. “Na
questão de raça houve uma inclusão muito grande. Os negros passaram de 22% dos
estudantes para 43% entre 2001 e 2015.” A pesquisador destaca ainda os esforços
estruturais para, além de proporcionar o acesso às matrículas, assegurar a
permanência desses jovens nas universidades.
“Foi muito importante a política de assistência estudantil.
Se você tem um perfil de estudantes mais vulneráveis, de famílias mais pobres,
esse aspecto tem de ser reforçado, para manter o estudante lá e permitir que
ele termine a graduação.”
A professora ressalta que tudo contou ainda com uma
combinação de fatores favoráveis, coma a redução da pobreza, a expansão de
programas como o Bolsa Família e outras políticas intersetoriais que melhoraram
as condições das famílias e sua capacidade de apostar na educação de seus
filhos sem que precisassem recorrer precocemente ao mercado de trabalho. A
participação dos jovens no mercado de trabalho caiu. “As famílias conseguiram
se organizar de tal forma que elas puderam manter parte dos seus integrantes na
educação superior.”
Austeridade contra o futuro
A partir de 2016 vem a mudança na política econômica e
começam os cortes de recursos nas políticas públicas. “A aplicação da
austeridade fiscal gera um choque forte no mercado de trabalho e aumenta a
desocupação”, lembra Ana Luiza. Assim, além dos cortes nas políticas que
promoveram a mudança no perfil dos estudantes, o desemprego voltou a pressionar
as famílias.
“Em 2016, após o golpe (com o impeachment da presidenta
Dilma Rousseff), essa política de austeridade, que deveria ser temporária, é
constitucionalizada com a Emenda Constitucional 95”, explica. Ana Luiza é
categórica em constatar que a EC 95 mudou o projeto de país e contrariou a
Constituição de 1988 ao desvincular os gastos que, com educação, deveriam ser
de 18% da receita líquida de impostos da União.
A emenda congelou esse valor em 2017, e ele será corrigido
somente pela inflação até 2036. Um problema ainda maior, já que os
investimentos em educação haviam crescido muito além do nível constitucional
para criar esse novo ambiente de inclusão.
A EC 95 cria ainda uma competição entre as áreas de “gasto
primário”, ou seja, uma disputa por orçamento entre as diversas áreas em que o
governo tem de pôr dinheiro. “Como não pode aumentar em termos reais, se quiser
aumentar no ensino superior, tem de reduzir da cultura, da educação, de algum
lugar.”
No última dia 2 de setembro, o Ministério da Educação
anunciou o corte de mais 5.613 bolsas de mestrado e doutorado da Capes
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Desde o início
do governo Bolsonaro, já foram retiradas quase 12 mil bolsas do orçamento dessa
que é uma das principais políticas públicas de fomento à pesquisa brasileira.
Foram congelados R$ 819 milhões, o equivalente a 19% do orçamento anual da
Capes. Assim, não haverá nenhum novo pesquisador financiado pelo programa neste
ano.
E as perspectivas são péssimas. Para 2020, a verba será
reduzida pela metade: R$ 2,2 bilhões diante dos atuais R$ 4,25 bilhões. O Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) pode ter 80 mil bolsas de pesquisa suspensas
nos próximos meses. O órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia,
Comunicações e Inovações (MCTIC) conta com o menor orçamento desde 2010 e os
recursos para pagar bolsistas daria conta de chegar somente ao quinto dia útil
de setembro.
Ponto fora da curva
Analista de conjuntura em política social da Fundação Perseu
Abramo e colaboradora do portal Brasil Debate, Ana Luiza considera a
Constituição Federal promulgada em 1988 um “ponto fora da curva” da história
brasileira, sempre protagonizada pelas elites econômicas.
“Quando a Constituição de 88 garante diversos direitos,
inspirada no Estado de bem-estar social, ela estaria fora da curva e da nossa
história de exclusão ao tentar corrigir esses problemas”, explica.
Com as mudanças na condução política no país, após o golpe,
é retomado esse tipo de pensamento que se comprovou errado e ultrapassado
durante as primeiras décadas do ano 2000. “Volta à tona essa ideia de que
garantir direitos, políticas públicas para reduzir a desigualdade, seria ruim,
traria desequilíbrio para o mercado”, critica.
“O ex-ministro da Educação Ricardo Velez dizia que
universidade não seria para todo mundo, que a escola deveria separar estudantes
para ganhar dinheiro, as pessoas deveriam virar youtubers. Não precisariam ir
para a universidade”, relata a pesquisadora. “É um perfil que está aflorando,
seja da forma assim mais caricata, seja de formas mais elaboradas, como dizendo
que o gasto social, previdenciário, com saúde, educação, onera demais o Estado
e estaria causando problemas, que o Brasil estaria perdendo investidores, com
esses gastos ‘excessivos’.”
Igualdade sumiu do horizonte
Ana Luiza lembra ainda o fato de que não se encontra no
projeto Future-se – proposto pelo atual ministro Abraham Weintraub para as
universidades e institutos federais – nenhuma discussão sobre impactos para a
desigualdade, sobre o perfil dos estudantes que estão chegando à educação
superior.
“E desde 2015, com essa crise no mercado de trabalho e as
mudanças fortes nas políticas, começa a haver uma reversão dessa modificação no
perfil dos estudantes”, afirma. “E o que a gente mais precisa é de políticas
públicas fortes para garantir que esses estudantes continuem na educação
superior, que ela seja mais diversa, mais com a cara do Brasil. E é o contrário
do que a gente está vendo agora.”
Ana Luíza destaca, ainda, sobre os riscos que corre a Lei de
Cotas. A lei tem previsão de revisão em 2022, quando o país ainda deverá estar
sob o governo Jair Bolsonaro. “Temos de ficar de olho porque a política de
cotas foi muito importante para a inclusão de estudantes de perfil
socioeconômico mais baixo, estudantes negros, de escolas públicas e ela vai ser
revista.”
E faz um alerta: desde 2015 a inclusão como processo, a
continuidade dessa inclusão do aumento do percentual de negros e estudantes
pobres na educação superior foi freada e alguns índices estão sendo revertidos.
“O quadro de 2017 é mais diverso do que 2001, mas a inclusão como processo
diminuiu sua velocidade e alguns casos foi revertida. Parou de melhorar.”
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