Neste 3 de janeiro Luiz Carlos Prestes completaria 115 anos.
Tendo dedicado toda a sua vida à luta pela liberdade, contra o imperialismo e
pela construção do socialismo no Brasil, Prestes imortalizou-se como herói do
povo brasileiro e latino-americano, referência histórica para os comunistas em
todo o mundo. Sua heroica e trágica existência marcarão para sempre a memória
dos lutadores e lutadoras do povo, sendo fonte permanente de exemplo para as
novas gerações de comunistas.
Por Rita Coitinho*
Recentemente o Partido Comunista do Brasil rendeu-lhe
homenagens, por ocasião dos 90 anos do partido. Acertadamente, o PCdoB assumiu
para si o legado de Luiz Carlos Prestes, do qual havia se afastado desde a
reorganização do partido. Esse afastamento de décadas talvez tenha privado o
maior partido comunista do Brasil do estudo minucioso das contribuições
teóricas do revolucionário Prestes. Não é tarde, entretanto, para nos
debruçarmos sobre seu legado. Ao lermos com atenção os documentos produzidos
por Prestes nos últimos anos de sua vida não teremos dificuldades em
identificar a surpreendente atualidade de suas formulações sobre a revolução
brasileira e sobre o partido revolucionário necessário à sua construção.
A Carta aos Comunistas (1) , escrita em março de 1980 -
alguns meses após o regresso de Luiz Carlos Prestes do exílio vivido na Europa
-, é um desses documentos fundamentais dos últimos anos da vida do dirigente.
Nela Prestes empenhava-se em debater os rumos do PCB. No exílio, juntamente com
outros dirigentes do partido, o então secretário-geral do Partido Comunista
Brasileiro tornara-se mero figurante, na medida em que a direção partidária
agia à revelia de seu principal dirigente e conduzia o coletivo a uma situação
de isolamento do movimento de massas e arrefecimento do seu caráter
revolucionário. Ao retornar ao Brasil, Prestes buscou discutir os rumos tomados
pelo partido, lutando pela realização de um congresso verdadeiramente
democrático, onde os militantes de todo o país pudessem ser chamados a opinar e
reconstruir o partido.
Para Luiz Carlos Prestes um congresso dessa importância não
poderia ser realizado nas condições impostas pela clandestinidade, razão pela
qual o PCB deveria combinar a organização dos debates com a luta de massas pela
abertura democrática e a legalização do partido. Isolado do coletivo partidário
por ação do Comitê Central, Prestes decidiu escrever um documento endereçado à
militância do partido, onde denunciava o mandonismo e o golpismo da direção,
externava suas posições revolucionárias e conclamava a militância a lutar pela
democratização do país e tomar os rumos do partido em suas mãos.
Prestes inicia a carta aos comunistas explicando os motivos
pelos quais decide agir dessa forma. Assume a sua responsabilidade, como dirigente,
pela situação vivida pelo partido e mostra que, dada a situação, não lhe
restava outra opção senão tornar público o seu posicionamento: (...) Fica cada
vez mais evidente que, através de intrigas e calúnias, o inimigo de classe –
após nos ter desferido violentos golpes nos últimos anos – pretende agora minar
o PCB a partir de dentro, transformando-o num dócil instrumento dos planos de
legitimação do regime. Este é o motivo pelo qual as páginas da grande imprensa
foram colocadas à disposição de alguns dirigentes do PCB, enquanto em relação a
outros o que se verifica é o boicote e a tergiversação de suas opiniões (...)
Diante de tal situação não posso calar por mais tempo. Tornou-se evidente que o
PCB não está exercendo um papel de vanguarda e atravessa uma séria crise já
flagrante e de conhecimento público, que está sendo habilmente aproveitada pela
reação no sentido de tentar transformá-lo num partido reformista, desprovido do
seu caráter revolucionário e dócil aos objetivos do regime ditatorial.
Na Carta, Prestes vai além da denúncia dos erros da direção
do partido. Propõe-se a analisar a orientação política do PCB e aponta suas
debilidades, apresentando-as, inclusive, como uma autocrítica: (...) é
necessário, agora, mais do que nunca, ter a coragem política de reconhecer que
a orientação política do PCB está superada e não corresponde à realidade do
movimento operário e popular do momento que hoje atravessamos. Estamos
atrasados no que diz respeito à análise da realidade brasileira e não temos
respostas para os novos e complexos problemas que nos são agora apresentados
pela própria vida, o que vem sendo refletido na passividade, falta de
iniciativa e, inclusive, ausência dos comunistas na vida política nacional de
hoje. A crise que atravessa o PCB expressa-se também na falência de sua direção
que, entre outras graves deficiências, não foi capaz de preparar os comunistas
para enfrentar os anos negros do fascismo, facilitando à reação obter êxito em
seu propósito de atingir profundamente as fileiras do PCB, desarticulando-o em
grande parte. Não foi a direção do PCB capaz nem ao menos de cumprir o preceito
elementar de separar com o necessário rigor a atividade legal da ilegal.
Inúmeros companheiros tombaram nas mãos da reação em conseqüência da incapacidade
da direção, que não tomou as providências necessárias para evitar o rude golpe
que atingiu nossas fileiras nos anos de 1974 e 1975.
Na realidade, Prestes reconhecia que a crise vivida pelo PCB
arrastava-se desde 1958, tendo sido provocada, em grande medida, pelas
repercussões mundiais do 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética
(PCUS). Naquela ocasião, o Comitê Central, sob a direção de Prestes, havia
buscado a reunificação do partido em torno da aprovação da chamada “Declaração
de Março” de 1958. De acordo com texto (2) da historiadora Anita Leocádia
Prestes,
Na elaboração desse documento, Prestes desempenhara papel
decisivo, tendo assegurado a reunificação do Partido. Mas, nessa ocasião, ele
já manifestara divergências em relação à nova orientação política adotada pela
direção do PCB. O secretário-geral, para garantir a unidade do Partido, tivera
que fazer concessões e buscar uma conciliação entre as posições de “esquerda” e
de “direita” dos dirigentes partidários da época. A Declaração de 1958
representou, no fundamental, uma guinada para a direita na política do PCB, uma
vez que postulava a conquista de um “governo nacionalista e democrático”, cujo
objetivo seria contribuir para o desenvolvimento de um capitalismo autônomo no
Brasil. Na realidade, o capitalismo dependente e associado ao imperialismo
vinha se afirmando no país, revelando a inviabilidade da proposta dos
comunistas.
Os erros do passado conduziram o PCB ao estado em que se
encontrava em 1980 e Prestes chamava para si a responsabilidade por eles,
revelando, mais uma vez, seu extraordinário caráter e convicção revolucionária.
Desvelou, na Carta, os métodos equivocados de direção (o “oportunismo”, o
“carreirismo”, o “mandonismo” e o “compadrismo”, além da ausência de uma justa política
de quadros e a falta de princípios), uma realidade partidária em que, na
prática, inexistia uma direção e uma real unidade em torno de objetivos
politicamente claros e definidos.
Profundamente leninista, Prestes justificava suas
preocupações com os rumos do partido lembrando a centralidade de uma
organização de vanguarda para a construção do socialismo. Em síntese, um
partido revolucionário que, baseado na luta pela aplicação de uma orientação
política correta conquistasse o lugar de vanguarda reconhecida da classe
operária. Um partido operário pela sua composição e pela sua ideologia, em que
a democracia interna, a direção coletiva e a unidade ideológica, política e
orgânica fossem uma realidade construída na luta.
Reconhecendo não ser este o caso do PCB, Prestes conclamava
a militância a reagir, formulando novos métodos de vida partidária realmente
democráticos e efetivamente adequados às tarefas da luta revolucionária. Para
isso, fazia-se necessário construir um outro tipo de direção, inteiramente
diferente daquela, além de reformular a atuação do partido junto à população e
resgatar o papel dos veículos de imprensa partidária.
Defendendo o aprofundamento da democracia interna e a
necessária realização de um congresso uma vez conquistada e legalidade, Prestes
destacava que o fundamental era o reconhecimento dos erros de análise da
realidade brasileira. Resgatando a formulação de Lênin, Prestes destacava que
não se pode separar a elaboração de uma estratégia revolucionária da estratégia
de construção de uma organização revolucionária. Ambas se condicionam
reciprocamente. A estratégia revolucionária é a condição da eficiência da
organização, e a organização é a condição da formulação de uma estratégia
correta.
Analisando os anos da ditadura, Prestes destacou o
aprofundamento dos problemas sociais, a despeito do desenvolvimento econômico,
confirmando a tese de que o desenvolvimento capitalista não é capaz de resolver
os problemas do povo e nem sequer de amenizá-los. Dessa forma, a solução desses
e demais problemas fundamentais exige transformações sociais profundas, que só
poderão ser iniciadas por um poder que efetivamente represente as forças
sociais interessadas na liquidação do domínio dos monopólios nacionais e
estrangeiros e na limitação da propriedade da terra, com o fim do latifúndio. E
é por isso que a luta atual pela derrota da ditadura e a conquista das
liberdades democráticas é inseparável da luta por esse tipo de poder que, pelo
seu próprio caráter, representará um passo considerável no caminho da revolução
socialista no Brasil.
Prestes afirmava que a luta pela democracia era parte
integrante da luta pelo socialismo. Seria no próprio processo de mobilização
pela conquista de objetivos democráticos parciais (o que incluiria as
reivindicações não apenas políticas, mas também econômicas e sociais) que a
população poderia tomar consciência dos limites do capitalismo e da necessidade
de avançar para formas cada vez mais desenvolvidas de democracia, inclusive
para a realização da revolução socialista.
As condições em que se daria o restabelecimento da
democracia dependeriam do nível de unidade das forças sociais empenhadas nessa
luta. Caberia aos comunistas empenhar-se no esforço de mobilização da classe
operária e demais setores populares para alcançar formas cada vez mais
avançadas de democracia e, nesse processo, chegar à conquista do poder pelo
bloco de forças sociais e políticas interessadas em realizar (...) profundas
transformações (...) que deverão constituir os primeiros passos rumo ao
socialismo, e, portanto, à mais avançada democracia que a humanidade já conhece
– a democracia socialista.
Combatendo os acordos “por cima”, que abandonavam princípios
do partido em troca de uma legalidade consentida (e não conquistada), Prestes
afirmava na Carta que um partido comunista não pode, em nenhuma situação,
abdicar do seu papel revolucionário e assumir a posição de freio dos movimentos
populares, de fiador de um pacto com a burguesia, em que sejam sacrificados os
interesses e as aspirações dos trabalhadores (...) o dever dos comunistas é
dirigir essas lutas dos trabalhadores, contribuindo para sua unidade,
organização e conscientização, mostrando-lhes que é necessário caminhar para o
socialismo, única forma de assegurar sua real emancipação.
Era por este viés que Prestes abordava a questão das
alianças com outras organizações progressistas e democráticas. Ao mesmo tempo
em que se fazia necessária a construção de uma grande frente de lutas, os
comunistas não poderiam privilegiar os entendimentos com os dirigentes em
detrimento dos anseios das massas: (...) para os comunistas o fundamental é a
organização, a unificação e a luta permanente pela elevação do nível político
da classe operária e das massas populares (...) Só assim agindo, realizarão os
comunistas uma política capaz de impulsionar o movimento de massas, uma
política que não pode ser a de ficar a reboque dos aliados burgueses, mas, ao
contrário, a de não poupar esforços para que as massas assumam a liderança do
processo de luta contra a ditadura e pela conquista da democracia, assim como
de sua ampliação e aprofundamento continuado.
Prestes propunha, assim, a unidade das forças de
"esquerda" – quer dizer, aquelas que lutam pelo socialismo – num
trabalho de organização da classe trabalhadora. Para ele estava na ordem do dia
a questão da unidade de todos que se propõem a lutar efetivamente por uma
perspectiva socialista para o Brasil. Posteriormente, o líder comunista
tornaria público outro documento, a “Proposta para Discussão de um Programa de
Soluções de Emergência - Contra a Fome, a Carestia e o Desemprego”(3), uma
plataforma de lutas comum aos setores de esquerda, em torno da qual poderia se
constituir um amplo movimento de massas orientado ao socialismo.
Fundamentalmente, o que Luiz Carlos Prestes se propunha na
Carta aos Comunistas era lançar as bases para uma reflexão crítica sobre os
processos que conduziram o PCB à situação em que se encontrava em 1980, cujo
desenvolvimento o levou à ruptura com o partido. Ao mesmo tempo, ao denunciar
as práticas inadequadas, procurava estimular o debate e afastar o fantasma das
perseguições internas, das rotulações a militantes (“esquerdista”,
“eurocomunista”, “golpista” etc.), das desqualificações dos argumentos em nome
de uma pretensa unidade que conduzira o PCB ao imobilismo. Prestes colocava em
prática a formulação leninista de unidade entre a organização política e a
estratégia revolucionária: somente uma reflexão profunda sobre as formulações
equivocadas aplicadas até então e sobre as práticas partidárias degeneradas
poderiam ter reconduzido o PCB à frente das lutas pela democratização na década
de 1980. A tentativa do dirigente revolucionário foi de chamar o partido à
elaboração de soluções adequadas à situação do Brasil de hoje, partindo do
princípio de que nosso objetivo final, enquanto comunistas, só pode ser um: a
construção da sociedade socialista e do comunismo em nossa Terra. E para isso,
é imprescindível que todos aqueles que queiram contribuir para a vitória desses
objetivos unam suas forças e procurem chegar a um programa comum, sem cair na
cópia de modelos estrangeiros (...)
Ao se referir à necessidade de formular o programa dos
comunistas, tinha em vista chegar, por um processo de discussão efetivamente
livre, à elaboração do caminho para o socialismo nas condições brasileiras e à
sua aprovação de forma democrática.
Fundamentalmente, Prestes apontava para a necessidade de
transformações radicais de cunho antimonopolista, anti-imperialista e antilatifundiário,
sendo necessário mostrar aos trabalhadores que os grandes problemas que afetam
a vida de nosso povo só poderão ser solucionados com a liquidação do poder dos
monopólios nacionais e estrangeiros e do latifúndio, e que isto só será
conseguido com a formação de um bloco de forças antimonopolistas,
anti-imperialistas e antilatifundiárias, capaz de assumir o poder e de dar
início a essas transformações. Poder que, pelo seu próprio caráter, significará
um passo decisivo rumo ao socialismo. E para que esse processo tenha êxito, é
indispensável que a classe operária – a única consequentemente revolucionária –
seja capaz de exercer o papel dirigente do referido bloco de forças. Mas este
papel dirigente só se conquista na luta. O dever dos comunistas é exatamente o
de contribuir para que esse objetivo seja alcançado.
Prestes acabou por deixar as fileiras do PCB, não vendo ali
possibilidade de implementar as mudanças a que se referia do documento de março
de 1980. Saiu, junto com outros comunistas revolucionários, em busca de uma
alternativa organizativa inovadora que acabou por não se realizar, ao mesmo
tempo em que o PCB passou por uma nova cisão em 1992, que deu origem ao atual
PPS, herdeiro do oportunismo de direita já identificado e denunciado na Carta,
doze anos antes.
Passados 33 anos da publicação da Carta aos Comunistas, o
Brasil se encontra em uma situação diferente daquela em que o documento foi
redigido, contando com instituições democráticas bastante consolidadas e um
crescente desenvolvimento capitalista – com suas contradições intrínsecas e
insuperáveis. Permanecem, porém, os principais desafios sobre o qual se
debruçava “o Velho”, na medida em que os avanços dos últimos anos não foram
suficientes para superar as mazelas do latifúndio e da concentração de renda,
nem tampouco frear o crescente domínio do capital financeiro e especulativo
sobre a economia do país. Daí a atualidade do texto: como avançar para a
construção do socialismo? De que maneira podem os comunistas colocar na ordem
do dia, junto às demais forças de esquerda, o aprofundamento das conquistas
democráticas, sociais e econômicas rumo a uma democracia verdadeiramente
socialista? Como organizar e fortalecer o Partido Comunista do Brasil para que
esteja à altura da tarefa histórica a que se propõe?
* Rita Coitinho é cientista social, mestra em Sociologia e
militante do PCdoB em Santa Catarina
Via Portal Vermelho
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