Quando Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi eleito, ninguém
deu a ele carta branca para fazer as “reformas” neoliberais. Como ele só falava
em “estabilidade”, elas vieram a reboque — eram as cláusulas do contrato
escritas em letras minúsculas. Entre os itens do engodo estava o plano de
desmonte da estrutura sindical e trabalhista, uma das mais perversas medidas
que os tucanos tentaram enquanto reinaram.
Por Osvaldo Bertolino*
E só não conseguiram seu intento porque jamais reuniram no
Congresso Nacional mais do que meia dúzia de defensores convictos da proposta
de pôr abaixo o que foi erguido pelos trabalhadores com lutas árduas ao longo
de grande parte do século 20.
As leis trabalhistas brasileiras são a síntese do embate
histórico entre capital e trabalho. Até os anos 1940, os trabalhadores
empregaram lutas heroicas e, aos trancos e barrancos, foram arrancando
conquistas aqui e ali. Pode-se afirmar que as refregas das três primeiras
décadas daquele século inculcaram a primeira noção de força nos trabalhadores
brasileiros e representaram verdadeiras aulas de organização em sindicatos e
federações. Quando o governo do presidente Getúlio Vargas instituiu a CLT, no
dia 1º de maio de 1943, ele reuniu em um sistema único todas as leis
trabalhistas existentes, grande parte dele nunca aceita pelo capital.
Eram tempos de crise aguda do capitalismo, com o New Deal do
presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt fazendo o Estado puxar a
recuperação da economia, a revolução socialista na União Soviética avançando e
o keynesianismo despontando como teoria que prometia salvar o sistema. A
economia brasileira, livre das amarras do poder oligárquico da República Velha,
crescia e se desenvolvia, o que impulsionava as lutas sindicais. Desde então,
os direitos conquistados sempre estiveram na alça de mira da direita. No
capítulo mais recente dessa história, o alvo tem sido, além da Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT), os itens sociais da Constituição de 1988.
Menção especial
A ideia de criar as condições para a implosão dessa
legislação começou a ser formada logo após o encerramento dos trabalhos da
Assembleia Nacional Constituinte, quando os principais executivos das empresas
multinacionais instaladas no Brasil criaram um grupo permanente para organizar
o lobby que atuaria na fracassada "revisão constitucional" de 1993.
Em 1994, o presidente FHC foi buscar Paulo de Tarso Almeida Paiva, que atuava
como secretário de Planejamento do governo do Estado de Minas Gerais, para
ocupar o Ministério do Trabalho com a função definida de comandar o ataque às
conquistas trabalhistas.
Quando FHC apresentou os nomes dos que comporiam o seu
ministério, fez uma menção especial a Paiva. "Escolhi alguém capaz de
promover uma reviravolta nas antiquadas relações de trabalho no país",
registrou. No dia 1º de maio de 1995, logo após a posse do governo, o ministro
do Trabalho provocou uma tempestade ao defender, na sede da central Força
Sindical, na cidade de São Paulo, a retirada de direitos da CLT e da
Constituição para se tornarem "disponíveis para negociação". Até o
então presidente da Força Sindical, Luiz Antônio Medeiros, aliado de FHC,
reagiu. "O ministro foi, no mínimo, inoportuno", comentou.
Turma dourada de FHC
Em nome de um suposto "custo Brasil" elevado, o
ministro passou a defender a troca de direitos trabalhistas por postos de
trabalho; pela lógica de Paiva, enquanto os trabalhadores perdiam conquistas
históricas as empresas fariam o sacrifício de manter os empregos. A pressão
tucana usava a seu favor as fileiras de desempregados e subempregados. Naquelas
condições, um lugar na economia formal era visto pelo governo como um favor
concedido pelo capital ao trabalho. Essa retórica permeou a "era FHC"
e esteve nos planos de todos os ministros do Trabalho do período neoliberal, de
Paulo Paiva a Francisco Dornelles.
Paiva ocupava um posto considerado chave para a missão dos
economistas neoliberais que mandaram e desmandaram no país ao longo da “era
FHC”. Eles formavam um grupo integrado por figuras como Pérsio Arida, André
Lara Rezende, Elena Landau, Edmar Bacha, Eduardo Modiano, Armínio Fraga,
Gustavo Franco e Edward Amadeo, liderado pelo então poderoso ministro da
Fazenda, Pedro Malan. Era a ''turma dourada'' do Departamento de Economia da
PUC do Rio de Janeiro do final da década de 1970 e início dos anos 1980, que
ficou marcada por comandar aquele processo pelo qual os interessados em comprar
empresas do Estado iam buscar dinheiro quase de graça no Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Atualmente são banqueiros ou
renomados “consultores” do mercado financeiro, alguns assessorando o candidato
tucano Aécio Neves.
Paiva assumiu o Ministério do Trabalho dizendo que a
legislação trabalhista brasileira era “inflexível e caduca”. E que as
“reformas” seriam necessárias à consolidação de uma “economia de mercado com
altas doses de investimentos e de geração de empregos”. “A experiência mundial
produziu uma ordem razoavelmente depurada de radicalismos ideológicos neste fim
de século. Seus alicerces são sistemas políticos democráticos, economias de
mercado em processo de globalização, ação social descentralizada por parte de
governos nacionais e a consolidação de moedas fortes”, explicou.
Nova ordem neoliberal
Para ele, a “nova ordem mundial” que emergiu das cinzas da
Guerra Fria tornara obsoleta, da noite para o dia, a legislação trabalhista.
“Os governos nacionais que compreendem o fenômeno implementam políticas
compatíveis com essa nova ordem em formação. Os que não compreendem — quer por
preconceito ideológico (Cuba de Fidel Castro), quer por motivos religiosos
(países islâmicos), quer por ignorância (países africanos) — cavam um fosso no
qual aprisionam populações inteiras, mantidas à margem do progresso acelerado
que caracteriza a nova ordem”, pregou.
Quando o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista —
filiado à Central Única dos Trabalhadores (CUT) — fechou um acordo com a
Volkswagen e o sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo — filiado à Força
Sindical — com o Sindipeças, em 1996, reduzindo direitos dos trabalhadores,
Paiva delirou. ''Essas negociações, feitas sem a interferência do Estado, foram
o fato mais importante desde a instituição da legislação trabalhista nos anos
1930'', comemorou o ministro. “Agora vamos arejar o trabalhismo no país”,
afirmou. Segundo Paiva, os sindicatos “viraram de cabeça para baixo a agenda de
reivindicações comumente negociada entre empregados e patrões”.
O acordo dos metalúrgicos de São Paulo teve seus efeitos
suspensos, por decisão da Justiça do Trabalho paulista, sob a alegação de que
ele não atendia às exigências legais estabelecidas na CLT. Mas FHC entrou em
campo para tentar revogar a sentença. ''O acordo é um avanço enorme, sobretudo
porque a iniciativa partiu dos trabalhadores. Determinamos ao ministro Paulo
Paiva que estude, junto com juristas, uma fórmula que torne legal esse tipo de
acordo sem exigir mudanças na Constituição'', revelou.
Predominância da esquerda
Contudo, os trabalhadores conseguiram, à custa de um bocado
de suor e sangue, impedir a implosão pretendida pelos neoliberais. Com altos e
baixos, as centrais sindicais compreenderam que o projeto da direita tem uma receita
bem conhecida e invariável. Para ele, a manutenção do emprego deve ser o único
estímulo concedido pelo patronato. Sem uma atuação sindical combativa —
inclusive na formulação de ideias —, o capital fica de mãos livres para fazer
da hierarquia de classes um feitor. Para manter a acumulação, a migração social
fica proscrita, não importa o talento que se tem, nem o esforço que se faz.
Quem nasce em uma determinada posição social, morre ali. E, na base da
pirâmide, isso costuma acontecer cedo.
Portanto, se quisermos compreender o alcance da disputa que
se trava hoje em torno dessa questão precisamos restabelecer o fio condutor da
dicotomia entre direita e esquerda. No Brasil, durante o século 20, esses
conceitos ficaram claros. As posições extremadas da direita obrigaram a
esquerda a lutar muito para conquistar pouco. As manifestações populares, na
maioria das vezes, ocorreram para defender direitos que têm a abolição prevista
pela cartilha da direita. Até 2002, nunca tivemos por aqui uma efetiva predominância
da esquerda no poder. A experiência do ciclo Lula-Dilma demonstrou quão
importante ela é para os trabalhadores.
*Osvaldo Bertolino é jornalista, editor do Portal Grabois e
colaborador da revista Princípios.
Via Portal Vermelho
Nenhum comentário:
Postar um comentário