Em nome de um liberalismo a serviço da Inglaterra, D. Maria,
a Louca, proibiu o funcionamento de fábricas no Brasil e enforcou Tiradentes.
Há 224 anos...
D. Maria I, “A Louca”, rainha de Portugal, tomou duas
medidas radicais referentes ao Brasil que, além de intimamente ligadas, evocam
temas que continuam perfeitamente atuais em nosso tempo: a primeira delas foi o
decreto de 1785, que proibiu o funcionamento de fábricas no Brasil, e mandou
apreender as máquinas e desmontar as fábricas eventualmente existentes. A outra
foi a sentença de morte contra Tiradentes, como punição exemplar por sua
participação na Inconfidência Mineira, executada em 21 de abril de 1792.
O elo que liga esses dois acontecimentos de forma
indissolúvel, e os remete ao presente, é a questão nacional, independentemente
da consciência ou não que os personagens históricos tivessem dela.
Aquelas medidas de D. Maria, a Louca – que, ironicamente,
foi declarada incapaz de exercer o governo, por doença mental, no mesmo ano da
morte de Tiradentes – tinham o sentido claro de manter o Brasil nos quadros do
sistema colonial, impedindo o seu crescimento econômico autônomo.
O ouro e os diamantes de Minas Gerais conseguiram manter o
fôlego da economia portuguesa durante o século 18, mas quando a mineração
começou a dar sinais de esgotamento, o reflexo de sua crise em Portugal foi o
ressurgimento e aprofundamento das dificuldades econômicas.
Isso numa época de mudanças internacionais importantes: a
revolução industrial inglesa criou as condições para o lançamento das bases
mundiais do Império Britânico, e uma nova forma de imperialismo começava a se
sobrepor ao velho colonialismo, do qual Portugal foi um dos principais
representantes.
A ideologia liberal, que acompanhava a atividade dos
industriais e comerciantes britânicos, dizia que os antigos monopólios
comerciais – característicos do pacto colonial vigente até então – deviam ser
eliminados, os entraves ao comércio internacional deviam ser destruídos, dando
acesso livre, aos comerciantes britânicos, a todos os portos e mercados do
mundo.
Foi a época em que apareceu a teoria das vantagens
comparativas, sistematizada pelo economista David Ricardo, que previa uma
divisão internacional do trabalho onde cada nação devia se dedicar à atividade
econômica em que sua produtividade e eficiência fosse maior. E adquirir, no
mercado mundial, os outros bens necessários ao consumo de seus povos. Uns
produziam produtos industrializados (como a Inglaterra, que era então a
“oficina do mundo”), outros produziam alimentos, outros ainda forneciam
matérias-primas para o mercado mundial. E com isso, dizia aquela teoria
(reabilitada em nosso tempo pelos defensores do neoliberalismo e da
modernização conservadora), todos seriam felizes.
Aquela época, como agora, conheceu uma redefinição profunda
do cenário mundial. Gestava-se então o mundo moderno, dominado pelo
industrialismo, pela doutrina dos direitos dos homens, e pelas primeiras formas
democrático-burguesas de governo.
Aquelas mudanças foram completadas com dois outros
acontecimentos de alcance mundial.
O primeiro deles foi a revolução americana, iniciada em 1776
com a proclamação da Independência dos Estados Unidos, e completada em 1788,
com o reconhecimento da independência pela Inglaterra.
O outro foi a revolução francesa de 1789, onde a plebe de
Paris e as massas camponesas das províncias francesas varreram os privilégios
feudais, a monarquia absoluta e a aura sagrada que havia em torno dos reis,
eliminada pelos golpes da guilhotina que executaram Luiz XVI e Maria Antonieta.
Essa situação internacional refletiu-se no Brasil em toda a
sua complexidade.
A economia mineradora criou, pela primeira vez, uma
plutocracia urbana sofisticada, culta, que acompanhava de perto as mudanças
mundiais. As ideias francesas tiveram forte impacto entre seus membros – principalmente
as ideias dos reformistas aristocráticos que pretendiam substituir o
absolutismo por alguma forma de monarquia constitucional.
Tomás Antônio Gonzaga, o poeta conspirador, membro da equipe
de notáveis que, se a conspiração prosperasse, seria o redator da Constituição
da nova Nação, e ocuparia a chefia do governo provisório, tinha ideias
políticas talvez mais atrasadas do que os constitucionalistas franceses. Na
década de 1780, ele escreveu um tratado sobre a lei natural onde dizia que
democracia era o pior sistema de governo: “constituem ao Rei como mandatário,
obrigado a dar contas ao povo, como seu mandante”. Suas reservas à democracia
tinham ainda como base o direito divino dos reis: “o Rei é um Ministro de Deus”
e o fim “para que ele se pôs é a utilidade do seu povo”.
Além disso, diz o historiador Kenneth Maxwell (de cuja obra
foi extraída a referência a Gonzaga), “até onde as provas o revelam”, nem mesmo
a palavra democracia chegou a ser usada pelos conspiradores.
Naquela época, os conspiradores mineiros pareciam
interessados em não perder o bonde da história, como se diz hoje, e aproveitar
a conjuntura internacional para eliminar os entraves colonialistas que impediam
nosso desenvolvimento político, econômico e social.
O exemplo da Independência dos Estados Unidos parecia animar
projeto semelhante em muitos espíritos e os conspiradores chegaram mesmo a
fazer gestões para obter seu apoio ao projeto emancipatório.
O apoio britânico também era esperado. Kenneth Maxwell diz
que José Álvares Maciel, quando estudante em Coimbra, em 1788, discutira “a
possibilidade da independência do Brasil com homens de negócios da Inglaterra,
que lhe mostraram que o fato da América portuguesa deixar de seguir o exemplo
dos norte-americanos era visto com surpresa, e que qualquer iniciativa contra o
domínio português teria o imediato apoio dos empresários britânicos”.
Ainda não se podia falar, há mais de 200 anos, em
consciência nacional no sentido moderno dessa expressão – a consciência de se
pertencer a uma pátria comum, a um mesmo povo, com uma cultura comum, em um
mesmo território e com a economia partilhada por todos, que hoje faz do Brasil
uma nação integrada, do Amapá ao Rio Grande do Sul.
Ao contrário, há duzentos anos o sentimento regionalista era
muito forte, embora os revolucionários mineiros pensassem que seu movimento só
teria êxito caso São Paulo e Rio de Janeiro aderissem.
O forte sentimento autonomista e anticolonialista dos
inconfidentes, ligado à defesa de seus interesses econômicos ameaçados pela
Coroa portuguesa, levou-os a definir um programa de modernização que, embora
social e politicamente conservador, poderia ter iniciado a criação de uma nação
moderna.
Ao contrário dos pregoeiros modernos do neoliberalismo e da
modernidade conservadora, aqueles revolucionários procuraram demarcar com
clareza a distinção entre seus interesses e os interesses antinacionais das
potências estrangeiras.
A maioria dos líderes mineiros tinha motivações pessoais
para sua ação anticolonialista. Alvarenga Peixoto, por exemplo, “em 1788 estava
diante de uma situação crítica”, ameaçado, inclusive, por uma ação que corria
contra ele na Junta do Comércio de Lisboa, pela cobrança de uma dívida de 11
mil contos de réis, uma fortuna para a época.
As dívidas moviam à conspiração outra categoria de gente: a
dos contratantes dos dízimos. Eram particulares contratados pelo governo para
cobrar impostos. Em Minas, cabia-lhes recolher as taxas cobradas aos
mineradores; posteriormente deviam prestar contas à Fazenda Real, o que não
acontecia com regularidade, gerando assim suas dívidas. Eles eram
particularmente interessados no rompimento com Portugal. Domingos de Abreu
Vieira, por exemplo, era um contratante intimamente ligado a muitos oligarcas
mineiros; ele tinha uma dívida superior a 197 mil contos de réis. João
Rodrigues de Macedo, cuja mansão em Vila Rica era um ativo centro da
conspiração, e Joaquim Silvério dos Reis, também eram grandes contratantes, com
dívidas enormes. Macedo, por exemplo, devia uma soma oito vezes superior a seu
ativo.
Padres como José da Silva de Oliveira Rolim e Carlos Correa
de Toledo e Melo cobiçavam as vantagens pecuniárias que anteviam com a
emancipação.
Rolim era um latifundiário, traficante de escravos e
diamantes e usurário no Distrito Diamantino; ele “foi denunciado”, diz Maxwell,
“à Fazenda pelo juiz investigador Cruz e Silva” e era apontado como exemplo da
ostensiva corrupção reinante entre os influentes caixas locais do governo.
Toledo também era um rico e ambicioso proprietário de terras e escravos.
Militares nascidos no Brasil, como Francisco de Paula Freire
de Andrade ou Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, não conseguiam
progredir em suas carreiras, preteridos por concorrentes portugueses que tinham
a preferência nas promoções. Freire de Andrade era oficial da Companhia dos
Dragões, sendo frequentemente deixado para trás nas promoções feitas pelo
governo português. Tiradentes, por sua vez, nunca conseguiu passar do posto de
alferes.
Tiradentes pode ser considerado um típico representante da
camada urbana intermediária que se desenvolveu nas cidades da região das minas.
“Joaquim José da Silva Xavier foi, em toda a conspiração de Minas Gerais, um dos
únicos – se não o único – destituídos de posses e riquezas”, dizem os
historiadores Ricardo Maranhão e Antônio Mendes Jr. “Pertencia à ‘classe média’
pobre da Capitania, sendo obrigado a exercer vários ofícios ao mesmo tempo,
para sobreviver. Foi mascate, ‘dentista’ (o que lhe deu o apelido) e soldado do
regimento de cavalaria, onde não passou do posto de alferes (espécie de
sub-oficial) devido à discriminação contra os brasileiros, que raramente
chegavam ao oficialato. Também não era culto e ’letrado’, como a maioria dos
seus companheiros. Mas tinha o que nenhum deles podia oferecer à conjura: a
postura do grande agitador político, do líder revolucionário, do ‘homem de
massas’. Sua atividade e capacidade de trabalho eram espantosas. Enquanto seus
companheiros discutiam questões teóricas, ele agia, procurando aliados, fazendo
propaganda, viajando para outras capitanias, sondando as possibilidades”.
O programa da Inconfidência refletia as contradições dessa
composição social, prevendo a satisfação de múltiplos interesses. Refletia, por
um lado, as dificuldades econômicas que haviam afastado muitos magnatas da
coroa, “forçando-os no rumo da revolução”. Por outro lado, essa conjura de
oligarcas catalisou o descontentamento de outras camadas a que, hoje, se poderia
chamar de classe média letrada, formada principalmente de profissionais
liberais, magistrados, advogados e do clero, sensíveis às ideias francesas de
legalidade constitucional, e ao exemplo norte-americano de Independência e
formação de uma república constitucional.
O programa dos rebeldes mineiros previa o fim da proibição
de atividades econômicas no Distrito Diamantino e, principalmente, a anistia
das dívidas com a Fazenda Real. Além disso, seria criada uma Casa da Moeda
cujas emissões seriam lastreadas pelo ouro que, previa-se, seria proibido de
deixar a República. Previa-se também a implantação de manufaturas, o estímulo à
exploração dos depósitos de minério de ferro, a criação de uma fábrica de
pólvora, a criação de uma Universidade em Vila Rica, a restrição ao direito de
os padres cobrarem o dízimo (em contrapartida a essa cobrança, eles deviam
prestar serviços nas áreas de saúde, educação e assistência social), o
incentivo à natalidade, a abolição nas distinções e restrições no vestuário, a
obrigatoriedade de uso de produtos manufaturados localmente. Do ponto de vista
político, previa-se a formação de um governo republicano provisório, chefiado
por Gonzaga, com a duração de três anos, ao fim do qual os governos passariam a
ser eleitos a cada três anos. Os direitos políticos somente eram extensivos aos
homens livres, e os escravos, evidentemente, ficavam de fora da cidadania.
Cada cidade teria seu parlamento, subordinado ao parlamento
principal sediado na capital, e o exército permanente seria abolido (e seu
lugar ocupado por cidadãos armados que, quando necessário, deveriam servir na
milícia nacional).
Finalmente, encontraram uma solução de compromisso para a
questão da escravidão, tema de controvérsia entre os conjurados. Tiradentes
declarava-se abolicionista, enquanto outros conspiradores temiam o
comportamento dos escravos. Maciel, por exemplo, disse em seu depoimento:
“sendo o número dos homens pretos e da escravatura no país muito superior ao
dos brancos, toda e qualquer revolução que aqueles pressentissem nestes seria
certo motivo para que eles mesmos se rebelassem” (citado por Clóvis Moura).
A solução que o sargento Luís Vaz de Toledo pregava para
isso era a abolição. “Um negro com uma carta de alforria na testa se deitava a
morrer”, disse ele. “O certo, porém”, diz Clóvis Moura, “é que a abolição da
escravatura não figurou como ponto programático na Inconfidência”.
Segundo Kenneth Maxwell a solução de compromisso a que se
chegou, equacionando os interesses dos proprietários de escravos com a
segurança do Estado, foi a liberdade apenas para os negros e mulatos nascidos
no território da nova república.
A revolução almejada, contudo, não chegou a sair dos planos.
Sua história é por demais conhecida. Joaquim Silvério dos Reis, em troca do perdão
de sua dívida com a Fazenda Real, delatou seus companheiros. As prisões se
sucederam, os conspiradores foram processados, e as autoridades coloniais
prepararam um grande espetáculo público para o enforcamento de Tiradentes, no
dia 21 de abril de 1792. Pretendiam uma grande demonstração de força para
eliminar, pela raiz, qualquer veleidade autonomista e toda oposição não só ao
pacto colonial, mas também ao regime monárquico em Portugal.
Seu êxito, entretanto, foi precário. A própria dinâmica dos
acontecimentos europeus, conjugada com a luta dos nacionalistas brasileiros,
levaria poucas décadas mais tarde à Independência do país.
“A revolta planejada não se materializara”, diz Maxwell, “mas
isto não escondia o fato de que um importante segmento do grupo social em que o
governo metropolitano devia confiar para exercer seu poder em nível local, numa
das mais importantes, populosas, ricas e estrategicamente bem situadas
capitanias brasileiras, tinha tido o atrevimento de pensar que podia viver sem
Portugal. (…) Jamais o status quo anterior seria restabelecido”.
As contradições de classe que existiam entre os
conspiradores, e que provavelmente explodiriam se de fato chegassem ao poder,
tiveram uma ocasião menos nobre para manifestar-se. Elas tornaram-se visíveis
nas declarações de júbilo e de fidelidade à Rainha quando os condenados tiveram
conhecimento da comutação das penas de morte de todos os conjurados ricos em
degredos perpétuos para a África.
Em contrapartida, Tiradentes, o lado popular da articulação,
teve mantida sua cruel pena de enforcamento, esquartejamento e exposição
pública dos pedaços de seu corpo nos locais onde pregou a possibilidade e a
necessidade de o país livrar-se do jugo português.
Ele teve um comportamento heroico diante da morte, como até
mesmo testemunhas oficialistas como o padre confessor que o acompanhou nos
últimos momentos tiveram que reconhecer. Esse comportamento, eivado do
misticismo próprio da época, criou a lenda que, depois da Monarquia, quase cem
anos após sua morte, transformou-o em Patriarca da Independência e herói máximo
do ideal republicano.
Aquela foi sua primeira morte. Hoje, mais de duzentos anos
depois, Tiradentes talvez sofresse uma segunda morte, quando grande parte da
elite conservadora e reacionária compactua com o imperialismo da mesma forma
como, no passado, compactuou com D. Maria, a Louca.
Bibliografia
Maranhão, Ricardo e Mendes Jr., Antônio, “Um Homem do Povo
na Forca”. Jornal Bloco, nº 1, 1º de maio de 1979.
Maxwell, Kenneth. A Devassa da Devassa – A Inconfidência
Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra,
1977.
Moura, Clóvis. “Inconfidência Mineira, Uma Utopia
Republicana”. In Movimento, nº 95, 25 de abril de 1977.
A partir do artigo publicado originalmente na revista
Princípios, nº 25, 1992
Via - Portal Vermelho
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