O processo de cassação da chapa Dilma-Temer, que começará a
ser julgado nesta terça-feira, dia 4, para quem não lembra, foi iniciado em
2014, com uma birra do PSDB que, diante da derrota na corrida presidencial, em
vez de sentar e chorar como qualquer menino mimado de respeito, resolveu tentar
melar o jogo na Justiça.
Vivíamos, então, uma época de pureza e inocência, na qual
ninguém sonhava com um Eduardo Cunha na presidência da Câmara e o impeachment
não passava de uma ideia disparatada, oculta sob os cabelos metaleiros da
desconhecida Janaína Pascoal. Então os tucanos apelaram para o que tinham à
mão: acusaram a chapa adversária de, entre outros malfeitos, usar recursos não
contabilizados para pagar contas de campanha. A ideia, ao que tudo indica, era
usar o tapetão para que Aécio Neves, na condição de segundo mais votado, fosse
alçado à Presidência. O processo era um tiro no escuro e tinha poucas chances
de dar resultados, já que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nunca tinha
julgado um processo contra um presidente eleito.
Mas eis que o impeachment tornou-se real e a coisa parecia
estar resolvida. Dilma era carta fora do baralho, o PT sangrava, o PSDB se
aninhava no colinho do Conde Temer, os patos eram desinflados e as almas
palacianas suspiravam aliviadas com os sinais de retorno à normalidade. A sanha
justiceira arrefecia.
Políticos acusados de corrupção voltavam a ocupar
cargos-chave da República sem maiores infortúnios, e o caixa dois finalmente
recebia sua merecida redenção pública. O bastião social-democrata Fernando
Henrique Cardoso relativizou a prática, Marcelo Odebrecht atestou a
impossibilidade de qualquer político ser eleito sem um empurrãozinho por fora,
e o ministro do Supremo Gilmar Mendes decretou que caixa dois nem sempre é
corrupção.
Desafortunadamente, essa visão mais, digamos, conciliadora,
não pareceu contaminar o relator do processo no TSE, ministro Herman Benjamin.
Até então pouca gente sabia da existência do magistrado paraibano e teve até
leitor se perguntando o que aquela foto do Elton John estava fazendo nas
páginas de política.
Mas o fato é que o homem levou a sério essa história de
julgar presidente. Tomou a ação – que antes havia permanecido um ano no colo de
sua antecessora, Maria Thereza de Assis Moura sem grandes avanços – como o
processo de sua vida, e foi se meter a ouvir testemunhas. Foram mais de 50.
Entre elas, claro, estava o povo das empreiteiras.
Em outras palavras, Dilma sabia do caixa dois porque… bem…
porque sabia. Tinha que saber. Já Temer, não fazia ideia.
Nessa altura da tragicomédia, a bizarrice mais saborosa
talvez tenha sido o depoimento de Marcelo Odebrecht. Nele, o empreiteiro disse
que a sua empresa doou R$ 150 milhões à campanha vitoriosa, e que Dilma sabia
dos pagamentos de caixa dois enquanto as eleições ainda estavam em curso.
Quando os interrogadores pediram detalhes sobre o nível de conhecimento da
presidente deposta, o empresário ofereceu a cristalina resposta a seguir:
“O que… o que Dilma sabia… o que Dilma sabia era que a gente
fazia, tinha uma contribuição grande – a dimensão da nossa contribuição era
grande, ela sabia disso – e ela sabia que a gente era responsável por muitos
pagamentos para João Santana. Ela nunca me disse que ela sabia que era caixa
dois, mas é natural, é só fazer uma… ela sabia que toda aquela dimensão de
pagamentos não estava na prestação do partido.”
No mesmo depoimento, Odebrecht tratou de limpar a barra do
Conde Temer. Contou que foi a um jantar no palácio do Jaburu no qual se combinou
um repasse de R$ 10 milhões por baixo do pano. Mas garantiu que o então
vice-presidente se levantara da mesa antes de o trabalho sujo começar. Em
outras palavras, Dilma sabia do caixa dois porque… bem… porque sabia. Tinha que
saber. Já Temer, não fazia ideia.
Vejam, o então vice-presidente da república recebeu, em sua
residência, o dono da empresa que elevou o conceito de propina a um nível de
profissionalismo jamais visto na história enlameada da pátria, com direito a um
“setor de operações estruturadas” só pra distribuir recursos ilícitos.
Marcelo Odebrecht estava acompanhado de ninguém menos do que
Claudio Melo Filho, que, para quem não se lembra, era o principal encarregado
de comprar políticos e foi o responsável pela famosa delação premiada que trouxe
à luz apelidos como Todo Feio, Boca Mole, Santo, Siri, e tantos outros.
Temer, por sua vez, estava ladeado por Eliseu Padilha, homem
de sua total confiança, que, a despeito das acusações de corrupção que ainda
pairam sobre sua calva incipiente, hoje ocupa o cargo de ministro-chefe da Casa
Civil. Atenção. O sujeito ocupa o segundo cargo mais importante do Executivo.
Pois, essa gente boa estava toda reunida para um jantar
descompromissado, no qual talvez tenha se falado do preço do cimento, do
talento de Michelzinho para as artes e do assado Friboi habilmente preparado
pela bela e recatada Dona Marcela. Eis que, em dado momento da noite, Conde
Temer teria recebido uma iluminação divina (quiçá diabólica) e resolvido que
era hora de se retirar. Só então a mutreta finalmente teria sido acordada entre
os empreiteiros e Eliseu Padilha – o atual ministro-chefe da Casa Civil, não
custa repetir.
A coisa pode parecer um pouco estranha, mas fez sentido para
muita gente. O PSDB, por exemplo, achou tudo muito convincente. Na
segunda-feira passada (27), o partido entregou ao TSE um relatório com as
alegações finais sobre o processo, cria ingrata que agora lhe ameaça comer os
olhos.
Nele, disse mais ou menos o mesmo que Marcelo Odebrecht: “Ao
cabo da instrução destes processos não se constatou em nenhum momento o
envolvimento do segundo representado em qualquer prática ilícita. Já em relação
à primeira representada, há comprovação cabal de sua responsabilidade pelos
abusos ocorridos”.
A defesa de Temer também parece achar convincente a tese de
que Dilma sabia de tudo enquanto o Conde era uma espécie de donzela no bordel.
Tanto que, entre outras providências, pediu que as contas de cada campanha
fossem julgadas separadamente.
Ao que tudo indica, até mesmo Herman Benjamin comprou a
ideia, ao menos em parte. Ele deve votar pela cassação da chapa como um todo,
mas pela manutenção dos direitos políticos de Dilma e de Temer.
Porque, segundo o que ministros que tiveram acesso ao
relatório têm dito à imprensa, as mais de mil páginas do documento de Benjamin
evidenciam que houve uma série de irregularidades na campanha. Mas, ao mesmo
tempo, não trazem provas “cabais” de que Dilma ou Temer estavam cientes das
falcatruas enquanto elas estavam acontecendo.
Por lei, para serem punidos com a cassação da chapa, os
candidatos não precisam saber que atos ilícitos ocorriam. O simples fato de se
beneficiarem deles, já implica na chamada “responsabilidade objetiva”, prevista
no artigo 37 da Constituição. Já para que sejam retirados os direitos
políticos, é preciso se provar que eles tinham conhecimento dos desvios durante
a campanha.
A lógica por trás dessa decisão fica mais clara se usarmos o
exemplo de uma temporada de Formula 1. Suponhamos que nela, uma determinada
equipe de engenheiros use matérias mais leves do que o permitido e o piloto,
sem saber da fraude, ganhe o campeonato. Seria justo tirar o título dele,
porque foi conquistado com vantagens indevidas. Mas, uma vez que ele não sabia
do esquema, seria injusto impedi-lo de disputar as temporadas seguintes.
Resta saber se levantar da mesa para não escutar detalhes
das sujeiras é o equivalente legal a não ter conhecimento de que há sujeiras
ali. E se depoimento de corruptor pode ou não ser considerado “prova cabal”.
Além disso, claro, seria necessário encontrar uma chapa que tenha concorrido
sem lançar mão da vantagem indevida do caixa dois, o que, convenhamos, não soa
como a mais simples das tarefas.
A protelação permitiria que a formação do TSE fosse alterada
em favor do Planalto.
Mas, enfim, suponhamos que assim seja. O primeiro voto, do
relator, é pela cassação, com manutenção de direitos políticos. O que isso
significa na prática? Bem, provavelmente nada.
Temer, além de tirar a gravata para se aproximar do povo,
deve usar outro truque bastante eficiente no arcabouço das malandragens
políticas: ganhar tempo. O jeito mais simples de conseguir isso é através dos
pedidos de vistas, em que juízes do colegiado solicitam a interrupção do
julgamento para examinar melhor o processo antes de votar.
A protelação permitiria que a formação do TSE fosse alterada
em favor do Planalto. Sem quadro fixo, o tribunal, que a cada dois anos julga
as campanhas políticas, é composto de sete juízes. Três do Supremo, dois do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dois advogados, nomeados pelo presidente.
Em breve, um par de cadeiras deve ganhar novos titulares. A primeira em 16 de
abril, a segunda em 5 de maio. E quem indicará os novos ministros? Temer, é
claro.
Na quinta-feira (30), ele escolheu o primeiro dos dois novos
ministros. Admar Gonzaga, um advogado ligado ao DEM e ao PP, que se apressou em
dizer que não tem rabo preso com o presidente – e claro que todo mundo
acreditou.
Mas por fim, para além das indicações e manobras, se o TSE
julgar o processo com celeridade e cassar Michel Temer, ele deve recorrer ao
Supremo e esperar que a querela se arraste até 2018. As chances não são das
piores: “a gente não sabe quantos incidentes vamos ter”, já se apressou em
profetizar Gilmar Mendes o onipresente magistrado que preside o TSE.
Ah, mas o julgamento será um duro golpe na popularidade do
governo, dizem certos analistas. Sério? Temer tem 10% de aprovação popular,
está cercado de nomes suspeitos de corrupção, assinou as mesmas pedaladas
fiscais que serviram de pretexto para derrubar Dilma, comete gafes trumpianas,
propõe as reformas mais impopulares da história e continua lá. Por quê? Bem,
talvez porque nosso vampiresco presidente tenha outro belo trunfo sob as
abotoaduras douradas: para muita gente, ele representa simplesmente o menor dos
males.
Eis, portanto, o bombástico final da narrativa: Michel Temer
está se tornando o menor dos males. Seria um quadro de insanidade coletiva?
Antes de berramos siiimmm e saírmos correndo pelados pelas ruas do bairro, vale
uma última reflexão.
Não há clareza sobre o que aconteceria se a Presidência
ficasse vaga na segunda metade da legislatura. O artigo 81 da Constituição
Federal diz que deve haver uma eleição indireta, conduzida pelo Congresso. Mas
não há lei que regulamente esse artigo. Não foi definido nem quais
pré-requisitos deve ter um postulante à Presidência nessa situação.
Nem vamos pensar em Bolsonaros, mas o falador Gilmar Mendes,
por exemplo, poderia muito bem se candidatar. E ser eleito. E governar, com
toda a convicção de que caixa dois e corrupção são coisas diferentes. Seria
melhor ou pior que Temer?
Pronto. Agora podemos sair correndo pelados pelo bairro.
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