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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Desvelar o machismo

A Constituição garante que homens e mulheres são iguais perante a lei. Segundo as estatísticas, porém, as brasileiras não ocupam sequer 5% dos cargos de maior importância, e uma mulher é agredida, em média, a cada 15 segundos no Brasil. Nossa herança cultural machista ainda é uma incômoda realidade que precisa ser desvelada para ser superada.


Todo dia 8 de março eles fazem tudo sempre igual: lhes sorriem um sorriso pontual e lhes entregam uma rosa ou um bombom. A delicadeza e a doçura feminina são celebradas com presentes tão simbólicos e o cavalheirismo reafirma seu espaço, mesmo em tempos de igualdade de direitos entre homens e mulheres.

O dia internacional de luta pelos direitos das mulheres acabou se tornando o dia internacional do cavalheirismo. “Troque seu direito ao aborto por uma rosa” poderia ser o lema de uma campanha publicitária patrocinada por floriculturas propondo a resignificação da data. Não precisou de tanto. O machismo deu conta do recado e hoje a data é lembrada por suas flores e não por faixas e cartazes.

A resignificação de datas não é novidade. A propaganda trabalhista de Getúlio Vargas já transformara o “Dia do Trabalhador” em “Dia do Trabalho”. A data, criada pela Internacional Socialista como um dia de luta e reivindicações por melhores condições de trabalho, acabou se tornando uma data festiva comemorada até hoje pelos sindicatos com festas e shows. Pão e circo são o melhor batalhão de choque.

Com o Dia Internacional da Mulher a resignificação foi ainda mais drástica. Não bastasse neutralizar as reivindicações típicas da data ao custo mínimo de rosas e bombons, o dia passou a reafirmar o papel social destinado às mulheres em uma sociedade machista: delicadeza e doçura.

Claro que a maioria dos homens e mulheres que dão e recebem mimos na data nunca refletiram sobre isso e o fazem com as melhores das boas intenções. E são estas boas intenções que tornam a resignificação da data tão efetiva. Que mulher cometeria a indelicadeza de recusar uma rosa oferecida com tanta gentileza em comemoração ao “seu dia”? Um cala-boca perfeito!

Machismo

Somos uma sociedade homofóbica, racista e machista. Só que a homofobia é escancarada, o racismo é tímido e o machismo é dissimulado. O brasileiro não se constrange em zombar de gays em público, mas evita brincadeiras racistas quando não tem certeza da aquiescência dos ouvintes. Não zomba das mulheres, mas apenas da “loira burra”, aquela personagem fictícia que de tão bonita não poderia ser simultaneamente inteligente; uma discriminação que se esconde por trás de uma homenagem.

Ao contrário da maioria das discriminações que se funda na dicotomia “melhor/pior”, o machismo tem suas bases numa separação de papéis por características que se crê sejam predominantes em cada um dos sexos. O masculino: forte, racional, pragmático, agressivo etc; o feminino: belo, intuitivo, reflexivo, conciliador etc.

A maioria destas distinções foi produzida culturalmente e é muito difícil para a ciência construída dentro desta cultura machista identificar quais características são efetivamente biológicas e quais são ideológicas. Fato é que, numa sociedade patriarcal, as características atribuídas ao sexo masculino são mais valorizadas do que as atribuídas ao feminino. Assim, se em teoria, há apenas uma separação entre os papéis masculino e feminino, na prática, o papel masculino é economicamente mais valorizado, ocasionando uma discriminação legitimada com base em diferenças que não se sabe ao certo se são biológicas ou culturais.

Ao longo da história, esta divisão de papéis serviu de fundamento para a dominação das mulheres pelos homens. No Brasil, a mulher casada foi considerada relativamente incapaz até 1962 e não podia sequer exercer profissão sem autorização do marido (art.242, VII, do Código Civil de 1916). Somente com o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962) a mulher casada passou a ter plena capacidade civil, mas o marido continuou sendo considerado o chefe da sociedade conjugal (art.233 do Código Civil de 1916) até o advento da Constituição de 1988, que finalmente estabeleceu a igualdade entre homens e mulheres perante a lei brasileira.

Se para as mulheres ricas a restrição ao exercício do trabalho formal até a década de 1960 implicava uma vida dedicada ao lar como “donas-de-casa”, para as mulheres pobres, a situação era ainda pior. Proibidas pelos maridos de “trabalhar fora”, só lhes restava o trabalho informal dentro de suas casas, produzindo alimentos, roupas e outros produtos artesanais para serem vendidos e aumentar a renda da família. Na prática a lei condenava as mulheres pobres ao subemprego, ganhando menos que os homens, sem que seu trabalho fosse sequer reconhecido como tal.

Os 22 anos de igualdade jurídica entre homens e mulheres ainda não foram suficientes para superar esta cultura de subvalorização do trabalho feminino. Não obstante ter havido uma intensa inclusão da mulher no mercado formal de trabalho, elas ainda ocupam os cargos de menor hierarquia dentro das empresas e são menos bem remuneradas que os homens.

No Brasil, das 100 maiores empresas, segundo o ranking da revista Exame, apenas 5 são presididas por mulheres. Uma estimativa da consultoria DMRH publicada pelo jornal Folha de S. Paulo em janeiro de 2011 calcula que apenas 3% das empresas “médias-grandes” são presididas por mulheres. Nestas mesmas empresas as mulheres representam 9% dos diretores e vice-presidentes, 35% dos gerentes e 50% dos trainees e analistas.

Nos cargos públicos, a situação não é muito diferente: das 594 cadeiras do Congresso Nacional, apenas 57 são ocupadas por mulheres. No Supremo Tribunal Federal, dos 11 ministros, apenas 2 são mulheres e, no STJ, dos 33 ministros, 5 são mulheres.

Espera-se que com a eleição de Dilma Rousseff como presidenta da república e, com a indicação de um número maior de ministras, haja um aumento na participação das mulheres brasileiras na política e um maior reconhecimento da capacidade feminina em cargos de liderança.

Violência contra a mulher

A inferioridade jurídica da mulher perante a lei civil até o advento da Constituição de 1988 refletia também na conivência dos juízes criminais para com toda sorte de abusos do marido. A tese da “legítima defesa da honra” absolveu uma infinidade de maridos acusados de matar suas esposas por adultério. A jurisprudência dominante também entendia que o marido não podia ser punido pelo estupro da esposa, já que agia no exercício regular de direito, pois a mulher tinha o dever conjugal de manter relações sexuais com seu cônjuge. As lesões corporais contra a esposa, quando consideradas leves pelo juiz, também em regra não eram punidas em nome do “bom convívio familiar”.

A maioria destas teses jurídicas escancaradamente machistas já foram abandonadas pelos tribunais, mas ainda há muitos resquícios desta ideologia que predominou por tanto tempo. A exposição de motivos da parte geral do Código Penal vigente, datada de 1984, recomenda que o comportamento da vítima seja levado em conta para reduzir a pena, citando como exemplo o “pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes” por “constituir-se em provocação ou estímulo à conduta criminosa”.

As decisões judiciais em que o machismo se manifesta em maior ou menor grau ainda são constantes. Em uma polêmica sentença datada de 2007, só para ficarmos em um exemplo escandaloso, o juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, então titular da 1ª Vara Criminal de Sete Lagoas (MG), recusou-se a aplicar a Lei Maria da Penha afirmando que “a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (…) O mundo é masculino! A ideia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!” (sic).

Causa perplexidade, um juiz, em um Estado laico, valer-se de uma referência bíblica, para negar vigência a uma lei, com base no notório machismo judaico-cristão, que tem por base, entre outras, a referida passagem do Gênesis (3:16) em que Deus condena a mulher a ser submissa ao seu marido por ter convencido Adão a comer a famigerada maçã. Por conta desta absurda decisão e da repercussão que ela teve na mídia nacional, o magistrado acabou sendo punido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2010 com a pena de “disponibilidade compulsória” (remunerada, claro!), mas contou com a solidariedade da Associação dos Magistrados Mineiros (AMAGIS), que emitiu nota oficial afirmando que “recebeu com tristeza e perplexidade a decisão” do CNJ.

Ainda que sentenças com um machismo tão explícito sejam raras, ainda há muita resistência cultural por parte não só da Justiça, mas também da polícia em reprimir a violência doméstica por meio do sistema penal. Enquanto isso, segundo uma estimativa realizada em 2001 pela Fundação Perseu Abramo, 2,1 milhões de mulheres são agredidas por ano no país, numa assustadora média de uma mulher agredida a cada 15 segundos. O número de homicídios também assusta: segundo dados do Mapa da Violência no Brasil 2010, do Instituto Zangari, a cada dia, em média, 10 mulheres são mortas no Brasil. Ainda que seja difícil precisar as motivações destes crimes, supõe-se que a maioria tenha origem em conflitos domésticos.

Mesmo diante da gravidade destes números, juízes e tribunais resistem em aplicar a lei Maria da Penha ao pueril fundamento jurídico de que esta seria inconstitucional, por dar tratamento diferenciado a homens e mulheres. A igualdade jurídica é uma igualdade meramente formal e jamais mudará a realidade sociológica dando tratamento igual a pessoas em condições sociais distintas. O direito à igualdade é, antes de tudo, um princípio que visa à transformação social e, para tanto, deve tratar desigualmente os desiguais, tendo por meta reduzir estas desigualdades. Somente interpretando a lei com este espírito se poderá tornar a igualdade jurídica uma igualdade de fato.

Se as mulheres sofreram, no Brasil, durante 462 anos um tratamento desigual e prejudicial do direito, não se pode simplesmente ignorar estas mazelas históricas e julgar que um tratamento rigorosamente isonômico hoje possa corrigir as mazelas do passado. É preciso reconhecer que o tratamento desigual no passado gera prejuízos ainda hoje, pois não se muda a cultura de um povo do dia para a noite. E é preciso que haja leis que visem superar esta desigualdade historicamente produzida, dando um tratamento jurídico protetivo hoje, para que se possa ter uma sociedade mais igualitária amanhã.

Via Uma outra Opinião

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