A Constituição garante que homens e mulheres são iguais
perante a lei. Segundo as estatísticas, porém, as brasileiras não ocupam sequer
5% dos cargos de maior importância, e uma mulher é agredida, em média, a cada
15 segundos no Brasil. Nossa herança cultural machista ainda é uma incômoda
realidade que precisa ser desvelada para ser superada.
Por Túlio Vianna
Todo dia 8 de março eles fazem tudo sempre igual: lhes
sorriem um sorriso pontual e lhes entregam uma rosa ou um bombom. A delicadeza
e a doçura feminina são celebradas com presentes tão simbólicos e o
cavalheirismo reafirma seu espaço, mesmo em tempos de igualdade de direitos
entre homens e mulheres.
O dia internacional de luta pelos direitos das mulheres
acabou se tornando o dia internacional do cavalheirismo. “Troque seu direito ao
aborto por uma rosa” poderia ser o lema de uma campanha publicitária
patrocinada por floriculturas propondo a resignificação da data. Não precisou
de tanto. O machismo deu conta do recado e hoje a data é lembrada por suas
flores e não por faixas e cartazes.
A resignificação de datas não é novidade. A propaganda
trabalhista de Getúlio Vargas já transformara o “Dia do Trabalhador” em “Dia do
Trabalho”. A data, criada pela Internacional Socialista como um dia de luta e reivindicações
por melhores condições de trabalho, acabou se tornando uma data festiva
comemorada até hoje pelos sindicatos com festas e shows. Pão e circo são o
melhor batalhão de choque.
Com o Dia Internacional da Mulher a resignificação foi ainda
mais drástica. Não bastasse neutralizar as reivindicações típicas da data ao
custo mínimo de rosas e bombons, o dia passou a reafirmar o papel social
destinado às mulheres em uma sociedade machista: delicadeza e doçura.
Claro que a maioria dos homens e mulheres que dão e recebem
mimos na data nunca refletiram sobre isso e o fazem com as melhores das boas
intenções. E são estas boas intenções que tornam a resignificação da data tão
efetiva. Que mulher cometeria a indelicadeza de recusar uma rosa oferecida com
tanta gentileza em comemoração ao “seu dia”? Um cala-boca perfeito!
Machismo
Somos uma sociedade homofóbica, racista e machista. Só que a
homofobia é escancarada, o racismo é tímido e o machismo é dissimulado. O
brasileiro não se constrange em zombar de gays em público, mas evita
brincadeiras racistas quando não tem certeza da aquiescência dos ouvintes. Não
zomba das mulheres, mas apenas da “loira burra”, aquela personagem fictícia que
de tão bonita não poderia ser simultaneamente inteligente; uma discriminação
que se esconde por trás de uma homenagem.
Ao contrário da maioria das discriminações que se funda na
dicotomia “melhor/pior”, o machismo tem suas bases numa separação de papéis por
características que se crê sejam predominantes em cada um dos sexos. O
masculino: forte, racional, pragmático, agressivo etc; o feminino: belo,
intuitivo, reflexivo, conciliador etc.
A maioria destas distinções foi produzida culturalmente e é
muito difícil para a ciência construída dentro desta cultura machista
identificar quais características são efetivamente biológicas e quais são
ideológicas. Fato é que, numa sociedade patriarcal, as características
atribuídas ao sexo masculino são mais valorizadas do que as atribuídas ao
feminino. Assim, se em teoria, há apenas uma separação entre os papéis
masculino e feminino, na prática, o papel masculino é economicamente mais
valorizado, ocasionando uma discriminação legitimada com base em diferenças que
não se sabe ao certo se são biológicas ou culturais.
Ao longo da história, esta divisão de papéis serviu de
fundamento para a dominação das mulheres pelos homens. No Brasil, a mulher
casada foi considerada relativamente incapaz até 1962 e não podia sequer
exercer profissão sem autorização do marido (art.242, VII, do Código Civil de 1916).
Somente com o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962) a mulher casada passou
a ter plena capacidade civil, mas o marido continuou sendo considerado o chefe
da sociedade conjugal (art.233 do Código Civil de 1916) até o advento da
Constituição de 1988, que finalmente estabeleceu a igualdade entre homens e
mulheres perante a lei brasileira.
Se para as mulheres ricas a restrição ao exercício do
trabalho formal até a década de 1960 implicava uma vida dedicada ao lar como
“donas-de-casa”, para as mulheres pobres, a situação era ainda pior. Proibidas
pelos maridos de “trabalhar fora”, só lhes restava o trabalho informal dentro
de suas casas, produzindo alimentos, roupas e outros produtos artesanais para
serem vendidos e aumentar a renda da família. Na prática a lei condenava as
mulheres pobres ao subemprego, ganhando menos que os homens, sem que seu
trabalho fosse sequer reconhecido como tal.
Os 22 anos de igualdade jurídica entre homens e mulheres
ainda não foram suficientes para superar esta cultura de subvalorização do
trabalho feminino. Não obstante ter havido uma intensa inclusão da mulher no
mercado formal de trabalho, elas ainda ocupam os cargos de menor hierarquia
dentro das empresas e são menos bem remuneradas que os homens.
No Brasil, das 100 maiores empresas, segundo o ranking da
revista Exame, apenas 5 são presididas por mulheres. Uma estimativa da
consultoria DMRH publicada pelo jornal Folha de S. Paulo em janeiro de 2011
calcula que apenas 3% das empresas “médias-grandes” são presididas por
mulheres. Nestas mesmas empresas as mulheres representam 9% dos diretores e
vice-presidentes, 35% dos gerentes e 50% dos trainees e analistas.
Nos cargos públicos, a situação não é muito diferente: das
594 cadeiras do Congresso Nacional, apenas 57 são ocupadas por mulheres. No
Supremo Tribunal Federal, dos 11 ministros, apenas 2 são mulheres e, no STJ,
dos 33 ministros, 5 são mulheres.
Espera-se que com a eleição de Dilma Rousseff como
presidenta da república e, com a indicação de um número maior de ministras,
haja um aumento na participação das mulheres brasileiras na política e um maior
reconhecimento da capacidade feminina em cargos de liderança.
Violência contra a mulher
A inferioridade jurídica da mulher perante a lei civil até o
advento da Constituição de 1988 refletia também na conivência dos juízes
criminais para com toda sorte de abusos do marido. A tese da “legítima defesa
da honra” absolveu uma infinidade de maridos acusados de matar suas esposas por
adultério. A jurisprudência dominante também entendia que o marido não podia
ser punido pelo estupro da esposa, já que agia no exercício regular de direito,
pois a mulher tinha o dever conjugal de manter relações sexuais com seu
cônjuge. As lesões corporais contra a esposa, quando consideradas leves pelo
juiz, também em regra não eram punidas em nome do “bom convívio familiar”.
A maioria destas teses jurídicas escancaradamente machistas
já foram abandonadas pelos tribunais, mas ainda há muitos resquícios desta
ideologia que predominou por tanto tempo. A exposição de motivos da parte geral
do Código Penal vigente, datada de 1984, recomenda que o comportamento da
vítima seja levado em conta para reduzir a pena, citando como exemplo o “pouco
recato da vítima nos crimes contra os costumes” por “constituir-se em
provocação ou estímulo à conduta criminosa”.
As decisões judiciais em que o machismo se manifesta em
maior ou menor grau ainda são constantes. Em uma polêmica sentença datada de
2007, só para ficarmos em um exemplo escandaloso, o juiz Edilson Rumbelsperger
Rodrigues, então titular da 1ª Vara Criminal de Sete Lagoas (MG), recusou-se a
aplicar a Lei Maria da Penha afirmando que “a desgraça humana começou no Éden:
por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade,
da tolice e da fragilidade emocional do homem (…) O mundo é masculino! A ideia
que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!” (sic).
Causa perplexidade, um juiz, em um Estado laico, valer-se de
uma referência bíblica, para negar vigência a uma lei, com base no notório
machismo judaico-cristão, que tem por base, entre outras, a referida passagem
do Gênesis (3:16) em que Deus condena a mulher a ser submissa ao seu marido por
ter convencido Adão a comer a famigerada maçã. Por conta desta absurda decisão
e da repercussão que ela teve na mídia nacional, o magistrado acabou sendo
punido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2010 com a pena de “disponibilidade
compulsória” (remunerada, claro!), mas contou com a solidariedade da Associação
dos Magistrados Mineiros (AMAGIS), que emitiu nota oficial afirmando que
“recebeu com tristeza e perplexidade a decisão” do CNJ.
Ainda que sentenças com um machismo tão explícito sejam
raras, ainda há muita resistência cultural por parte não só da Justiça, mas
também da polícia em reprimir a violência doméstica por meio do sistema penal.
Enquanto isso, segundo uma estimativa realizada em 2001 pela Fundação Perseu
Abramo, 2,1 milhões de mulheres são agredidas por ano no país, numa assustadora
média de uma mulher agredida a cada 15 segundos. O número de homicídios também
assusta: segundo dados do Mapa da Violência no Brasil 2010, do Instituto
Zangari, a cada dia, em média, 10 mulheres são mortas no Brasil. Ainda que seja
difícil precisar as motivações destes crimes, supõe-se que a maioria tenha
origem em conflitos domésticos.
Mesmo diante da gravidade destes números, juízes e tribunais
resistem em aplicar a lei Maria da Penha ao pueril fundamento jurídico de que
esta seria inconstitucional, por dar tratamento diferenciado a homens e
mulheres. A igualdade jurídica é uma igualdade meramente formal e jamais mudará
a realidade sociológica dando tratamento igual a pessoas em condições sociais
distintas. O direito à igualdade é, antes de tudo, um princípio que visa à
transformação social e, para tanto, deve tratar desigualmente os desiguais,
tendo por meta reduzir estas desigualdades. Somente interpretando a lei com
este espírito se poderá tornar a igualdade jurídica uma igualdade de fato.
Se as mulheres sofreram, no Brasil, durante 462 anos um
tratamento desigual e prejudicial do direito, não se pode simplesmente ignorar
estas mazelas históricas e julgar que um tratamento rigorosamente isonômico
hoje possa corrigir as mazelas do passado. É preciso reconhecer que o
tratamento desigual no passado gera prejuízos ainda hoje, pois não se muda a
cultura de um povo do dia para a noite. E é preciso que haja leis que visem
superar esta desigualdade historicamente produzida, dando um tratamento
jurídico protetivo hoje, para que se possa ter uma sociedade mais igualitária
amanhã.
Via Uma outra Opinião
Via Uma outra Opinião
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