Sempre que a oportunidade aparece, ressuscita a campanha contra o Bolsa Família. Seu objetivo não é acabar com o benefício. É tão impossível quanto acabar com o salário mínimo, o Natal, o nascer do sol.
Por André Forastieri*
As metas são outras: manter o Bolsa Família com o menor
valor possível, enxovalhar a reputação de quem o recebe, influenciar a opinião
pública para que se torne politicamente difícil a criação de outros benefícios
semelhantes, e bater no governo. A quem interessa? Aos que têm outros destinos
para o dinheiro dos nossos impostos.
Recentemente, a correria por conta dos boatos sobre o fim do
Bolsa Família ressuscitou os zumbis de sempre. As questões habituais se
arrastaram para fora da tumba: o Bolsa Família é bom? É justo? Não é um
estímulo oficial à vagabundagem e à procriação destrambelhada? Não seria melhor
deixar de lado essa política assistencialista, e focar na geração de empregos,
verdadeira porta de saída dessa esmola? Não tenha dúvida: na próxima
oportunidade que pintar, os mesmos de sempre voltarão a atiçar com desinformação
os mesmos preconceitos. É bom estar preparado para retrucar.
A revista britânica Lancet publicou semana passada estudo
que relaciona de forma conclusiva o Bolsa Família com a queda da mortalidade
infantil. Dados de quase 3 mil municípios brasileiros foram utilizados, no
período entre 2004 e 2009. A Lancet é a mais tradicional publicação científica
na área de saúde do planeta - existe desde 1823. Nas cidades em que o programa
tem alta cobertura, a queda geral na mortalidade infantil foi de 19,4%. Cruzando
o Bolsa Família com causas específicas de morte, o impacto é ainda maior: queda
de 65% nas mortes por desnutrição e 53% nas mortes por diarreia. A íntegra está
aqui.
O Bolsa Família, portanto, salva vidas. Não é uma solução
permanente. É uma operação de emergência, necessária hoje e todo dia. Sua
missão fundamental é salvar vidas em perigo, vidas que enfrentam uma calamidade
permanente (o miserê nacional, desastre que de natural não tem nada). Aí
chegamos a outra crítica comum ao programa: mas pra quê tanta criança? Essa
mulherada sem vergonha não está parindo um filho atrás do outro, só pra
garantir uma renda fixa?
A resposta é um grande não. A taxa de fertilidade do Brasil
vem caindo rápido. Hoje é de 1,8 filhos por mulher, a mesma que o Chile, menos
que os Estados Unidos (1,9). Está abaixo do nível mínimo de reposição da
população (que é 2,1%). É evidente que se o mundo tivesse dois bilhões de
pessoas, em vez de sete, estaríamos melhor na fita. Quanto menos pobre, menos
pobreza... mas o fato inquestionável é que as brasileiras têm cada vez menos
filhos. E cada vez mais tarde - 40% das nossas conterrâneas entre 25 e 29 anos
ainda não têm filhos. Dados citados em um iluminador artigo da Economist desta
semana.
A importância do Bolsa Família para essas famílias pobres
ficou assustadoramente explícita nas reportagens de TV sobre o corre-corre.
Pareciam cenas de refugiados na África, se batendo por um galão de água, um
saco de ração. Por que nossos compatriotas ficaram tão desesperados com a
possibilidade de ficar sem o Bolsa Família? Porque eles não recebem um monte de
outros benefícios simultaneamente. Comparando com os países que tem a melhor
qualidade de vida, o Brasil tem benefícios sociais minúsculos.
O sociólogo Alberto Carlos Almeida fez uma comparação
chocante entre Brasil e Inglaterra, em artigo para o jornal Valor Econômico. Os
ingleses ganham salários muito mais altos que os brasileiros. E mesmo assim
recebem muitos tipos de auxílio diferentes, que aqui não existem. Alguns:
- bolsa funeral (R$ 2100 para ajudar no enterro de seu
familiar, incluindo pagar flores, caixão, uma viagem de algum parente para o
velório etc.)
- bolsa aquecimento no inverno (média de R$ 2400 por mês
para ajudar você a se aquecer no inverno)
- bolsa necessidades especiais (para deficientes ou idosos,
até R$ 1500 por mês)
- bolsa cuidador de quem tem necessidades especiais (R$ 720
por mês)
- bolsa aquecimento por painéis solares (até R$ 3600 por
mês)
- seguro desemprego (R$ 720 por mês)
E muitos outros de todo gênero. Almeida destaca o bolsa
criança, que paga R$ 1350 por mês para a família que tem uma criança (e mais
uns R$ 1200 para o segundo filho etc.). Vale lembrar que a saúde pública
inglesa é boa e gratuita, assim como a educação, em sua maior parte. Por isso
tudo, os ingleses são mais saudáveis e educados que os brasileiros, vivem mais
e melhor que nós, em um país sem violência. Lá, os impostos são aplicados em
benefícios que garantem uma vida mais saudável e segura. Quando alguém criticar
o Bolsa Família, faça-lhe um favor: jogue esses dados na cara do infeliz. Nós,
brasileiros, precisamos ter consciência do que funciona bem em outros países,
para cobrar as mesmas leis aqui. Dou o link para a reprodução do texto de
Almeida no site do Senado Federal, porque no site do Valor é só para
assinantes.
Certo que o Brasil não é a Inglaterra. Certeza que há
dinheiro suficiente para ajudarmos nossos deficientes, idosos, crianças,
desempregados e defuntos. Estão aí os estádios faraônicos pra Copa, molezas
diversas para empresas próximas do poder, benesses variadas para apadrinhados
etc. Somos a sexta maior economia do mundo. Nosso desafio não é gerar recursos,
é forçar a aplicação desses recursos no que trará mais benefícios para nossa
população.
O PT explora politicamente o Bolsa Família? Claro, é isso
que governos fazem, e a oposição idem. Aécio Neves até já disse que quem criou
o Bolsa Família foi o PSDB (não foi, mas criaram coisas parecidas. Lula, quando
o Fome Zero não decolou, reempacotou os benefícios criados pelos tucanos,
engordou um tanto o bolo, e marketou magistralmente). Minha sugestão é que os
governos estaduais e municipais da oposição criem seus próprios bolsa isso e
bolsa aquilo. Que bom se os políticos disputarem nosso voto nos dando dinheiro,
em vez de tirar...
O questionamento do Bolsa Família mais furado de todos é o
moral: é justo uma pessoa receber dinheiro, sem ter trabalhado por isso? Nem
merece resposta. A questão não é de justiça, é de isonomia. Os mais ricos já
recebem bastante dinheiro sem trabalhar. Embolsam rendimentos de suas
aplicações financeiras, aluguel de imóveis e tal. Acionistas de empresas
recebem dinheiro sem trabalhar: os lucros. E herdeiros recebem dinheiro sem
trabalhar, às vezes sem nunca ter trabalhado de verdade. Muitas crianças
brasileiras felizardas já têm seus futuros assegurados, graças ao que
construíram seus pais ou avós. Nunca precisarão pegar no batente (e mesmo
assim, como sabemos, muita gente abonada continua trabalhando, porque assim se
sente realizada, produtiva, estimulada, ganha mais dinheiro ainda etc. Dinheiro
é 100%, mas não é tudo...).
Na próxima vez que a campanha contra o Bolsa Família mostrar
sua cara feia, ajude a cravar uma estaca em seu coração. O Bolsa Família não é
nenhuma maravilha, mas é infinitamente melhor que nada. Tem que ser aplaudido,
imitado, diversificado e expandido para pessoas que não têm família. Tem que
ter o seu valor aumentado, bastante e rápido. Contra fatos, e vidas salvas, não
há argumentos.
* André Forastieri é jornalista
Fonte: R7
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