O senador José Serra (PSDB-MG), que participa da
distribuição de cargos e da montagem de eventual governo Michel Temer, decidiu
decretar, em artigo publicado nesta quinta-feira, o fim da Nova República,
período iniciado com a redemocratização do País, após a eleição indireta de
Tancredo Neves.
"A Nova República acabou", diz Serra. "Os
próximos meses, sendo otimista, ainda serão de incerteza e sacrifícios para um
povo já sofrido. Virar esta página exigirá estabelecer um mínimo de confiança
do povo nas instituições democráticas."
Serra, no entanto, não responde à questão: como confiar na
democracia depois de um golpe que vem sendo denunciado no Brasil e no mundo?
Leia, abaixo, a íntegra:
Depois da Nova República
Por *José Serra
“Brasileiros, começamos hoje a viver a Nova República.
Deixemos para trás tudo o que nos separa e trabalhemos sem descanso para
recuperar os anos perdidos na ilusão e no confronto estéril. Estou certo de que
não nos faltará a benevolência de Deus” - Tancredo Neves, discurso de posse na
Presidência da República, lido pelo vice-presidente José Sarney em 15/3/1985
O fecho do discurso de Tancredo consagrou a denominação de
uma nova etapa da nossa História: a Nova República. O desenlace do atual
processo de impeachment marcará o fim dessa etapa. Desde o ano passado vivemos
o pior de dois mundos: a ordem existente agoniza e nada ainda tomou o seu
lugar. Uma fase especialmente mórbida, que põe a mostra tudo o que ficou de
pior na nossa sociedade.
A Nova República não chegou a materializar a utopia
desenhada por Tancredo, mas trouxe avanços importantes.
Na política, a tutela militar deu lugar à participação
eleitoral e social das massas populares, com plena liberdade de organização e
manifestação e prevalência do Estado de Direito. O presidencialismo de
coalizão, arranjo em que o presidente da República obtém maioria no Congresso
mediante distribuição de cargos e verbas orçamentárias, garantiu uma
governabilidade problemática, mas efetiva.
Na economia, vencemos a superinflação e a insolvência
externa, depois de sofrermos seus piores efeitos. A consolidação de novas
fronteiras agrícolas coincidiu com a modernização produtiva: o Brasil conta
hoje com um agronegócio altamente competitivo. A participação do petróleo importado
no consumo total desabou de 80% em 1980 para 40% em 2000 e 20% em 2010,
eliminando antiga restrição externa ao crescimento.
A pobreza e as distâncias sociais diminuíram; os indicadores
de renda, saúde e educação melhoraram. Fundamentos de um Estado de bem-estar
foram assentados com a ampliação das matrículas no ensino fundamental,
programas de transferência de renda, a implantação do SUS e do
FAT/seguro-desemprego.
Na coluna dos passivos, o Brasil não alcançou, nesse
período, condições de crescimento de longo prazo. Em contraste com os 260% de
expansão entre 1950 e 1980, o PIB per capita aumentou 50% nas três últimas
décadas. Até meados dos anos 90, a superinflação e o desequilíbrio externo
travaram a economia. Em seguida, o receio da perda da estabilidade conquistada
pelo Plano Real e as sucessivas crises financeiras internacionais retardaram o
impulso expansivo.
A grande oportunidade para o desenvolvimento sustentado foi
desperdiçada, mesmo, pelo governo Lula. A bonança externa do período, decorrente
da elevação dos preços das exportações de alimentos e matérias-primas, foi
dissipada pelos aumentos exponenciais da importação de bens de consumo e do
turismo externo, em vez de fortalecer a competitividade da economia. Isso
resultou de decisões erradas de política monetária e cambial, que levaram a
sobrevalorização do real ao paroxismo. O investimento na infraestrutura de
energia e transportes e a elevação da carga tributária completaram a receita
perfeita para a rápida desindustrialização. O déficit comercial de
manufaturados saltou de praticamente zero em 2006 para US$ 81 bilhões em 2010 e
US$ 120 bilhões em 2014. Ah, sim, foi nesse período que se armou a ruína da
Petrobrás – loteamento, corrupção e investimentos mal feitos e megalomaníacos.
O governo Dilma herdou os custos: taxa de câmbio
megavalorizada, déficit em conta corrente em ascensão, infraestrutura
indigente, Petrobrás arruinada. Mais: a queda incessante da indústria
comprometeu o desempenho da arrecadação tributária. Os gastos públicos permaneceram
rígidos. A bonança externa acabou. Com inépcia só superada pela teimosia, seu
governo não conseguiu elevar os investimentos na infraestrutura em parcerias
com a área privada. Promoveu isenções de tributos caríssimas e ineficientes.
Reprimiu os preços de combustíveis e energia elétrica com fins eleitorais,
acumulando desequilíbrios nas empresas produtoras e pressões inflacionárias.
Resultado: colapso nas contas públicas e mergulho de 9,1% do PIB per capita em
dois anos, levando à perda de 3,5 milhões de empregos. As expectativas ruins
dos agentes econômicos passaram a cumprir como nunca o papel de profecias que
se autorrealizam.
A perda de popularidade na esteira da crise econômica e o
isolamento autoimposto da presidente implodiram o presidencialismo de coalizão.
Um governo tíbio, adoentado, entrou em fase terminal quando a Lava Jato expôs o
aparelhamento de empresas públicas para desfrute dos donos do poder e
seguidores. Mazela antiga, como se sabe, mas que assumiu extensão e intensidade
inusitadas no admirável mundo novo petista.
Esta recapitulação põe em perspectiva os tremendos desafios
do dia seguinte ao desenlace do processo de impeachment. A Nova República
acabou. A benevolência divina não nos negará a oportunidade de erguer sobre
seus escombros uma nova ordem política e econômica. Mas, como disse Jorge Luis
Borges, “até os milagres exigem precondições”. Para que Deus nos ajude serão
indispensáveis mudanças no sistema eleitoral e a adoção do parlamentarismo,
tornando o Legislativo mais responsável e permitindo, sem traumas, a rápida
substituição de governos ruins.
Sem truculência, mas com determinação, será preciso pôr
limites à pressão de corporações poderosas sobre as finanças públicas. O
patrimonialismo que grassa no setor estatal terá de ser coibido. As políticas
sociais devem ser mantidas, mas nos trilhos da eficiência e da inovação. As
condições de crescimento do País terão de ser recriadas com base na lisura, na
competência e na interação equilibrada dos agentes públicos e privados.
Os próximos meses, sendo otimista, ainda serão de incerteza
e sacrifícios para um povo já sofrido. Virar esta página exigirá estabelecer um
mínimo de confiança do povo nas instituições democráticas. Eis o maior desafio
das lideranças políticas, sociais e intelectuais dispostas a plantar o futuro,
em vez de se agarrar aos escombros do passado.
*JOSÉ SERRA É SENADOR (PSDB-SP)
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