Mestre Manoel Eudócio em seu ateliê no Alto do Moura, bairro
da cidade de Caruaru, PE
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Por Arthur Maciel Nunes. Fotos: Jesus Carlos
No RBA
O trabalho com o barro, muito presente na cultura e na
economia especialmente no Nordeste, é uma das atividades mais primitivas do
país. Tem influências diversas, originárias de África e Europa, mas aqui
configura uma produção e organização social de natureza essencialmente indígena
– mais antiga, portanto, que a própria criação do Brasil. De peças para o uso
doméstico, ainda essenciais no abastecimento de água potável e no preparo de
alimentos, a objetos modelados para retratar o cotidiano do povo nordestino, o
barro é matéria-prima vital na cultura e na economia da região.
Contam os mestres que o boneco de barro contemporâneo surgiu
da visão de Vitalino Pereira dos Santos, nascido em 10 de julho de 1909, no
Sítio Campos, zona rural de Caruaru (PE). Ele traçou o caminho do
reconhecimento dessa arte dentro e fora do Brasil e influenciou o trabalho de
outros artistas no estado. A primeira obra de sucesso de Mestre Vitalino, um
gato maracajá acuado em uma árvore por um cachorro e um caçador, até hoje é
modelada pelos seus descendentes.
Vitalino, que chegou a ter uma banda de pífanos, mudou-se da
zona rural nos anos 1940 para Alto do Moura, lugar que se tornou referência em
cerâmica figurativa, a apenas cinco quilômetros do centro de Caruaru. Lá
formaria a grande escola da arte na região ao lado de Manoel Eudócio, que
partiu em fevereiro último, aos 85 anos, José Antônio da Silva, o Zé Caboclo
(1921-1973), e Manoel Galdino (1929-1996).
Sobrinha de Manoel Eudócio e filha de Zé Caboclo, Marliete
Rodrigues, 59, é especialista na produção de peças em miniatura, de dois a três
centímetros. A maior parte é destinada a colecionadores e a exposições, como o
Salão de Arte de Pernambuco, onde já foi premiada tanto pelo público como pelos
jurados. Segundo Marliete, uma de suas peças figura no acervo particular da
ex-presidenta Dilma Rousseff. "Gosto de retratar momentos vividos em família.
Às vezes também sou pega por um sonho que me marca e retrato isso no
barro", diz.
A artesã começou a trabalhar aos 6 anos, observando os
gestos do pai. Tradição mantida pela artista. "A gente estimula as
crianças a brincar com o barro. Foi assim que eu comecei. Quando a gente gosta
muito do trabalho, quando faz o trabalho com amor, ele faz parte da vida da
gente o tempo todo. Desde criança eu descobri isso. Comecei copiando, mas
depois percebi que também tinha que criar algo que representasse o que eu sinto
e penso", conta Marliete.
Nascido na vizinha cidade de São Caetano, Manoel Galdino, o
Mestre Galdino, como é referendado na cidade, distingue-se dos demais pelo
surrealismo de sua obra. Solte Meu Burrico, Ladrão!, A Raposa Come o Macaco, A
Viagem de Maria ao Egito, Mané Pãozeiro, são alguns dos títulos dados pelo
artista a suas peças. Conta Joel Galdino, filho de Manoel que dá continuidade
ao talento do mestre: "Disseram numa exposição em São Paulo que ele não
era um artista. Ele ficou muito irritado e resolveu fazer uma peça de
improviso. Lembrou de um primo em São Caetano, vendedor de pão, que quando era
indagado sobre a vida botava uma mão na cabeça e estendia a outra dizendo: ‘Ah,
meu Deus, me ajude!’ Assim nasceu o Mané Pãozeiro".
A obra é um marco do estilo de Mestre Galdino. Lábios
enormes e destacados, boca e lábios agigantados, barriga protuberante, um misto
de gente e bicho. Tais quais os dentes serrilhados, as escamas, os totens, uma
gama de elementos que encontra acolhimento justamente na diversidade
carnavalesca de Pernambuco e é sempre presente na composição dos Galdino, pai e
filho.
Dizem os outros mestres que foi Vitalino Pereira dos Santos
quem traçou o caminho do reconhecimento dessa arte dentro e fora do Brasil
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Tracunhaém
A 67 quilômetros de Recife, na zona da mata, o tamanho das
peças e a cor púrpura do barro distinguem os personagens retratados pelos
mestres da arte figurativa. Caruaru é feita das cores de tantos são seus
folguedos e diversa é sua cultura e a sua gente. Já Tracunhaém é quase lívida,
com seus campos queimados e sua agricultura familiar expropriada pela
monocultura da cana-de-açúcar.
Aqui rareiam as árvores, mais ainda os frutos, em um império
de cinzas que caem do céu sem trégua, rangendo no ar em estalos quentes de
folha carbonizada, fruto das queimadas de cana que resistem aos avanços da
tecnologia agrícola. É uma cidade extremamente quente, a 10 quilômetros do
centro da vizinha Nazaré da Mata, um dos berços do maracatu rural de
Pernambuco.
O Caboclo de Barro de Mestre Sussula, Edvaldo José de
Andrade, é uma das poucas peças originais dos artesãos de Tracunhaém que
recebem acabamento de pintura. É um retrato fiel do colorido e das formas que
compõem a fisionomia e a indumentária do caboclo de lança do maracatu rural.
Mas a maioria é da cor pura do barro cozido, tons que variam entre o vermelho,
o marrom e o amarelo. Os artistas têm predileção por santos, de 50 centímetros
a 1,5 metro ou mais, como São Francisco, e também outros personagens religiosos
como Moisés, ou ainda a Maria Grávida, imagem que consagra a obra do mestre
Joaquim José da Silva, o Zezinho de Tracunhaém.
Trabalho de pintura no ateliê do mestre Sussula, em
Tracunhaém, PE
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Até os 19 anos, Mestre Zezinho trabalhava no corte da cana
na cidade próxima de Vitória de Santo Antão, até ter sua arte figurativa
elogiada pela cronista Marliete Pessoa, no jornal Gazeta de Nazaré, nos anos
1960. Foi quando tomou coragem e resolveu investir na arte profissionalmente. O
sucesso veio com um São Francisco em tamanho natural e com a peça que é tida
pelo artista como a sua predileta, uma imagem de Maria grávida, sentada e
aconchegada pelo marido José, este com um pássaro pousado em seu ombro
esquerdo.
Mais antiga representante da arte figurativa em Tracunhaém,
Maria Amélia da Silva, 92 anos, celebrizou as bonecas como a marca de seu
trabalho no barro. No papel de santas canonizadas ou de mulheres simples do
cotidiano da cidade, as imagens têm em comum as mãos espalmadas, a cabeça
inclinada sobre um dos ombros e a face invariavelmente erguida para o céu. Além
da delicadeza e harmonia dos traços e formas alcançadas. Arte que começou a
desenvolver "ainda menina", segundo os cálculos dela entre os 6 e os
8 anos, por incentivo do pai.
Das figuras humanas simples e bíblicas à figura feroz e
mítica do leão, foi nesse ponto que se destacou o talento de Manoel Borges da
Silva, ou Mestre Nuca, morto em fevereiro de 2014. O Leão Cacheado é a peça
que distingue a obra do artista, produção que hoje é mantida pelos filhos
Guilherme e Marcos Borges e pelo sobrinho Zenildo Gomes. É uma das peças mais
difundidas em Pernambuco, presentes em praças de Recife e coleções particulares
espalhadas por todo o Brasil.
Mais antiga representante da arte figurativa em Tracunhaém,
Maria Amélia da Silva celebrizou as bonecas como marca de seu trabalho no barro
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Goiana
"Minha mãe, Joana Isabel de Assunção, artesã, fazia
boneco de barro, arte culinária, comida típica do Nordeste, em panela de barro
que ela mesma confeccionava. Costureira, bordadeira, desenhava à mão livre
qualquer modelo de vestido para as madames da alta sociedade de Goiana. Artesã
completa, católica praticante da igreja dos Homens Pretos de Goiana, queria que
eu fosse padre. Meu pai, Manoel de Souza dos Santos, padeiro, nas horas vagas
fazia máscaras de barro, principalmente para brincar o carnaval. Graças a Deus
eu sou filho de artesãos." A fala é do mestre ceramista José do Carmo
Souza, representante de Goiana como Patrimônio Vivo da Cultura de Pernambuco.
"Todos nós somos anjos", difunde Zé do Carmo.
Dessa filosofia construiu seu arsenal de anjos e santos nas garras e traços de
personagens típicos do Nordeste, como cangaceiros, tocadores de pífano,
triângulo, sanfona e zabumba. "Um dia, enquanto caçava, era moleque ainda,
tinha uns 12 anos, vi um passarinho e observei bem as asas dele, pensei em
botar aquelas asas nos bonecos que eu fazia. Comecei a fazer anjos e santos com
a cara das pessoas que via nas ruas. Minha mãe não gostou, achou errado e
mandou que eu fizesse as imagens com jeito de santo europeu. Eu fiz e foi bom
que vendeu bem, todo mundo queria santo com cara bonita. Quando ela faleceu, em
1972, voltei a desenvolver minhas peças com a cara de gente da terra",
conta o artesão.
As peças de todos esses mestres do barro encontram-se
espalhadas por várias cidades do Brasil, em museus e coleções particulares,
principalmente.
Em Pernambuco, um acervo público pode ser apreciado no Museu
do Barro de Caruaru, no centro da cidade. Neste espaço, apenas de Mestre
Vitalino existem 66 peças originais do artista. É raro e lindo de ver.
Filha e sobrinha de mestres, Marliete Rodrigues é
especialista na produção de peças em miniatura
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