Os últimos dois dias foram de reuniões no Espírito Santo. A
primeira aconteceu no Palácio da Fonte Grande e teve como atores principais as
representantes das esposas de policiais militares, que fecham as portas dos
quarteis no estado há uma semana, e os representantes do governo. Já a segunda
era mais informal, o único objetivo dos envolvidos era liberar do IML de
Vitória os corpos de familiares mortos em mais um dia sangrento.
A reunião palaciana foi marcada pelo tensionamento já
presente entre o governo e o movimento dos policiais. Houve choro,
manifestantes ameaçadas, ata falsa, secretário engravatado dando o
posicionamento da tropa governamental e, obviamente, nenhum acordo. O fim
melancólico das tratativas coloca claramente que duas forças, até então bem
amigas, não conseguem mais se entender. O governo culpa sua segurança
particular pela onda de violência crescente no Espírito Santo. Já a PM, cansou
do seu papel de vigilante do Estado e, veja só, coloca o governo como
truculento — se é que a PM pode acusar alguém de truculência — e culpado pelos
120 mortos, até agora. Dessa vez, alguma coisa parece mesmo ter saído da caixa
de Pandora de modo tão surpreendente que nem mesmo o governador Paulo Hartung,
ou “Imperador PH”, acostumado a usar a PM para dissipar movimentos sociais,
sabe a quem recorrer.
O dia-a-dia está estranho pelas bandas capixabas. O
governador – atestado como doente e por isso impedido de participar do
interminável processo das negociações – chamou uma velha amiga da mídia
tradicional para dar uma entrevista exclusiva. Na hora do pronunciamento,
panelas foram ouvidas nos bairros nobres da capital. As ruas das cidades
viraram praças de guerra recheadas de carros de combate, tanques, jipes e
caminhões do exército.
Nesse cabo de guerra, é do lado do povo que a corda
arrebenta. O governo peca pela intransigência, já que Paulo Hartung foi eleito
através de uma plataforma que prega o “ajuste fiscal” e não aceita, de forma
alguma, que coloquem obstáculos em seu caminho de cortes. O Faraó Capixaba,
aposta (e muito) nesse modelo para galgar lugares bem mais altos na política
nacional. Segundo os bastidores, o atual governante do Espírito Santo, que
agora vê totalmente deteriorada sua imagem para o resto do país, seria uma opção
viável para o PMDB, seu atual partido, ou até mesmo pelo PSD – legenda que ele
flerta há anos – para uma candidatura à presidência do Brasil.
A reunião dos engravatados terminou, mas a agonia das
famílias em frente do IML continua. Os corpos que não param de chegar vêm, em
sua maioria, dos bairros periféricos da Grande Vitória — onde o Exército não
entra. Eles tornaram-se verdadeiros campos de batalha desde o tarde do primeiro
domingo mais sangrento de fevereiro. Tiros são ouvidos diariamente em uma corrida
desenfreada de jovens, que mais parecem estar brincando de polícia e ladrão em
seus videogames. Porém, ao invés de ficção é a realidade. Isso as esposas dos
PMs parecem não perceber.
As negociadoras, que sempre aplaudiram e criaram o
personagem de “herói de farda” para os seus maridos – que reprimiam qualquer
movimento social –, agora não entendem que o jogo virou. Embasadas em uma greve
“branca”, claramente orquestrada por grupos políticos de dentro da própria
Polícia Militar do Espírito Santo, as mulheres participam de reuniões com
reivindicações difusas, sem nenhum conhecimento do que estão solicitando e
jogam a população para um covil de leões.
O governo já sabe que no fim de tudo alguém terá de pagar a
conta dessas mortes, e
convenhamos, não cai nada bem politicamente ter na ficha
mais de cem assassinatos. A estratégia hartunguista baseia-se em duas frentes.
A primeira é criminalizar os policiais, com mais de 700 indiciados por crime
militar, valendo risco de prisão e expulsão da “honrosa” corporação. O segundo
passo é usar a mídia capixaba, que recebeu – só no ano passado- incríveis R$ 70
milhões em publicidade para colocar toda a culpa do sangue que jorra nas ruas
para a PM.
O problema parece longe de uma solução palpável. O governo
tenta passar a imagem de que estão em jogo apenas o orçamento, Lei de
Responsabilidade Fiscal, e cumprimento de limites legais. Mas não se pode
deixar de abrir os olhos para a profundidade do problema, que está intimamente
ligado ao corte de investimentos sociais, aumento da desigualdade, fim das
alternativas de crescimento e geração de renda para a população mais pobre,
passando também por temas como fim das isenções fiscais do governo PH,
desmilitarização da polícia, e uma nova lei de drogas.
A crise ainda perdura, os jovens continuam morrendo em
crescimento inversamente proporcional à sensação de segurança, mesmo com as
forças nacionais tentando cumprir o seu papel de vigiar as vidraças e prédios
de grandes empresas.
O governo mata por teimosia, a PM mata pelos anos de
omissão, e no fim disso tudo, como em um
jantar de inimigos em que todos consumiram, só nos restará
saber quem vai pagar a conta – porque culpa todo mundo tem.
*Mateus Cordeiro é jornalista, capixaba, pos-graduando em
Gestão Pública, servidor público e militante
Fonte: Outras Palavras
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