Burocracia e altos custos marcam a busca pelo remédio
derivado da maconha que pode amenizar sintomas de uma série de doenças
Priscila Inocente dá canabidiol ao filho, Miguel, de 5 anos. No início deste ano, em meio às dificuldades para importar o remédio, ela mesma produziu a substância em casa |
O menino é portador da Síndrome de Dravet, doença rara de
origem genética. Um ano e três meses depois da primeira convulsão, Maria
Angélica percebeu que não havia mais medicamento disponível que não tivesse
sido testado, sem sucesso. O estopim ocorreu em agosto deste ano, quando Thiago
sofreu uma crise convulsiva por duas horas, ficando uma semana sem andar ou
falar. O menino quase morreu. Sem alternativas medicamentosas, Maria Angélica
decidiu encarar todo o processo para importar o CBD e testá-lo no filho. Usando
o extrato há cerca de dois meses, Thiago recuperou o apetite e o sono, e fica
até duas semanas livre de convulsões.
A história de Maria Angélica e Thiago é mais um relato dos
efeitos positivos que a prescrição do CBD pode representar no tratamento contra
diversas doenças, principalmente as epilepsias, embora pesquisas apontem bons
resultados também em pacientes com mal de Parkinson, ansiedade, esquizofrenia e
alguns transtornos do sono.
“O CBD age no cérebro em dois receptores, o CB1 e o CB2. O
CB1 se liga ao canabidiol e libera uma substância e libera na fenda sináptica
uma substância chamada anandamida. A liberação dessa substância proporciona
estabilidade nas células neuronais, controlando melhor as crises convulsivas”,
explica a neurofisiologista do Hospital de Clínicas da UFPR e pós-doutora pela
McGill University (Canadá) especializada em epilepsia, Ana Chrystina Crippa.
Ainda segundo a médica, o CBD tem menos efeitos adversos que medicamentos
tradicionais, sendo indicado principalmente para pacientes com epilepsia
refratária, ou seja, quando o paciente usou mais de dois medicamentos e não
conseguiu controlar a crise.
O caso mais emblemático do início do uso da substância no
mundo é o de Charlotte Figi, hoje com 8 anos, e que foi a paciente mais nova do
estado do Colorado, nos Estados Unidos, a utilizar o CBD no combate às
convulsões diárias, quando tinha apenas 5 anos. Portadora da Síndrome de
Dravet, como Thiago, quando sua família decidiu tratá-la com o extrato,
Charlotte sofria até 300 convulsões graves por semana e já havia perdido a
capacidade de andar, falar e comer. Aos 6 anos, a criança recuperou os
movimentos e a fala e o número de crises epiléticas foram reduzidos a dois ou
três episódios por mês.
No Brasil, Anny Fischer, de 5 anos, foi a primeira paciente
a conquistar na justiça o direito de importar o canabidiol, em decisão de abril
deste ano.
Li um artigo de um médico americano orientando a produção
artesanal. Coei e testei no meu marido. Depois o Miguel tomou. Usamos durante
uma semana e paramos, porque mudou o padrão da crise e fiquei com medo.
Priscila Inocente, mãe de Miguel, de 5 anos, que enfrenta
convulsões diárias desde 1 ano e dez meses de idade.
Falta de regras e demora desafiam paciência
Enquanto ainda não há perspectiva de quando a
comercialização e produção do canabidiol serão autorizados em território
nacional, a única alternativa é importar o produto, com aval da Anvisa.
A Agência exige uma série de documentos, a começar pela
receita médica, laudo médico atestando a condição do paciente, termo de
responsabilidade e formulário de importação excepcional. Desde abril, a agência
já recebeu 208 pedidos de importação, dos quais 168 foram autorizados.
Superada essa primeira etapa, os pacientes são surpreendidos
pelo alto custo do remédio – ampolas com 10 ml custam, em média, R$ 1,8 mil, mas
podem chegar ao país por até R$ 2,5 mil com os impostos – embora a Receita
Federal afirme que o CBD consta da lista de isenção de tributos. Os preço alto
por um remédio que pode durar apenas uma semana e a demora levam muitas
famílias a optar por outro caminho.
É o caso de Priscila Inocente, mãe de Miguel, de 5 anos, que
enfrenta convulsões diárias desde um ano e dez meses. Miguel é autista, mas o
que causa a epilepsia ainda é uma incógnita para os médicos; as suspeitas
recaem sobre uma displasia cerebral, mas ainda não há confirmação. Os
tratamentos contra as convulsões, no entanto, nunca vingaram.
Em fevereiro deste ano, tomada pelo desespero, Priscila
decidiu produzir o extrato em casa. “Li um artigo de um médico americano
orientando a produção artesanal. Coei e testei no meu marido. Depois o Miguel
tomou. Usamos durante uma semana e paramos, porque mudou o padrão da crise e
fiquei com medo”, lembra.
Em março, ela encontrou uma forma de trazer três seringas de
CBD do exterior. Miguel reagiu bem ao medicamento, as cerca de 30 crises
diárias viraram duas, o apetite aumentou e o desenvolvimento melhorou. O
resultado encorajou Priscila a comprar mais CBD, dessa vez pelo E-bay. “No
início, minha família foi contra, tinham medo que eu fosse presa. Mas tenho
certeza de que qualquer juiz entenderia uma mãe que tenta salvar o filho”, diz,
convicta. “Sempre pensei ‘Vai fazer bem? Amém’. Mais mal do que 30 convulsões
por dia não vai fazer. O CBD é muito importante para o Miguel, lhe garante
qualidade de vida”.
Além de situações de risco como as enfrentadas por Priscila,
a falta de regulamentação implica, ainda, outro agravante: os EUA, maior
exportador de CBD para o Brasil, possui mais de cem empresas fabricantes; sem
regulamentação da Anvisa, não há certeza sobre a concentração do CBD e quais
são os componentes do produto importado.
“Cada produto possui concentração de CBD e de THC. No
Brasil, entende-se que o THC é tolerado em até 0,6 ml por dia sem efeito
negativo, mais que isso pode ser danoso ou tóxico. Mas não há controle sobre o
produto importado; se fosse regularizado, a Anvisa poderia verificar a porcentagem
de cada substância”, explica a neurofisiologista Ana Chrystina Crippa.
Gazeta do Povo
Gazeta do Povo
Nenhum comentário:
Postar um comentário