Eles foram vítimas de 30 mil assassinatos em 2012; do total
de mortes, 77% eram negros, o que denuncia um genocídio silenciado de jovens
negros, afirma Atila Roque, da Anistia Internacional
Matou-se mais no Brasil do que nas doze maiores zonas de
guerra do mundo. Os dados são da Anistia Internacional no Brasil e levam em
conta o período entre 2004 e 2007, quando 192 mil brasileiros foram mortos,
contra 170 mil espalhados em países como Iraque, Sudão e Afeganistão.
Os números surpreendem e são um reflexo de uma “cultura de
violência marcada pelo desejo de vingar a sociedade”, conta Atila Roque,
diretor-executivo da base brasileira da Anistia Internacional. De acordo com os
últimos levantamentos feitos pelo grupo, 56 mil pessoas foram assassinadas em
solo brasileiro em 2012, sendo 30 mil jovens e, entre eles, 77% negros.
Esses índices, segundo ele, são resultado de uma política de
criminalização da pobreza e de uma indiferença da sociedade em torno de um
“genocídio silenciado” que muitas vezes fica impune. “Entre 5 e 8% dos
homicídios no Brasil chegam a virar processo criminal. Então, na verdade, matar
no Brasil virou um crime quase que impune”, afirma Roque. “Ou seja, processos
sobre os homicídios também são seletivos.”
Do outro lado desse processo, o racismo introjetado nos
profissionais de segurança pública explica a alta mortandade da população
negra. Para Roque, esses policiais são vítimas do mesmo preconceito que
reproduzem. “Essa sociedade que constrói uma visão estereotipada sobre sua
população, em particular a jovem negra de periferia, vê o policial como parte
desses cidadãos de segunda classe”, argumenta.
CartaCapital conversou com o diretor-executivo da Anistia
Internacional no Brasil sobre a campanha “Jovem Negro Vivo”, cujo objetivo é
sensibilizar a sociedade para o tema da violência direcionada aos jovens, em
especial negros, no Brasil.
CartaCapital: O Mapa da Violência de 2014 da Unesco mostra
que há uma queda de 32,3% no número de homicídios de jovens brancos, enquanto o
percentual de homicídios de jovens negros cresceu na mesma proporção, com um
aumento de 32,4%. O que isso indica?
Atila Roque: Essa é uma tendência não só de 2014. Se
olharmos os dados dos últimos dez anos, é certamente isso que você vai
encontrar. Entre jovens brancos, com idade entre 16 a 29 anos, há uma redução
na taxa de homicídio da ordem de 33%. Quando considerarmos os homicídios de
jovens negros, na mesma faixa de idade, é como se olhássemos para um espelho
invertido. A partir disso, quando olhamos a linha de crescimento de homicídios
no Brasil, a conclusão imediata é que o crescimento das mortes está muito
sustentado na morte do jovem negro.
Se a tendência de redução que encontramos nas mortes de
jovens brancos prevalecesse, estaríamos em um processo de redução das taxas de
homicídio, o que não está acontecendo. Estamos há mais de dez anos na faixa de
50 mil homicídios por ano, o que é um número absolutamente espantoso, mesmo
comparando com situações de guerra e conflitos.
Isso também sugere que a sociedade brasileira está
claramente admitindo que não se importa, pelo silêncio e pela indiferença. Está
dizendo que o jovem negro pode morrer e que há um tipo de pessoa que é “matável”.
Isso tem muito dos nossos preconceitos e dos estereótipos que formam a visão do
Estado e da sociedade em relação a seus cidadãos.
CC: A sociedade não se importa ou não sabe?
AR: Não saber é relativo. Primeiro porque esses dados
existem pelo menos desde 1981. Então, a sociedade como um todo, e isso inclui
os órgãos de imprensa e as entidades estatais responsáveis por políticas
públicas, não pode alegar desconhecimento. Essa série de dados que é
proveniente do registro do Sistema Único de Saúde já vem sendo feita há 30
anos. Por isso conseguimos traçar tantas tendências e fazer paralelos. O Brasil
tem os dados. O problema é em que medida esses dados são apresentados à
população e com que dramaticidade. A verdade é que, se analisarmos, com
raríssimas exceções, a cobertura que a grande imprensa dá, notamos um grande
silenciamento. Isso raramente chega até as manchetes dos jornais.
CC: Diferentemente de outros países…
AR: A barbaridade do caso Ferguson, por exemplo, causou um
escândalo nos Estados Unidos e no Brasil também. Alguns jornais brasileiros
deram quatro páginas para o caso. Por outro lado, há três semanas, tivemos um
episódio em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, em que cinco jovens foram
executados em uma esquina. Isso gerou um pedaço de notícia minúsculo.
Não quero culpar a imprensa, isso faz parte de uma situação
complexa em que a imprensa responde às prioridades da sociedade, o que sugere
que a sociedade não está mesmo prestando atenção para esse tipo de caso. Assim,
temos um ciclo vicioso. O dado sai naturalizado. É como se as pessoas dissessem
“puxa, que pena, mas eles tinham que morrer mesmo”.
CC: Por que espanta quando a notícia é Ferguson e não
espanta se acontece em Duque de Caxias?
AR: Porque em Ferguson a reação da sociedade foi de outra
ordem, saiu às ruas, indignou o país. Em Duque de Caxias, a notícia fica na
cidade. Essa tem sido, infelizmente, a dura rotina de quem é vítima da
violência. Existe um olhar da sociedade sobre o jovem negro, morador da
periferia, que é “ele vai morrer, ele vai entrar no crime, ele vai se envolver
em situação de conflito”, então, quando acontece, é como se o destino já
estivesse traçado. E, na verdade, não está. O destino desse jovem é viver e não
morrer.
CC: Existe algum levantamento da polícia que tipifica o tipo
de crime pelo qual esses jovens negros, que estão sendo mortos, respondem?
AR: Eu não conheço esse dado, mas o que eu posso dizer é que
existe um índice muito alto de prisões por crime contra a propriedade – roubo,
assalto, e delitos pequenos em comparação com crimes letais – e tráfico de
drogas. A gente sabe que o Brasil pune o peixe pequeno e o usuário pobre e
morador de periferia. Estes são enquadrados como traficantes, enquanto os grandes
traficantes, às vezes, são enquadrados como usuários. O Brasil prende muito.
Assim como a violência é seletiva, a Justiça também é e a
impunidade é mais ainda. Desde a República Velha há o dizer: “Aos amigos, tudo;
aos inimigos, a lei”. De certa maneira é isso o que acontece no sistema de
justiça no Brasil. Como pode-se falar em impunidade se temos a quarta maior
população prisional do mundo? É um espanto. Prende-se quem, por quê?
Ao mesmo tempo, entre 5 e 8% dos homicídios no Brasil chegam
a virar processo criminal. Então, na verdade, matar no Brasil virou um crime
quase que impune. Só vira inquérito quando é quase em flagrante, ou seja,
quando o crime é passional ou de trânsito, aquele crime que todo mundo viu. Ou
seja, processos sobre os homicídios também são seletivos.
Violência: Brasil mata 82 jovens por dia
CC: O Brasil tem a quarta maior população carcerária do
mundo e o País é conhecido por não conseguir recuperar os seus presos e
reinseri-los na sociedade. Partindo desse princípio, qual é o futuro de um
jovem negro que vai preso, hoje, no Brasil?
AR: Hoje, infelizmente, com a exceção daqueles que conseguem
nadar contra a corrente, por força pessoal ou pelo apoio familiar, a chance é a
pessoa sair mais desacreditada em relação à sociedade e pior. O sistema piora
as pessoas. A maior parte das pessoas vai presa sem ter cometido um crime
violento, ou seja, sem histórico de violência ou vínculo com o crime
organizado. Ao entrar na prisão, ele é submetido à violência do sistema
prisional, ao controle das prisões pelas facções criminosas e é empurrado a
aprofundar seu envolvimento com o crime. E, além de tudo, o jovem sai do
sistema com o estigma de quem foi preso.
A lei de execução penal, embora bastante razoável, não é
aplicada no Brasil. Não se opta por penas alternativas porque ainda temos uma
cultura muito marcada pela vontade de vingar a sociedade. Além disso, 40% da
população carcerária está em prisão provisória, ou seja, nem sequer passaram
por um julgamento. A maioria dessas pessoas seria submetida a penas de trabalho
comunitário ou seria inocentada, sem a necessidade de ter sido presa. Isso
mostra o grau de injustiça e perversidade contido no sistema.
CC: É possível mensurar o número de morte de jovens
cometidas pelo Estado?
AR: Estamos bastante mal na coleta de dados de letalidade
provocada pelo Estado. Nós sabemos muito pouco sobre quem foi morto pela
polícia. A coleta é imperfeita. A maior parte dos estados não coleta, coleta
mal ou não divulga. Isso no País que tem uma das polícias que mais matam no
mundo. E, para fazer justiça, é uma das polícias que mais morrem também.
CC: É justo afirmar que as instituições policiais
brasileiras apresentam um racismo crônico e que existe deficiência na formação
policial?
AR: Eu acho justíssimo. Vejo os profissionais de segurança
como vítimas dessa máquina de matar. Eles são profissionais que não são
reconhecidos pela sociedade, a sociedade olha para eles como aqueles que fazem
o serviço sujo. Essa sociedade que constrói uma visão estereotipada sobre sua
população, em particular a jovem negra de periferia, vê o policial como parte
desses cidadãos de segunda classe. Eles são mal pagos, mal treinados, mal
equipados.
Eles não têm apoio psicológico ou de saúde. Suas famílias
ficam quase desamparadas quando um deles morre. Eles são vítimas. São, em sua
maioria, jovens e, no caso da Polícia Militar, negros. E pagam o preço por
estarem na ponta do sistema, quando a verdade é que são vítimas também.
Uma pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas com o Fórum
de Segurança Pública, há dois anos, mostra que ninguém deseja mais a reforma do
sistema de segurança do que o próprio policial. Ele é a favor da
desmilitarização, ele se manifesta a favor da reforma da polícia, ele está
insatisfeito por não ter uma carreira única.
Temos um sistema caótico e devemos revisitá-lo sob a
perspectiva de que segurança pública é um direito de todos. O profissional de
segurança pública deveria ser considerado pela sociedade tão ou mais importante
quanto um médico, porque é ele quem tem o monopólio da violência para proteger
os outros.
CC: Com exceção de 2014, que foi um ano de desaceleração
econômica, o Brasil tem vivido um ciclo de crescimento e maior inclusão social,
no qual o jovem pobre tem um acesso ampliado ao Ensino Superior e goza de um
processo de maior distribuição de renda. Diante disso, por que o número de
homicídios entre pobres e negros não cai?
AR: Esse talvez seja o maior paradoxo que estamos vivendo
enquanto sociedade. Isso desmente o que se dizia no passado que é: basta
resolver a questão social e promover inclusão que a violência automaticamente
vai diminuir. O que estamos vendo no Brasil é que a dinâmica da desigualdade,
da distribuição dos bens e da violência obedece a outros critérios que não são
apenas a inclusão. É claro que a inclusão é um fator importantíssimo, mas
provavelmente o que estamos assistindo é que a mesma família que se beneficia
da inclusão também paga o preço entre os seus.
A conclusão que os estudos têm demonstrado é que, se não
priorizarmos uma política inclusiva e responsável de política pública, junto
com uma política de redução da desigualdade, não é possível reverter essa
situação.
A dinâmica da violência está associada aos problemas
históricos do campo da política de segurança no Brasil. Temos uma tradição de
criminalização da pobreza, de definição de guerra ao jovem pobre, que só foi
agravada com a ditadura militar e que não foi alterada de forma substantiva com
a democracia.
CC: Existe uma estimativa do número de jovens que morrem no
Brasil por dia?
AR: Algo em torno de 82 jovens entre 16 e 29 anos a cada 24
horas. Isso não estar nas páginas dos jornais é algo espantoso. Para que se
tenha uma ideia do que significa, imagine que a cada dois dias caia um avião
cheio de jovens. Entre eles, 93% são do sexo masculino e 77% são negros. E a
sociedade não dá uma só notícia. Na verdade, esse deveria ser o único assunto.
Nós não devíamos falar de mais nada no Brasil. É uma tragédia de proporções
escandalosas.
violencia mata jovens dia3 300x152 Violência: Brasil mata 82
jovens por dia
CC: O Estatuto do Desarmamento está para ser revisto em uma
Comissão Especial na Câmara dos Deputados. Na sua opinião, a revisão do
Estatuto influenciaria nesse número de mortos?
AR: No caminho que está tomando, sem dúvida nenhuma. Mais de
90% das 56 mil mortes são causadas por armas de fogo. É muito fácil colocar a
mão em um revólver no Brasil. Essas pessoas todas estão morrendo com armas de
fogo de muito fácil acesso, não estamos falando de armas altamente sofisticadas
como o noticiário sugere. Ao se pensar que essa legislação corre o risco de ser
ainda mais flexibilizada, isso se torna uma coisa inclassificável do ponto de
vista de uma sociedade que valoriza a vida. É uma loucura.
CC: E o que fazer para alterar esse cenário de genocídio não
divulgado entre os jovens?
AR: A Anistia Internacional no Brasil lançou uma campanha
chamada “jovem negro vivo”. Nós tomamos essa decisão porque poucos temas na
área dos Direitos Humanos, da democracia e da cidadania tem tanta importância
quanto essa situação de quase extermínio cotidiano que a população jovem, em
especial jovem negra, está vivendo. Acreditamos que o Brasil precisa fazer com
a questão dos homicídios de jovens a mesma coisa que fez com a fome.
Hoje, o Brasil saiu do mapa da fome. Houve uma mudança
concreta no momento em que a sociedade despertou para esse problema e colocou
isso na sua lista de mais altas prioridades. A Anistia está convidando para a
mobilização, para que a sociedade brasileira coloque a questão dos homicídios
de jovens, em especial os negros, como prioridade e retire o Brasil do mapa de
homicídios. O manifesto já está no site. Esperamos que em cinco anos, ou até
menos, nós possamos acordar e dizer que nós, como sociedade, tomamos a decisão
de romper o pacto de silêncio e acabar com essa epidemia da indiferença que
está matando tantos jovens.
Fonte: Carta Capital
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