Considerando o currículo vergonhoso que o governo interino
tem acumulado desde a posse, o ataque ao regime de cotas no serviço público até
que estava demorando. Anunciado pelo Ministério do Planejamento, que responde
pelo sistema de contratações da administração federal, é uma iniciativa que
merece repulsa absoluta.
O esforço sem limites para garantir todo e qualquer apoio
social para compensar sua fraqueza de origem levou o governo Temer a cortejar o
eleitorado racista, habituado se esconder na teoria, muito conveniente para os
brasileiros brancos, de que vivemos sob uma democracia racial.
Vamos combinar que era só uma questão de tempo.
Vitória histórica contra a discriminação e suas sequelas,
admitidas por estudos acadêmicos de várias correntes de pensamento, a política
de ação afirmativa sempre foi questionada por lideranças interessadas na
manutenção de um sistema de privilégios apoiado na exclusão de mais de 50% dos
brasileiros que trazem a descendência africana na pele, nos cabelos, nos olhos
e, especialmente, em 400 anos de exclusão social, perseguição e violência.
A ideia de formar comissões que irão avaliar se uma pessoa
tem descendentes negros - ou se está mentindo para obter vantagens - é ridícula
como demonstração de ignorância sobre o conceito de "raça". Também é
grotesca como projeto de Estado.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, quando a ONU
realizou estudos sobre a origem do racismo, sabe-se que não há base científica
para se definir raças humanas, como sintetizou o sábio Claude Levi Strauss, um
dos gênios do século XX.
Isso porque os seres humanos tem uma formação genética
diferente daquela que pode ser encontradas em cães - que podem ser pastores,
boxers, labradores e até vira-latas - ou gatos, angorás ou siameses. Avaliando
o horror do holocausto, que tinha no programa de extermínio de judeus seu maior
instrumento ideológico, Levi Strauss explicou que raça é cultura. Partindo
dessa lição do mestre, que seria confirmada décadas mais tarde pelo estudo de
DNA das populações do planeta, pode-se entender que os cidadãos que forem
escalados para dizer se determinado sujeito é branco, ou negro, ou não passa de
uma fraude, estarão expressando, acima de tudo, seus próprios preconceitos e
convicções. Imagino o dedo em riste. As sombrancelhas duras. A voz indignada.
Tudo para tentar submeter e envergonhar. Nos tempos de Hitler, os suspeitos
eram convidados a colocar o pinto para fora das calças, caso fosse necessário
dirimir maiores dúvidas.
O grave é que a simples ideia de formar uma comissão para
"investigar" um candidato a emprego público tem um ponto de partida
racista. Sem dados científicos para sustentar seus trabalho, a única base de
sua atividade será levar a sério, logo de saída, os estereótipos longamente
cultivados por uma sociedade que jamais ajustou as contas com a escravidão,
agindo de forma sistemática para manter nossos afrodescendentes como homens e
mulheres de segunda classe. A humilhação, agora, é o pressuposto de que pode
estar mentindo.
Sabemos do que estamos falando. Uma herança do velho negro
fujão do século XIX, que tinha de provar que era um homem livre para não
escravizado pelo sinhozinho que lhe deu voz de prisão quando o viu passar na
rua e não podia acreditar que tivesse sido alforriado. Ou das "prisões
para averiguações" de cidadãos negros, que a polícia coloca atrás das
grades porque não o sujeito não tinha conseguido arrumar emprego com carteira
assinada. Ou das execuções de madrugada, protegidas pelos macabros autos de resistência
que acobertam assassinatos.
O projeto, claro, também é um instrumento óbvio de
retrocesso político. As pesquisas sociológicas são unânimes em demonstrar que,
entre os brasileiros que mais se beneficiaram dos programas sociais iniciados
em 2003, ano em que Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Planalto, encontra-se
uma parcela significativa de afrodescentes. Isso aconteceu em grande parte em
função de programas deliberados e necessários de combate ao racismo, mas também
por uma razão até obvia. Ao focalizar as parcelas mais pobres da população, na
fronteira da exclusão e da miséria, os programas sociais chegaram,
naturalmente, aos brasileiros que sempre haviam sido esquecidos.
O movimento é este. Para enfraquecer a herança de Lula-Dilma
as vésperas do impeachment, transforma-se a população afrodescendente em bucha
de canhão. Típico. Não deixa de ser vergonhoso, concorda?
(Não por acaso, coube ao DEM do aliado Rodrigo Maia entrar
no Supremo Federal para questionar a política de cotas para universidades
públicas, confirmada pelos ministros num debate histórico pelo aspecto
progressista. Até pela jurisprudência firmada, as universidades ficaram de fora
do projeto do Ministério do Planejamento. Nada impede, contudo, que também
possam ser questionadas no futuro).
Via - Blog do Miro
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