As investigações sobre os desaparecidos na Guerrilha do
Araguaia se intensificaram nas últimas semanas. Na sexta-feira (02), a Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos de Marabá (CEMDP) coletou
depoimentos de camponeses e soldados sobreviventes do movimento guerrilheiro
contra a ditadura, que teve mais de sessenta mortos executados entre 1973 e
1974.
“Primeiro nós estamos recolhendo toda a documentação, porque
já foram feitas muitas buscas, então não queremos continuar a fazer buscas sem
ouvir as pessoas”, afirmou a presidente da Comissão, procuradora Eugênia
Gonzaga.
Por Lilian Campelo
Audiência pública na Câmara Municipal de Marabá colheu
depoimentos de pessoas que sobreviveram a Guerrilha
Do Brasil de Fato
Na última sexta-feira (2), a Comissão Especial sobre Mortos
e Desaparecidos Políticos (CEMDP) de Marabá, cidade a sudeste do Pará, realizou
a primeira audiência pública para coletar depoimentos de camponeses e soldados
sobreviventes da Guerrilha do Araguaia.
O objetivo da reunião, que aconteceu na Câmara Municipal, é
fazer um mapeamento dos acontecimentos para que novas buscas pelos
desaparecidos políticos sejam feitas.
A guerrilha rural ocorreu na região amazônica ao longo do
rio Araguaia, que banha os estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará.
Eugênia Gonzaga, presidenta da comissão destaca que “a comissão está se
inteirando, coletando depoimentos das pessoas”.
“Primeiro nós estamos recolhendo toda a documentação, porque
já foram feitas muitas buscas, então não queremos continuar a fazer buscas sem
ouvir as pessoas”, explica Gonzaga. Ao longo das décadas de 80 e 90, diversas
buscas foram realizadas para encontrar possíveis ossadas.
Depoimentos
O primeiro a relatar e indicar possíveis locais para as
novas buscas foi o senhor Pedro Matos, 77 anos. Ele é morador do município de
São Domingos do Araguaia, que fica a 55km de Marabá e 4km da rodovia
Transamazônica. A região foi um dos palcos da luta armada entre os militantes
do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) contra o regime militar, sufocada entre
1972 e 1974 pelo Exército.
“Na época que estávamos lá na Bacaba, foi que aconteceu esse
caso lá do poço, eu nem me aproximei lá, mas um companheiro que estava preso
foi lá. Contou que havia mal cheiro e depois viu alguém quebrando garrafas de
cervejas para tirar o mau cheiro. Então tudo faz crer que o Exército, na época,
não tinha interesse que os curiosos se aproximassem daquilo lá” relembra Matos.
A Fazenda Bacaba fica localizada às margens da rodovia
Transamazônica em São Domingos do Araguaia. Ele relembra que era lá a base
militar do Exército e disse, inclusive, que o escritório Mendes Junior, de
propriedade da empresa responsável pela construção da rodovia Transamazônica,
chegou a ser utilizado pelos militares.
Matos conta que sofreu violências psicológicas e passeia
pelas lembranças como se ainda estivesse fazendo o mesmo percurso de quando foi
detido pelos militares. Antes de ser levado para a Fazenda Bacaba ficou preso
por três dias na Casa Azul em Marabá, também conhecido como Departamento
Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), destino de muitos guerrilheiros e
camponeses que sofriam sessões de tortura. Atualmente o local abriga a sede do
Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).
“Nós saímos daqui de Marabá quando a gente esteve preso no
DNER [aponta para local que é próximo da Câmara Municipal], lá do outro lado,
na delegacia velha que está abandonada, quando nos levaram daqui para a Bacaba
(…). Ali naquela casa, está do mesmo jeitinho, eu estive lá, agora pouco, até o
portão está com a mesma pintura, depois de toda a pancadaria que aconteceu,
tortura. Eles me ouviram e depois me mandaram para o meu quarto, eu e mais um
companheiro. Me largaram lá, fiquei três dias, mas toda noite eles torturavam
gente”, conta.
Outro personagem que narra a história da guerrilha do
Araguaia é Raimundo Melo, 52 anos, na época soldado no quartel 52 Bis, em
Marabá. Ele conta que fez a guarda da guerrilheira Lia, cujo nome é Telma
Regina Correia.
“Dia 7 de setembro 1974 eu tirei serviço vigiando a Lia, ela
chegou na base mais ou menos de 15h para 16h, encapuzada com o saco de estopa
na cabeça. Foi interrogada até 22h horas pelos oficiais do Major Curió
[Sebastião Rodrigues de Moura, responsável pela repressão da guerrilha] e
depois desse horário nós ficamos tirando guarda dela até de manhã. No dia 8 de
setembro quando ela foi novamente interrogada, uma questão de 20 minutos, nós
escoltamos ela até o aeroporto, ali nós encontramos o capitão Cabral, que era o
piloto do helicóptero. Ele fez um voo com ela que ia para Brasília, esse voo
demorou mais ou menos 20 minutos e após esses 20 minutos eles retornaram a base
de Xambioá. Só que nesse voo que eles falavam que ia a Brasília ela foi jogada
lá de cima no pedral do rio Araguaia, lá em Xambioá”, relembra o ex-soldado.
Torturas
Melo aponta, durante a audiência, locais onde possivelmente
estariam sepultados os corpos dos militantes do PCdoB. Ele diz ter informações
sobre dois corpos concretados no terreno onde hoje funciona o Incra em Marabá,
uma sepultura na aldeia indígena Suruí do Pará. Os indígenas também foram
vítimas da Ditadura Militar na Amazônia.
Sob coação, muitos deles foram obrigados a trabalhar como
guias para os militares para encontrar os militantes políticos e por fim, cavar
sepulturas clandestinas na Casa Azul e no quartel 52 Bis. Após falar todos os
locais, Melo mergulha em si e com um olhar vago narra as torturas que sofreu.
“Me referindo também as torturas, eu mesmo fui colocado no
pau do capitão, que é o pau de arara, e nesse pau do capitão eu perdi meus
testículos. A própria AGU (Advocacia-Geral da União), que fala no meu processo,
diz que eu não comprovei, nem os militares comprovam as sequelas. Como eles vão
comprovar uma sequela se eles não fizeram nada de perícia em mim? E eu estou
agora aqui sofrendo, já fiz operação na minha vista, em cada olho eu tenho três
lentes de gel porque eu não estava enxergando mais nada, sofro de esquecimento
geralmente. Tenho problemas no ouvido que dói, tem dia que dói demais o meu
ouvido, parece que está escorrendo uma água, e sem contar os pesadelos que eu
tenho, das cabeças cortadas que eu carreguei dentro de saco do aeroporto para
dentro da base para ser sepultado. Eu sinto que aquele sangue está correndo
pela minhas costas. Então são coisas assim que não tem como tirar isso de mim
mais. Esses pesadelos, os gritos que eu dou de noite, até vizinho já acordou
comigo gritando a noite. Naquela época era só tortura, tortura e tortura, tanto
para o camponês quanto para os próprios militares [soldados]”.
Avanços
A região do confronto da Guerrilha do Araguaia marcou a
população local e a audiência pública reforçou a importância da continuidade do
trabalho para expor a verdade sobre o que foi a Guerrilha, como explica Paulo
Fonteles Filho, membro da Comissão Estadual da Verdade no Pará.
“Eu penso que a audiência de mortos e desaparecidos
políticos levanta questões muito importantes que foram discutidas aqui.
Primeiro a retomada dos trabalhos de localização dos heróis do povo brasileiro.
Acho que isso é uma tarefa fundamental e que é preciso ser dado continuidade.
Nos últimos anos, a partir de 2009, houve uma elevação desse trabalho, do ponto
de vista do país, e não é à toa que 21 ossadas foram localizadas, faltando
apenas o processo de identificação desse material humano”.
Fonteles é filho de Hecilda Veiga e Paulo Fonteles, ambos
militantes da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), que foram perseguidos e
presos políticos durante o regime militar. Outros pontos importantes levantados
por Fonteles Filho durante a audiência são as novas informações reveladas pelos
ex-soldados que atuaram na ocasião da Guerrilha do Araguaia e cita como exemplo
o cemitério Jardim da Saudade de Marabá, apontado como outro possível local de
sepultamento das ossadas de presos e mortos políticos
Outro local suspeito de abrigar os desaparecidos é a Casa
Azul, mencionada por Pedro Matos. É o “maior centro clandestino de aniquilação
e assassinato de camponeses do regime militar sediado aqui em Marabá. Quem diz
isso é o próprio relatório da Comissão Nacional da Verdade”.
Ele ainda destaca que a ação da Ditadura Militar no
enfrentamento da Guerrilha contribuiu com a pistolagem na região. Fonteles
reconhece que a prática sempre existiu, mesmo antes da guerrilha, mas foi a
presença dos militares que “transformou o crime de pistolagem em prática de
estado” e aponta o Major Curió como responsável.
“Grande parte dos ex-soldados, nós ouvimos esses relatos
aqui, diz respeito a isso, uma parte desses ex-soldados foram viver como
pistoleiros, então a Ditadura Militar na Amazônia incentivou, digamos que foi,
a sementeira desse processo mais contemporâneo de pistolagem na Amazônia
paraense, disso eu não tenho dúvidas e que as relações são muito profundas”,
analisa Fonteles Filho.
Busca pela verdade
Diante da história ainda sem um ponto final, a Guerrilha do
Araguaia vai sendo narrada por aqueles que ainda estão vivos e foram
protagonistas desse enredo. Se terá um final, ainda não se sabe, pois dos
aproximadamente 70 desaparecidos políticos, apenas dois foram encontrados e
identificados: Maria Lúcia Petit e Bergson Gurjão Farias. Enquanto isso,
famílias buscam por respostas às suas perguntas: O que aconteceu com eles e
elas? Como foram mortos? Onde foram enterrados? Questionamentos que Diva
Santana, 71 anos, irmã de Dinaelza Santana Coqueiro e cunhada de Vandick
Coqueiro, ambos guerrilheiros, costuma se fazer.
“A minha luta se deve, enquanto cidadã, ao reconhecimento,
resgate e a verdade de todos que tombaram por liberdade e por democracia nesse
país. (…) meu pais já morreram e morreram muito desgostosos porque não sabiam,
não tinham conhecimento de como a sua filha foi morta e o local que foi
sepultada, mas eu espero saber ainda. Eu acho que é um dever da cidadania, um
dever do brasileiro de dizer o que fizeram com eles. Mataram? Executaram?
Enterraram onde? Nós temos o direito de ter as ossadas, isso tem uma ligação
cultural de você saber onde chorar seus mortos, onde reverenciar seus mortos”,
conta Diva.
Via - Jornal GGN
Nenhum comentário:
Postar um comentário