Em vésperas do Natal de 2016, o governo Temer, depois de
vários adiamentos, apresenta ao Congresso seu projeto de Reforma da Previdência
(PEC 286/2016), a afetar diretamente o Regime Geral de Previdência Social
(abrange cerca de 60 milhões de segurados ativos e cerca de 34 milhões de
benefícios pagos às famílias, com valor médio de 1,5 salário mínimo).
E parcialmente os regimes de Servidores Públicos da União,
estados e municípios (cerca de 6 milhões de segurados ativos, com leque de
benefícios variando do salário mínimo ao teto legal, atualmente pouco acima dos
34 mil reais).
Foram excetuados da reforma as Forças Armadas e as Polícias
Militares dos estados e respectivos Corpos de Bombeiros, pela justificação
previdenciária de que seus regimes de trabalho não são equiparáveis à
Previdência Social, principalmente pelo argumento da nivelação da idade única
de aposentadoria para todos, que é a proposta principal da PEC 286/2016. Do
mesmo argumento ora se valem as Polícias Civis, para também reivindicar
exclusão.
Mais além da Previdência Social e de parte dos servidores
públicos, o Projeto Temer inclui também o sistema de Assistência Social,
vinculado às aposentadorias por idade e por todas as formas de invalidez
(cegos, surdos, mudos, coxos, doentes mentais, dentre outros), condicionados à
extrema pobreza (até ¼ de renda per-capita familiar).
Tendo por propósito unificar os regimes previdenciários do
setor público no sentido de lhes impor uma idade única de aposentadoria – de 65
a 67 anos – e fazer no geral tábula rasa das diferentes situações sociais há
duas estratégias comunicativas, no sentido de justificar a Reforma Temer: a
primeira é a argumentação demográfica, utilizada fartamente na Exposição de
Motivos (EM) da PEC (13 páginas de EM), com fatos e deduções que de certa forma
se chocam com o segundo argumento.
O segundo argumento, de natureza fiscal, praticamente não
aparece na EM, relativamente à situação conjuntural, mas é o prato predileto
dos áulicos da “urgência e inevitabilidade”, quando não da ameaça de “é isto ou
o caos”, tantas vezes brandida no Congresso pelo Relator da PEC do Teto
Orçamentário, na Câmara Federal. Mas se abrirmos o pacote da Reforma, sob o
crivo da ética previdenciária, é possível que tenhamos que colocar o verbo ser
em outro lugar na expressão caótica.
À parte as justificativas sobre o que se pretende fazer com
a PEC, é importante destacar uma certa hierarquia factual das medidas
propostas, no sentido de desvendar quem e como são escolhidos os grupos sociais
para o sacrifício: idosos e inválidos em extrema pobreza, agricultores
familiares e Previdência Rural, mulheres, pensionistas de classe média baixa,
idosos e inválidos em geral e jovens trabalhadores.
Coincidentemente, no terceiro domingo do tempo litúrgico do
Advento, que neste ano de 2016 caiu no dia 10/12/2016, o Evangelho de Mateus
nos fala da boa nova que Jesus comunica a João Batista: “os cegos recuperam a
vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os
mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados”. A PEC 287/2016, em
contrapartida, comunica uma péssima notícia a todos esses grupos modernamente
definidos como idosos e inválidos em extrema pobreza (cerca de 4,2 milhões de
benefícios pagos em todo o Brasil). Eles são escolhidos para perder o piso do
salário mínimo como valor dos seus direitos assistenciais assegurados pela
Constituição Federal (Art. 203, inciso V) e também a idade de concessão, sempre
sob prova prévia de extrema pobreza, que fica elevada para 70 anos. E essa
massa de mais de quatro milhões de vítimas ficaria a depender do novo piso
assistencial, a ser fixado administrativamente pela autoridade de plantão do
Ministério da Fazenda, que com toda certeza viria abaixo do salário mínimo.
Com relação ao agricultor familiar inserido na Constituição
e mantido como tal por todas as reformas anteriores, sob a condição de segurado
especial, a quem se lhe solicita prova de trabalho no regime de economia
familiar e secundariamente contribuição financeira sobre o excedente
comercializado (quando houver), a PEC inverte a situação e passa a exigir
contribuição financeira regular. E na hipótese de isto não ocorrer, o segurado
especial ficaria fora do acesso aos benefícios. Imagine-se a situação do
agricultor familiar do semiárido nordestino às voltas com cinco anos de seca
contínua e que lá permanece!
À Previdência Rural são reservadas ainda várias restrições,
revertendo diferenciações que o Constituinte de 1988 criara: idade única de
aposentadoria, sem distinção de homem e mulher, rural ou urbano, de 65 anos, na
contramão das expectativas de vida regionais e dos direitos vigentes desde
1988; 25 anos de prova de trabalho, aí incluindo o tempo de contribuição depois
da PEC aprovada, contra a regra atual que é apenas de prova de trabalho por 15
anos. Acrescente-se que o critério atual já é tão oneroso em termos de
comprovação burocrática que a própria EM reconhece serem os benefícios rurais,
em cerca de 30%, concedidos por decisão judicial.
Às mulheres em geral e às mulheres rurais em particular são
reservadas as cargas mais pesadas de onerações, sob a argumentação algo cínica
da EM, de que estaríamos na era e sob a cultura da igualdade de gêneros. Faz-se
“tábula rasa” das diferentes jornadas reais de trabalho e remunerações e se
impõe a idade única de aposentadoria. Agrava-se ainda a situação feminina de
maior longevidade comprovada de duas formas; a) pela proibição de acumulação de
aposentadoria e pensão na hipótese do falecimento do cônjuge; b) pela redução a
50% do valor do benefício atual às novas pensões a serem concedidas depois da
PEC aprovada.
Observe-se que a esmagadora maioria dos pensionistas do
INSS, que coordena o RGPS, ganha salário mínimo, e na média essas pensões estão
na faixa de 1,5 a 2 salários mínimos, diferentemente do que ocorre nos regimes
de serviço público. Felizmente, não se mexeu nas pensões de salário mínimo. Mas
se mexeu em qualquer centavo acima deste.
Aos idosos e inválidos em geral se lhes oneraram com duas
cargas novas de sacrifício – os primeiros, como já se disse, com a idade única
de 65 anos de aposentadoria, indo até 67 quando houver determinada mudança
demográfica (mudança de expectativa média de sobrevida acima dos 60). Mas além
desse ônus, sub-repticiamente se introduziu outro, tanto para idosos, quanto
para inválidos – a redução significativa no valor das aposentadorias, visto que
se introduziria na Constituição uma regra de carência, que praticamente
exigiria 49 anos de contribuição para se ter direito a 100% do valor médio do
salário de contribuição. E isto vale para todos, mesmo para as pessoas com 50
anos ou mais (homens) e 45 anos ou mais (mulheres), que aparentemente entrariam
numa regra de transição razoável (trabalhar 50% a mais do tempo que falta para
aposentar);
Aos jovens trabalhadores de menos 50 anos, que já estão no
mercado de trabalho e aos que nele ainda vão ingressar, o cenário que se lhes
oferece no longo prazo é esse que está desenhado para os seus pais e avós
atuais.
Tudo isto nos tem sido vendido sob o manto nada sagrado do
sacrifício necessário, da urgência, da irreversibilidade do caos se não
atendidas às exigências de um novo deus da história (os mercados financeiros),
e de muita falácia para ludibriar ou nos fazer de tolos. E como em toda falácia
astuta, se lhe entremeiam alguns argumentos meio verdadeiros, sonegando-nos a
narrativa integral dos fatos, para nos impor interesses escusos da “pátria
financeira”. A esta é que na verdade se destina a montanha de rendimentos
extraídos dos vários grupos sacrificados. Se considerarmos essa transferência
injusta e indevida, a apropriação indébita de todos os réus confessos da Lava
Jato, em termos de valores e ardis envolvidos, faria aqueles réus parecerem
delinquentes “pés de chinelo”
Uma reforma da Previdência séria é necessária, para garantir
direitos básicos, ajustar-se equilibradamente às tendências demográficas de
longo prazo, corrigir alguns privilégios corporativos, provisionar o sistema de
recursos mediante taxação de setores classicamente desonerados e,
principalmente, cumprir o objetivo de universalização, trazendo para dentro do
sistema um pouco mais de 1/3 da força de trabalho que dele ainda não participa.
Mas a Reforma Temer nada disso cogita, porque pensa apenas na restrição de
direitos básicos, sob o pretexto de se ajustar às tendências demográficas.
Fonte: Correio da
Cidadania
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