Um amigo me escreveu, neste domingo de manhã, dizendo que
seu filho começou a perguntar sobre Deus – e não quis mais parar. Por que não
havia crucifixos pela casa, por que ele não ia à missa ou aos cultos como os
pais dos outros coleguinhas e, básico, se o pai acreditava que os meninos maus
iam para o inferno. Seria algo costumeiro na vida de uma família média
brasileira se não fosse pelo fato de que tanto ele quanto a mãe do pequeno
inquisidor não acreditarem em absolutamente nada – vida após a morte,
divindades, inteligência criadora do cosmos, o Palmeiras, nada.
“Foi um belo presente do Dia dos Pais'', ironizou com graça.
Para ajuda-lo, resgato uma história que publiquei aqui tá um
tempo: Estava sentado à mesa de um restaurante com a mãe, o pai e a irmã, menor
que ele, neste final de semana, em São Paulo. Do nada, virou para o pai,
disparando: “O senhor não acredita em Deus, né?'' Eu, que observava na mesa ao
lado, achei graça na pergunta. Não foi uma cobrança, mas um simples
questionamento, daqueles grandes e sinceros.
Daí, na época, resolvi perguntar a sábias amigas e mães
(algumas religiosas, outras não) como é possível explicar que não se acredita
ha existência de Deus em uma sociedade como a nossa.
Afinal de contas, por mais que não haja provas materiais,
atestar a existência do divino é fácil, está no automático. Ou seja, se você
não fizer nada, alguém fará por você. E, talvez, trazendo junto um tipo de fé
distorcida, cheia de medo e culpa, que contribuirá com adultos violentos e
intolerantes – diferente daquilo que, certamente, uma pessoa com o mínimo de
bom senso esperaria para seus filhos.
Vejam as respostas:
“Olha, tem uma definição que não é minha, mas achei tão
linda que acho que pode caber. Quem me disse foi o querido padre Júlio
Lancelotti. Sim, eu sei. Você me pede a não existência de Deus, e não o
contrário. Mas a historinha é mais ou menos assim, me diz se serve: Certa vez,
no meio de uma rebelião, um menino da antiga Febem, perguntou ao padre Júlio se
Deus existia. Porque para ele, afinal, Deus era um engodo. Com menos de oito
anos, o menino havia sido vítima de toda a sorte de violência, só conhecia dor e
sofrimento nesta vida. Onde estava Deus para este menino? Então o padre Júlio
respondeu mais ou menos assim:
“Esqueça aquele velhinho barbudo que vive
sentado no céu. Ele não existe. O que existe, querido, é o amor que sentimos
por alguém nesta vida. Você gosta de alguém, assim, muito, muito? Pode ser
qualquer pessoa. Ou um cachorrinho, quem sabe. Gosta? Então você sabe o que é
Deus. O resto é bobagem''. O menino respondeu que a única pessoa que ele
gostava era ele, o padre Júlio…''
“Quando meu filho me perguntou se tinha mesmo um papai do
céu que tinha criado o mundo, eu falei que a vovó acreditava que sim, por isso
ela ia na igreja conversar com ele. Mas que eu não tinha tanta certeza quanto a
vovó. Falei também que se a gente faz as coisas direitinho, coisas boas
acontecem com a gente também. Ele tinha 5 anos e isso foi o suficiente.''
***
“Lá em casa acho q isso vai ser uma questão porque meu
marido se diz ateu e é cético mesmo. Mas eu acredito nas energias, nas
vibrações, na força da mente humana… Digo que deus é o ser humano, o amor, o
respeito, enfim… Ainda vamos ter esta conversa mas não batizamos, nem vamos
seguir nenhuma religião, claro, porque nisso temos acordo! E aí, acho que – de
novo – falando de bicão porque não vivi isso ainda, o lance é conversar e dizer
que cada um acredita em uma coisa mas nós não acreditamos. E, ainda, claro,
dizer que ele pode acreditar se quiser, quando puder conhecer melhor e elaborar
isso. Acho que o lance é, como em outras questões, passar para ele as
informações para quando tiver condição tomar a própria decisão.
O mesmo não vale para o time de futebol, claro.''
“Acho que é explicando a existência de muitos deuses para
essas crianças. Se as pessoas acreditam em um deus ou num panteão de deuses (e
estamos falando da maioria da população) como negar a existência de tais
deuses? Eles existem, estão aí. O importante é não permitir que o Estado
escolha um deus hegemônico que dite as regras. Ou um grupo ver-se no direito de
aniquilar cultos ou pessoas em função de suas crenças e hábitos religiosos. As
crianças compreendem e respeitam a pluralidade muito melhor que os adultos,
pois são capazes de fantasiar e acreditar na fantasia do outro tanto como na
sua, inventam mundos a cada instante. Pensando bem, a questão é como explicar a
não existência de um único Deus para os adultos, não para as crianças. E sobre
isso as religiões de matriz africana tem muito a ensinar.''
***
“A gente nunca falou sobre Deus com o nosso filho. Ele já
perguntou o que é religião: a gente disse que era uma coisa que as pessoas
usavam para ficar mais tranquilas quando ficavam com medo de morrer. Ele
perguntou se a gente tinha uma, a gente disse que não, mas que não era problema
ele ter, se um dia quisesse. Só ia ter de escolher mais velho, não agora. E
que, nem eu, nem o pai dele acreditamos em nada disso. Mas cada um escolhe seu
caminho.''
Outro dia minha filha me falou, diante de alguma cotidiana
dificuldade, 'mãe, tem que pedir para o papai do céu'. Gelei e perguntei quem
tinha falado isso para ela, eu ou o pai com certeza não diríamos – ou pelo
menos não daquele jeito, como se Deus fosse algum 'atendente'. Perguntei e ela
falou algo sobre a avó ou a tia de mais idade terem lhe contado sobre o 'papai
do céu. Ela tem três anos e pensei num discurso ecumênico mas logo abandonei,
achei difícil. Guardei o assunto para depois e creio que daqui um tempo vou sim
explicar que não se sabe da existência de Deus, que uns acreditam mas que
outros não e isso é normal. Pensei em falar da evolução, dos macacos. mas tenho
até medo de uma criança achar isso tão mais lógico do que toda a ideia de Deus
que passe a adotá-la sem nem ao menos conceber que é possível acreditar em
Deus. Sei lá, tô mais pronta para conversa das flores e abelhas. Eu acho que se
eu puder ao menos convencê-la de que é normal a discordância sobre o assunto,
algo sobre tolerância, já me sentiria aliviada. Se chegar ao ponto da pressão
total, e ela perguntar o que eu acho, vou dizer a verdade: que às vezes
acredito e outras não, mas que ela pode ter a própria opinião.''
***
Como terminou a história no restaurante? Os pais disseram a
ele com muita calma: “Tem pessoas que acreditam, outras que não acreditam. Mas
o importante, de verdade, é que a pessoa tenha um coração bom''.
Sei que as perguntas deles não vão terminar com essa resposta,
pelo contrário, vão apenas começar. Mas foi um bom começo. É quase uma
declaração de princípios, de que a diferença é normal – coisa que falta em
muitos lugares hoje em dia.
Via - Blog do Sakamoto
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