Os habitantes de Fortaleza e do Ceará, nos anos 1930, tinham
ainda na memória os acontecimentos de mais de 50 anos antes, na terrível seca
de 1877 a 1879. Na época, a capital da então província viu de uma hora para a
outra a população passar de pouco mais de 20 mil pessoas para 130 mil. No
século 20, outra seca de graves consequências fez a elite tremer diante do que
poderia acontecer a si na seca. A ideia "brilhante" foi segregar os
flagelados em campos de concentração.
Luiza Pereira, dona Lô, uma das últimas sobreviventes do campo de concentração de Senador Pompeu, em 2011. Ao fundo, as ruínas de uma instalação. |
Os retirantes, acossados por fome e sede, não tinham outra saída a não ser rumar para o litoral ou para a beira de rios perenes. No caso dos cearenses, a migração se dava no rumo de Fortaleza ou de Crato, no sul, por causa da Chapada do Araripe, um oásis no semiárido nordestino.
Os "homens de bem" fortalezenses não queriam por
perto aquela gente faminta, doente e que cometeria qualquer despautério por um
copo de água ou um naco de pão. Fortaleza vivia um bom momento econômico. A
cidade era relativamente limpa, arborizada. Sua elite vivia em padrões bastante
confortáveis, mesmo comparados aos da capital da República, o Rio de Janeiro.
A resposta do governo da província ao número cada vez maior
de migrantes que chegava à capital foi confiná-los em "instalações"
cercadas por mourões e arames farpado, à moda de gado, próximos à linha do
trem. Uma placa acima da entrada indicava o campo de concentração. É importante
lembrar que apenas um ano depois, em 1933, os fascistas inaugurariam seu
primeiro campo de concentração, na longínqua Alemanha, para alojar neles seus
inimigos, principalmente os comunistas.
Menos de um mês depois de abertos, os campos construídos em
seis cidades do Ceará contavam com mais de 70 mil pessoas. Muitas eram levadas
a trabalhar de graça para a administração municipal ou governamental. A maioria
ficava ao relento, à própria sorte. Os campos ficavam em Cariús, Crato,
Fortaleza, Ipu, Senador Pompeu e Quixeramobim. Dezessete anos antes, durante a
seca de 1915, Fortaleza já havia sediado num lugar chamado Alagadiço um ensaio
do que viria a ser esses campos de concentração. Cerca de 8 mil pessoas foram
amontoadas ali, em uma área de 500 metros quadrados.
Nestas cidades há inúmeras histórias de como os flagelados
sofreram nestes campos. Morriam mais rápido que moscas, não só por causa da
desnutrição ou da sede, mas das doenças às quais ficavam expostos. Valas comuns
foram cavadas para sepultar os mortos. Por todo o Ceará surgiu a lenda, ainda
hoje vívida, do papa-figo, um monstro que rouba o fígado do transeunte
descuidado que viaja à noite pelos caminhos de terra. Há também o desprezado feijão
do cabo, que é o feijão duro, que não serve para alimento, apelidado assim por
causa da rudez dos guardas que vigiavam um dos campos, onde um feijão rochoso
era servido aos flagelados.
A lenda do papa-figo surgiu na cidade de Senador Pompeu,
onde um médico legista era obrigado a retirar amostras de fígado dos flagelados
que faleciam no campo local, para enviar a Fortaleza para análise clínica.
Ainda resiste ali as ruínas do campo de concentração. Essa lenda é comum em
várias partes do estado, inclusive no sul, em Juazeiro do Norte, que teve na
vizinha Crato um grande campo de concentração.
A cidade não guardou muitas memórias do seu campo, apenas
relatos dos mais velhos. Segundo os historiadores, Crato recebeu 20 mil
flagelados em um campo projetado para apenas 5 mil. Hoje no seu lugar há uma
fábrica de papel, que produz um cheiro ruim e peculiar.
Engana-se quem pensa que os campos recebiam os flagelados à
revelia. Eles foram levados para lá com falsas promessas. De acordo com a
professora Kênia Sousa Rios, do Departamento de História da Universidade
Federal do Ceará (UFC),"os sertanejos eram atraídos por promessas de
trabalho, alojamento, alimentação e serviço de saúde". A multidão que
aparecia era concentrada em espaços precários. As pessoas tinham suas cabeças
rasgadas, suas vestes eram apenas sacos velhos de farinha com três buracos,
para passar a cabeça e os braços.
Os homens relativamente sãos eram obrigados a trabalhar com
marcenaria e construção de tijolos, as mulheres na fabricação de sabão e as
crianças, que não tinham escola, podiam trabalhar e aprender artes e ofícios.
Faltavam comida, água e remédios. Soldados armados detinham aqueles que
tentavam fugir. Os campos mantinham locais para punir e encarcerar os rebeldes.
"Atestados de óbito mostram que no campo de Ipu a fome e doenças como
cólera chegavam a matar oito pessoas por dia", destaca a historiadora.
Registros oficiais contabilizam mais de 60 mil cearenses
mortos nesses campos. Estudiosos creem que morriam mais pessoas em função deles
que da seca.
Em 1933, quando as chuvas voltaram a cair, os campos foram
desativados e os sobreviventes deveriam ser encaminhados de volta aos locais de
origem. Nem todos, porém, retornaram. Em Fortaleza, a maioria ficou e deu
início a uma das maiores favelas, a Moura Brasil, em Pirambu. "A violência
desses campos reflete os primeiros anos da República, a crueldade com os pobres
e com os negros", diz Kênia Rios, autora do livro Campos de Concentração
no Ceará – Isolamento e Poder na Seca de 1932.
Via - Portal Vermelho
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