'Se for é capaz de vencer; se vencer será impossível
impedi-lo de assumir; se assumir pode fazer outro grande governo'
No Carta Maior
Não vai ter golpe. A receita do impeachment secou no forno
tucano. A crise mundial escancarou a fraude que atribuía ao PT o desmanche do
Brasil. Dilma afrouxou a camisa de força do arrocho com dano inferior ao imaginado.
Pode e deve ir além, na frente econômica e política. A reativação do CDES
mostrou que é possível arrastar uma parte expressiva do PIB para fora do golpe.
Não é o único broto da frente política necessária à superação da encruzilhada
do desenvolvimento, mas é um passo na retomada da iniciativa para além da
defensiva e da prostração.
O que sobrou ao golpismo, então?
Sobrou a última carta na mesa: decidir 2018 em 2016.
Significa matar, picar, salgar, espalhar partes do carisma e
da credibilidade de Lula pelas ruas, praças, vilas, periferias, vizinhanças e
campos de todo o país.
‘Esse homem não pode ser candidato; se for é capaz de
vencer; se vencer será impossível impedi-lo de assumir; se assumir pode fazer
outro grande governo.’
Essa é a versão de hoje para o que dizia Lacerda em junho de
1950, quando tentava igualmente abortar a candidatura de Vargas à presidência
da República: ‘Esse homem não pode ser candidato; se candidato não pode ser
eleito; se eleito não deve tomar posse; se tomar posse não deve governar’.
A caçada a Lula ganhou a velocidade vertiginosa da urgência
conservadora que manda às favas o pudor e as aparências.
É preciso capturar essa presa antes que ela retome o fôlego
e o fôlego tome as ruas.
Vale tudo.
Não é força de expressão.
É o nome da pauta interativa que conectou as redações a um
pedaço do judiciário.
De onde virá a pá de cal?
Do pesqueiro que ele frequenta? Da canoa de alumínio de R$ 4
mil reais? Do apartamento que, afinal, não comprou? De um delator desesperado?
De alguém coagido pela República do Paraná, disposto a qualquer coisa para
proteger familiares retidos e ameaçados?
Eles não vão parar.
A Lava Jato escuda-se em razão meritória para agir como
braço partidário. O golpismo os incentiva, a mídia sanciona e se lambuza.
Só a rua.
Desfrutáveis rapazes e moças denominados ‘jornalistas
investigativos’ inscrevem-se nas mais diferentes façanhas para antecipar o
desfecho, antes que alguma resistência aborte o cronograma.
A piada venezuelana sobre a escassez de pasta de dente,
divulgada como noticia pelo UOL, mostra a tensão reinante entre rigor e furor.
A mesma sofreguidão fez a ênfase do delator Paulo Roberto
Costa em inocentar Marcelo Odebrecht transformar-se em sutil incriminação do
empresário na degravação para Moro.
‘Isso não vem ao caso’ – diria FHC.
Nenhum caso vem ao caso quando associa tucanos a eventos em
que o interesse público se subordina ao apetite privado.
Procuradores procuram –produzem?-- febrilmente a pauta da
semana, auxiliados por redações interativas.
A narrativa geral é adaptada ao sotaque de cada público.
Desde a mais crua, tipo JN, às colunas especializadas em conspirar com afetação
pretensamente macroeconômica ou jurídica.
A mensagem vibra a contagem regressiva em direção a
‘ele’.
‘Ele’ é o troféu mais cobiçado, a cabeça a ser pendurada no
espaço central da parede onde já figuram outras peças preciosas, embalsamadas
pela taxidermia conservadora.
A sentença de morte política foi lavrada em 2005/06, quando
se concluiu que pela via eleitoral Lula seria imbatível diante das opções
disponíveis.
A partir de então seu entorno e depois o seu próprio pescoço
seriam espremidos num garrote que range as derradeiras voltas do parafuso vil.
O assalto final será indolor à matilha?
Eis a pergunta política de resposta mais cobiçada nos dias
que correm.
Depende muito do discernimento das lideranças nascidas dessa
costela, e até mesmo –ou quem sabe, principalmente- de algumas referenciadas a marcos históricos
que vão além dela.
São hoje as mais mobilizadas.
Amanhã serão as primeiras atingidas, se a ‘macrização’ do
Brasil for bem sucedida.
Acuado como está e limitado pelo erro histórico de um ciclo
que promoveu a mobilidade social sem correspondente organização política, Lula
é refém da avaliação que o conjunto da esquerda fizer de sua importância para o
futuro da democracia social no país.
É tão ou mais refém disso do que do sentenciamento conservador.
Neste já foi condenado.
Mas a rua pode salvá-lo.
‘Ah, mas Lula foi ultrapassado pelo avanço da luta popular?’
É um paradoxo: se avançamos tanto, como é que eles estão em
sulforosa ofensiva por ar, terra e mar?
‘Culpa do PT.’
Na Venezuela também? Na Argentina, na Europa...?
Há uma recidiva da crise mundial, cuja extensão e
profundidade o PT subestimou.
O mundo vai murchar com a desalavancagem global de múltiplas
bolhas perfuradas agora pela freada chinesa.
Estamos a bordo de um acirramento da disputa pelo bolo mais
magro urbis et orbi.
Nada isenta o PT e o governo dos equívocos sabidos, que o
tornaram mais vulneráveis nesse momento.
O embate, porém, vai muito além do que imagina o bisturi que
resume a equação histórica a lancetar o espaço do PT na trincheira
progressista.
Em Portugal, uma esquerda que conseguiu maioria parlamentar,
acaba de perder no primeiro turno presidencial para a direita.
A esquerda portuguesa resolveu ir para as urnas dividida.
Cada qual inebriada de sua autossuficiência para enfrentar a desordem mundial
do capitalismo.
Como pretendemos caminhar para 2018?
A pergunta vale para o governo, para o PT e para as forças
que legitimamente se evocam à esquerda do PT.
O ciclo iniciado em 2003 tirou algumas dezenas de milhões de
brasileiros da pobreza; deu mobilidade a outros tantos milhões na pirâmide de
renda.
Foi inconcluso porque atribuiu às gôndolas do supermercado a
tarefa de promover o salto de consciência que mudaria a correlação de força no
país.
A inclusão foi tão expressiva, porém, que sob a cortina de
fogo impiedosa do monopólio midiático, há quase uma década, acuado, ferido,
enxovalhado noite e dia, sem espaço de resposta, Lula ainda figura como o nome
que parte com 25% dos votos nas sondagens da nova corrida presidencial.
Aécio e Marina, teoricamente o suplantariam numa quase certa
aliança no segundo turno.
Mas a direita sabe que não é bem assim.
Com acesso diário à tevê que hoje lhe é sonegada, ao rádio e
ao debate num cenário econômico que dificilmente será tão ruim quanto o atual,
as alardeadas dianteiras dos seus principais adversários podem derreter junto
com o ‘crime’ de frequentar um pesqueiro em Atibaia, com a canoa de preço
equivalente ao de uma carretilha das disponíveis nos iates de alguns de seus
críticos, e com o ‘tríplex’ que, afinal, não lhe pertence.
Por isso é preciso liquidar a fatura agora, na janela de
oportunidade entre o vácuo orgânico da militância e a incerteza relativa a
2018.
Em 1954, quando a direita já escalava as grades do Catete e
os jornais conservadores escalpelavam a reputação de quem quer que rodeasse
Vargas, a sua morte política era
comemorada por parte da esquerda.
O varguismo era acusado de ser um corredor aberto ao
imperialismo, um manipulador das massas.
Vargas não era um bolchevique.
Tampouco detinha a representação de São Francisco de Assis
na terra.
Era um estancieiro.
Não fez a reforma agrária. Nunca viveu agruras, não liderou
greves, não leu Marx –perseguiu marxistas no seu primeiro governo.
Ao mesmo tempo, criou o salário mínimo, as leis
trabalhistas, peitou o imperialismo...
Vargas foi o que são líderes nacionais populares de cada
tempo concreto: seres contraditórios de carne e osso, exatamente por isso
magnéticos na personificação de um projeto de desenvolvimento em que o vórtice
selvagem do capital passa a ser domado pelas rédeas dos interesses sociais
organizados.
Vem de Varoufakis, o ex-ministro da Fazenda da Grécia, a
preciosa síntese do que está em jogo num mundo que é o avesso disso, capturado
pela desregulação dos mercados: ‘Não deixar nenhuma zona livre de
democracia’.
Até onde a sociedade pode ir por esse caminho? Até onde a
correlação de forças permitir a democratização de todas as instâncias de poder
na sociedade.
Lula tem seu espaço nesse enredo.
Em abril de 1953 uma parte da esquerda brasileira
considerava que Vargas não tinha mais.
Simultaneamente uma ciranda de ataques descomprometidos de
qualquer outra lógica que não a derrubada de um projeto de desenvolvimento
soberano sacudia o entorno do governo que criara a Petrobras, o BNDES e uma
política de fortalecimento do mercado interno com forte incremento do salário
mínimo.
O clima pesado das acusações e ofensas pessoais atingia
Getúlio e sua família de forma virulenta.
Lutero, irmão do Presidente, era seviciado por manchetes garrafais que o tratavam como
‘bastardo’ e "ladrão".
A imagem veiculada do ministro do Trabalho, João Goulart,
era a de um cafajeste, um "personagem de boate".
Lembra algo?
A dramaticidade do suicídio político mais devastador da
história iluminaria o discernimento popular gerando revolta diante do ódio golpista
que tirou a vida de Vargas.
Porta-vozes da oposição a Getúlio foram escorraçados nas
ruas do Rio; uma multidão consternada e enfurecida cercou e depredou a rádio
Globo que saiu do ar; veículos da família Marinho foram caçados, tombados,
queimados nas ruas da cidade. Para Carlos Lacerda não sobrou um centímetro de
chão firme: o "Corvo" foi recolhido a bordo do cruzador Barroso,
distante da costa.
A esquerda que dispensava a Vargas o tratamento dado a um
cachorro morto, teve que reinventar a sua agenda com a bicicleta andando.
Quase sessenta e dois anos depois do tiro que sacudiu o
país, a pressão atual do cerco conservador permite aquilatar a virulência
daquele período.
O Brasil está de novo sob o tropel da mesma cavalaria.
Com os mesmos cascos escoiceando a nação e reputações.
O mesmo arsenal para alvos e objetivos correlatos.
No julgamento do chamado 'mensalão', o sociólogo Marcos
Coimbra, presidente do Instituto de Pesquisas Vox Populi, mensurou um pedaço da artilharia conservadora
voltada contra o discernimento da sociedade.
Em apenas quatro semanas até 13 de agosto de 2012, 65 mil
textos foram publicados na imprensa atacando o PT, Lula e o seu governo.
"No Jornal Nacional, para cada 10 segundos de cobertura
neutra houve cerca de 1,5 segundos negativos.
Nas rádios, conectadas pela propriedade cruzada aos mesmos
núcleos emissores, a pregação incessante era e ainda é mais abusada.
A mesma elasticidade ética reveste a ação da mídia
determinada a calafetar cada poro do país
com uma gosma de nojo e prostração.
Persiste, enfim, o cerco ao Catete.
A qualquer Catete dentro do qual políticas públicas tenham
buscado pavimentar mais um trecho da estrada inconclusa que leva à construção
de uma democracia social na AL.
Desta vez não haverá tiro para alertar a esquerda
brasileira.
Mas caberá a ela escrever a carta testamento para explicar o
Brasil deixado aos que vierem depois de nós.
A ver.
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