Desde 2004, o DEM, partido agora responsável pela
demarcação, trava uma batalha contra os quilombos.
Em imagem de novembro de 2015, Dona Tacira Julião Alves,
remanescente quilombola, mostra sua roça na Ilha de Marambaia (RJ)
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Por *Maíra Kubík Mano
A sensação que tenho nesses dias é que o teto está desabando
sobre nossas cabeças. As perdas e retrocessos, que já vinham se delineando no
horizonte há algum tempo, adquiriram uma velocidade assustadora.
A reforma ministerial de Michel Temer, que excluiu mulheres
e negros e negras, enterrou a Cultura e deixou a Ciência e a Tecnologia para
serem engolidas pelas Comunicações, fez dos quilombolas um dos grupos mais
atingidos.
Pela catastrófica Medida Provisória 276/2016, a atribuição
das demarcações de terras quilombolas saiu do Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra) e passou ao novo MEC, o Ministério da Educação e
Cultura.
“Se os governos Lula e Dilma apresentaram déficits de
desempenho na efetivação desses direitos, agora temos a restauração da
inviabilidade operacional desta política, lançada no limbo de uma estrutura
inexistente e sob discurso de enxugamento da máquina pública”, afirma Pedro
Teixeira Diamantino, professor de Direito Ambiental da Universidade Estadual de
Feira de Santana (UEFS) e membro da Associação de Advogados de Trabalhadores
Rurais no Estado da Bahia (AATR).
No texto abaixo, Diamantino esmiúça a trajetória da política
de demarcação de terras quilombolas no Brasil e nos abre os olhos sobre o
panorama dramático que viveremos. Precisamos, citando aqui Davi Yanomami,
pensar em como vamos suspender esse céu que caiu sobre nós.
Numa canetada, o recuo de 15 anos na política de terras
quilombolas
Por Pedro Teixeira Diamantino
Passados cem anos da abolição da escravatura, os quilombos
voltaram a figurar na cena normativa e política do País com a Constituição de
1988.
O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias diz que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que
estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes títulos respectivos”.
Se antes de 1888 a noção de quilombo referia-se à conduta
desviante da ordem jurídica escravista oficial, definida pelo rei de Portugal
em consulta realizada pelo Conselho Ultramarino, em 1740, a partir da Lei Áurea
a palavra parecia não fazer sentido para os donos do poder. E os quilombos
desapareceram do sistema normativo brasileiro.
As mobilizações da redemocratização furaram o cerco do
projeto de Constituição de “notáveis” e reintroduziram a categoria quilombo na
cena jurídica atual, liberando-a da condição de referência para atuação dos
aparatos repressivos do escravismo para instituir novos direitos e sujeitos.
O protagonismo dos quilombos na esfera pública em transição
democrática veio ao encontro da ruptura teórica com os lugares comuns da
historiografia positivista, do folclore, do mito da democracia racial, do
autoritarismo das elites, do sentido comum teórico dos juristas.
O termo quilombo foi, portanto, sendo desamarrado daquele
passado interditado, sem pontes para o presente, para projetar experiências e
reivindicações emancipatórias atualizadas, instituindo um genuíno direito
fundamental de reparação pela opressão histórica vivenciada por estes grupos,
ontem e hoje. Desta maneira, os quilombos deslocaram-se do lugar de resíduo
sociopolítico e jurídico para ocupar lugar de destaque na questão agrária e
racial brasileira nos últimos anos.
O principal instrumento normativo que regulamenta os
procedimentos administrativos para o reconhecimento dos direitos
constitucionais das comunidades quilombolas é o Decreto 4887/2003, fruto de
amplos debates ocorridos no início do governo Lula.
Pelo decreto, as comunidades quilombolas são “grupos
étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica
sofrida” (art. 2º).
Esta perspectiva conceitual, sintonizada com a Convenção 169
da OIT, traduz as reivindicações e demandas das comunidades por efetivação de
direitos, estimadas em cinco mil, segundo a Coordenação Nacional de Articulação
das Comunidades Quilombolas.
O Decreto 4887/2003 revogou o anterior, nº 3912 de 2001, da
era Fernando Henrique Cardoso, e institucionalizou a superação da perspectiva
redutora que inviabilizava o desenvolvimento de políticas capazes de dar
efetividade ao art. 68 do ADCT/88, acolhendo os novos conceitos e retirando do
Ministério da Cultura a competência para identificação, demarcação, delimitação
e titulação das terras.
Tal competência foi atribuída ao Incra, órgão federal
executor da política agrária, dado que o Ministério da Cultura jamais teve
estrutura operacional e tampouco cultura institucional para o trato com
questões fundiárias, sejam elas agrárias ou urbanas.
O atual decreto apresenta sérios defeitos, como o excesso de
procedimentos e morosidade, mas também o de expressar uma política normativa
vulnerável, já que todo o escopo das medidas para a implementação de direitos,
sem lei em sentido estrito que lhe ampare, fica à mercê da vontade
governamental: decretos presidenciais vem e se vão com os governos.
Com o afastamento temporário de Dilma do exercício da
Presidência da República, o governo interino editou a Medida Provisória nº 726
para reorganização dos ministérios. Entre as mudanças, salta aos olhos a
extinção o Ministério do Desenvolvimento Agrário e sua fusão com a pasta de
Desenvolvimento Social, sinalizando para o aprofundamento do sucateamento do
Incra.
Outra mudança foi a fusão das pastas da Educação e da
Cultura, causando preocupação com possível dispersão da área de cultura na
estrutura de educação.
Quanto aos quilombolas, aos dois arranjos referidos, soma-se
a alteração contida no artigo 27, IV, j, da MP nº 726, que torna compete o
Ministério da Educação e Cultura para realizar “a delimitação das terras dos
remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como determinação de suas
demarcações, que serão homologadas mediante decreto”, retirando do Incra, a
autarquia responsável pela execução da política agrária, esta atribuição que
lhe é própria.
Numa canetada, o recuo de 15 anos na política de terras
quilombolas. Retorna-se ao superado patamar da política quilombola de FHC, que
impunha ao Ministério da Cultura atribuições que lhe eram totalmente estranhas,
tais como a realização de intervenções de natureza fundiária.
Se os governos Lula e Dilma apresentaram déficits de
desempenho na efetivação desses direitos, agora temos a restauração da
inviabilidade operacional desta política, lançada no limbo de uma estrutura
inexistente e sob discurso de enxugamento da máquina pública.
Além de caminhar em sentido oposto à propalada eficiência
administrativa, a medida conduz à revisão do Decreto 4887/2003, ainda que seja
para adaptá-lo à reestruturação dos ministérios. Por isto é bom destacar que o
novo ministro da Educação e Cultura, Mendonça Filho, pertence ao Partido
Democratas (DEM). Ele será o responsável por conduzir, com sua súcia, a revisão
do Decreto 4887/2003.
É lembrar que desde 2004 o DEM trava uma batalha judicial no
Supremo Tribunal Federal para golpear o Decreto 4887/2003. Na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3239, o partido questiona a constitucionalidade da
definição contemporânea de quilombos e de territorialidade partindo de uma mentalidade
proprietária do século XIX.
Almejam que os efeitos dos direitos constitucionais
quilombolas de 1988 alcancem somente as comunidades que comprovem
cientificamente a sua existência em data anterior à data da abolição legal da
escravatura, desconsiderando a espoliação histórica das identidades
subalternizadas.
Noutra tacada, defendem que as terras a serem tituladas pelo
Poder Público sejam, apenas, aquelas possuídas na data de promulgação da
Constituição atual, desconsiderando-se a espoliação física ao longo dos anos.
Dito isto, o que podemos esperar da política quilombola sob
a batuta de Michel Temer e Mendonça Filho? Este arranjo político-institucional
da alardeada ponte para o futuro está mais para uma pinguela de volta ao
passado, um indisfarçável golpe contra milhares de comunidades negras
quilombolas do Brasil.
*Maíra Kubík Mano - É doutora em Ciências Sociais pela
Unicamp e professora do departamento de Gênero e Feminismo da Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Pesquisa a participação e representação política das
mulheres
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