Em abril chega ao Brasil o terceiro volume da obra O Capital
de Marx, intitulada Os Despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de
madeira. A obra integra a programação editorial de 2017 da Boitempo que,
segundo a editora, “já começa com pé o esquerdo”.
Os Despossuídos documenta a resposta intelectual de Marx a
uma das primeiras experiências políticas decisivas de sua trajetória. Nas
palavras dele, o conflito econômico e legal na situação da coleta de madeira
realizada pelos pobres da província do Reno forneceu a ocasião, “pela primeira
vez, de tratar de questões materiais”. Imbuído da noção de que o primeiro roubo
se dá com a primeira apropriação privada, Marx, à época um jovem de 24 anos,
recém-doutorado em filosofia na Universidade de Jena, começa a articular aqui
de forma embrionária expressões como ‘valor’ e ‘mais-valor’, assim como o
problema da transformação da natureza, da vida e do trabalho em mercadorias.
A obra vem acrescida de um longo prefácio de autoria de
Daniel Bensaid que contextualiza os artigos de Marx historicamente e no
interior da obra marxiana como um todo, além de atualizar as questões
apresentadas nos textos traçando um paralelo forte com os impasses políticos do
presente diante das privatizações e da globalização capitalista nos dias de
hoje. Trata-se do 21º título da coleção Marx Engels, da Boitempo, que desde
1995 traz, em traduções diretas do idioma original, os trabalhos mais
importantes dos filósofos alemães. Traduzido por Nélio Schneider, o texto de
Karl Marx tem como base a edição de 1982 da MEGA-2. A tradução dos textos em
francês, de Daniel Bensaïd, ficou a cargo de Mariana Echalar. A ilustração de
capa é de Gilberto Maringoni.
Confira, abaixo, o texto de orelha escrito por Ricardo
Prestes Pazello
A relação entre Marx e o direito é das mais controversas, no
entanto é biograficamente constitutiva do pensamento do revolucionário alemão.
Em Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira, de 1842,
Marx se encontra pela primeira vez, como ele mesmo diz, com os “interesses
materiais”. Apesar de sua crítica à economia política ainda não ter sido
construída, já aparecem, de forma embrionária, expressões como “valor” e
“mais-valor”, assim como o problema da mercadorização da natureza, da vida e do
trabalho.
Como se pode ver, a crítica à economia política nasce com a
crítica ao direito e suas expressões – no caso, legais – e, mesmo não sendo a
primeira vez que Marx escreve sobre o assunto, até porque foi estudante de
direito, a série de textos que o leitor de língua portuguesa tem agora à
disposição ganha importância à parte, por se tratar de debate jurídico atinente
à questão da propriedade fundiária da terra.
Os artigos, que custaram a livre circulação da Gazeta
Renana, da qual Marx foi redator, tematizam problemática tão importante quanto
efêmera diante da avassaladora sanha do capital, qual seja, a do direito
consuetudinário dos pobres, que no fundo era um não direito. Neles, Marx mostra
como tal concepção se contrapunha às legislações do autointeresse e à
jurisdição patrimonial da sociedade, que davam vida e direitos às madeiras
para, assim, proteger os interesses de seus proprietários. Surge daí um verdadeiro
direito do interesse pessoal, que abala de morte as possibilidades
emancipatórias do direito, do Estado e da razão modernos.
Ao contrário, portanto, do que se costuma repetir, Marx aqui
não é um mero racionalista, estatista e jusnaturalista, pois suas posturas, ao
mesmo tempo que partem da razão, do Estado e do direito natural burgueses,
também os ironizam; por outro lado, aqui ele esboçou um descolamento entre um
uso estratégico e um uso tático do direito (consuetudinário dos pobres),
lançando mão nitidamente de critérios sociais para sua reflexão, assumindo o
lado dos pobres, daquela que ele chama ambiguamente de classe elementar (básica
e mais baixa, de uma só vez). Logo, não se trata de um jusnaturalismo sem mais.
No atual estágio do capitalismo, em que os métodos de
acumulação originária do capital se repristinam, ler o texto de Marx sobre o
furto de madeira – acompanhado, aliás, do fundamental estudo de Daniel Bensaïd
que atualiza o debate sobre os despossuídos – é renovar a reflexão sobre a
necessidade de se insurgir contra a sociedade capitalista e suas instituições,
tais como o Estado e o direito.
Do Portal Vermelho, com Boitempo
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