Subtese: “Voyerar” presos é o mesmo que fazer selfie em
velório.
O colunista Mauricio Lima (revista Veja) conta — notícia não
desmentida — que os atores Bruce Gomlevsky e Flávia Alessandra, que representam
os delegados Marcio e Erika no filme sobre a "lava jato", foram a
Curitiba para filmar nas dependências da Polícia Federal. Feitas as tomadas — o
local fora fechado para isso — o grupo da filmagem teve a “jenial” ideia de
olhar alguns presos da "lava jato". Foram levados pelos carcereiros a
visitar as celas de Eduardo Cunha, Palocci etc., mas a maior atração querida
pelos atores e membros da equipe de filmagem era Marcelo Odebrecht. Este,
segundo a matéria, escondeu-se para não ser visto (ou filmado). Depois de
alguns minutos, a atriz, à socapa e à sorrelfa (socapa e sorrelfa são por minha
conta) conseguiu ver o troféu.
Incrível. Quer dizer, crível, porque em Pindorama tudo é
possível. Os franceses faziam isso com nossos índios, certo? Os carcereiros da
Polícia Federal, violando a privacidade dos presos, permitiram que os membros
da equipe de filmagem vissem os “enjaulados”? Qual é o limite da humilhação?
Vale tudo pela fama? Vale tudo para “mergulhar” no personagem?
No Rio de Janeiro, rasparam a cabeça de Eike Batista.
Explicação da juíza: só raspamos as cabeças de presos homens porque as mulheres
são mais asseadas (está escrito em uma decisão proposta pela Defensoria). E o
que dizer dos episódios de Cabral e Garotinho?
E o que dizer, também, do tratamento dado aos presos “comuns”,
não famosos? Humilhação cotidiana nas masmorras medievais (a expressão é do
ex-presidente do Supremo Tribunal Federal). Vida nua, diz Agambem.
Simbolicamente o “papel” desempenhado pela atriz representa o olhar da
sociedade sobre os presos. A sociedade observa como experimento. Um zoo
(des)humano. Um misto de exotismo e vingança. E as conduções coercitivas?
Cultura do espetáculo.
O que está acontecendo com o país? Autoridades cada vez mais
truculentas e autoritárias. Em um estado da federação, desembargador mandou
prender um policial que perturbara seu filho (o filho do desembargador). No Rio
de Janeiro, agente que, cumprindo seu dever, exigiu documentos de magistrado,
foi condenada por dizer que “juiz não é Deus”, em resposta a uma atitude
própria daquilo que Faoro tão bem chamou de “sociedade estamental”. Em São
Paulo, advogado foi algemado por “entrar no elevador errado” no Tribunal
Regional do Trabalho. No Rio de Janeiro, juíza concede mandado de busca e
apreensão coletivo em favela.
Todos os dias advogados e partes testemunham coisas
tipo-estamentais. Já escrevi aqui que advogar virou exercício de humilhação
cotidiana. No plano do imaginário social, tudo isso está interligado. No fundo,
“os carcereiros” de Curitiba se sentem “proprietários” dos presos. Assim como
os atores da Globo pensam que podem fazer voyeurismo dos detentos. Uns pensam
que podem exibi-los; outros, que podem “espiá-los” (vejam a ambiguidade do
“espiar”). Como se estivessem à venda. Como no século XIX, Flávia Alessandra
queria examinar os dentes do preso, para ver se podia comprá-lo e, quem sabe,
chicoteá-lo. Afinal, “somos” os outros — olhamos de fora. Não somos parte
disso. Eis o paradoxo: pior é que somos...
Consciente ou inconscientemente, é disso que se trata.
Construímos esse imaginário, no interior do qual “cada um tem de saber o seu
lugar”, porque alguns “eleitos” determinam as condições de ocupação desse
lócus. Não é de admirar que continuamos com elevadores privativos, elevadores
sociais e de serviço, estacionamentos privativíssimos, verbas especiais para
tudo que é tipo de cargos. Como um dia disse a filósofa contemporânea Carolina
Ferraz, justificando a separação entre elevadores sociais e de serviço, “as
coisas estão muito misturadas, confusas, na sociedade moderna; algumas coisas,
da tradição, devem ser preservadas”. Bingo. E que tradição, não? Ou o que disse
a “promoter” Daniela Diniz: cada um deve ter o seu espaço; não é uma questão de
discriminação, mas de respeito”. Como se aprende coisas com essa gente, não? É
quase como olhar a GloboNews, com os filósofos Birnbaum, Kabina, Ontaime and
Wolff. Nota: Promoter, até pela pronúncia (diz-se “promôôuuter), deve ser algo
chique. Fazem festas para a burguesia cheirosa de Pindorama, que só usa
perfumes oxítonos.
Sigo. A propósito, conto um episódio que ouvi no Rio de
Janeiro há mais de 20 anos. Uma senhora, negra, fora impedida, pelo síndico, de
usar o elevador social do prédio, porque empregada doméstica. Seu patrão entrou
em juízo contra isso. E foi vencedor. A empregada ganhou uma espécie de “salvo
conduto” para usar o elevador social. Dia seguinte à vitória, a senhora, com
uma sacola das Casas da Banha a tiracolo, “embarcou” no elevador de serviço, ao
que foi inquirida pelo seu patrão acerca do fato. Afinal, ganhara “permissão”
para usar o elevador social. Ela respondeu: “— Doutor, eu sei o meu lugar”.
Pronto. No fundo, é isso que as elites brasileiras, forjadas no
patrimonialismo, conseguiram fazer. Na primeira metade do século XVI, Ettienne
de La Bottie já escrevia o seu Discurso sobre a servidão voluntária. Ali ele já
tentava explicar, antes da própria modernidade e dos direitos e garantias de
igualdade que só surgiram séculos depois, as razões do “eu sei o meu lugar”.
Por isso não surpreende que tanta gente, aqui mesmo na
ConJur, tenha dado razão ao juiz que disse que o advogado deveria prestar
concurso para juiz, como se a profissão de advogado fosse inferior à profissão
de magistrado (consciente ou inconscientemente, é isso que está por trás do
discurso). Não surpreende que tanta gente tenha justificado a ação dos guardas
que algemaram o advogado no TRT-2. Não surpreende que, atualmente, parcela
considerável dos advogados consiga entrar no fórum mesmo quando as portas estão
trancadas: sem espinha dorsal, passam por debaixo da porta. Mas, no fundo, não
os culpo. Seu imaginário foi forjado desse modo. Sabem “o seu lugar”.
Não surpreende, portanto, a atitude da atriz global e dos
carcereiros da polícia. Não que os carcereiros (não sei se tinha delegado na
comitiva) e a própria atriz sejam elites no sentido estrito ou até que tenham
consciência do que fizeram. Ocorre que, no plano do imaginário, é exatamente a
incorporação desse corpus de representações que faz com que pensemos “como se
fossemos”. Não esqueçamos que, com a ideologia, as coisas se invertem: por
vezes quem tem mais medo da reforma agrária é quem só tem terra debaixo da
unha, se me entendem a crítica à alienação (que é quando “alieno-a-minha-ação”;
por isso, uma pessoa alienada “ali-é-nada”, com a permissão de minha LEER) e
pedindo perdão pelo estagiário não levantar placa alguma.
E, afinal, não esqueçamos também que todos moram(os) em
Pindorama. Que, como disse Millôr, tem como futuro um imenso passado pela
frente.
Via - Carcará
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