Formalmente, o Brasil é visto como um país de paz religiosa. Este consenso ideológico, no entanto, é desafiado quando observamos religiões sendo, cotidianamente, discriminadas por adeptos de outros grupos religiosos e excluídas das políticas públicas do Estado. Neste contexto, religiões de ancestralidades africanas são os mais freqüentes alvos, indicando que a intolerância religiosa é, sim, uma questão a enfrentar grandes desafios na sociedade brasileira.
Para analista, falta ao Estado admitir, oficialmente, dialogar e estabelecer relações formais com religiões de ancestralidade africana |
País mestiço de partida, o Brasil abriga religiões cujas
fronteiras se tocam e avançam umas sobre as outras, num notório sincretismo
entre doutrinas, tradições e ritos. Neste caldo cultural e religioso, diversos
conflitos de poder se instalam, cujos principais agentes ativos de ataques e
enfrentamentos são religiosos de referências neopentecostais, aderindo a
práticas de exorcismo e tipificações do mal como demoníacas.
Para discutir o assunto, a Adital entrevistou, com
exclusividade, o psicólogo Rafael Oliveira Soares, doutor em Ciências Sociais
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisador das populações
afro-brasileiras. Ele é também diretor-executivo da Koinonia, entidade
ecumênica que presta serviços aos movimentos sociais e é composta por pessoas
de diferentes tradições religiosas.
O cientista social destaca que é um movimento comum no
convívio entre culturas as migrações de pessoas entre grupos, religiosos ou
não, gerando novas visões e expressões de sua fé. Porém, práticas religiosas
fundamentalistas imporiam, pelo medo ou pela lógica de resultados, que há
migrações incompatíveis, negando a cultura. Isto deságua, primordialmente, em
religiões nascidas da mescla com elementos da África. De acordo com Rafael, aos
embates de contexto religioso, associam-se o racismo e o preconceito, que
figurariam como "instrumentos sociais de segregação de toda a sorte,
especialmente da contínua redução das religiosidades dos negros e de suas
herdeiras em ações do mal, 'negras' na magia, nas intenções e na fé”.
Nesse cenário, o Estado reconhece, de fato, a diversidade
religiosa do país, mas não de direito. Uma discrepância no respeito às
religiões prossegue em espaços e instituições que, ao contrário, deveriam zelar
pela pluralidade de religiões e garantir sua proteção por meio de políticas
públicas de diversos aspectos. Para Rafael, o Estado não admite, oficialmente,
dialogar e estabelecer relações formais com religiões de ancestralidade
africana.
O Brasil é composto por uma grande diversidade de expressões
religiosas, que são todas partes da nossa cultura. Podemos dizer que essa
pluralidade é reconhecida pela população?
Há diversas abordagens para essa questão. Em geral, pessoas
da população, se perguntadas sobre a aceitação de todas as religiões, tendem a
responder positivamente, haja vista o consenso ideológico de que somos um país
de paz religiosa. Mas a realidade diverge disso. Em geral, esse mito de paz se
reproduz como verdade, quando vemos promoções de eventos inter-religiosos.
Ninguém gosta, diria eu, jocosamente, de sair mal na foto, nem mesmo os
fundamentalistas mais arraigados. Mas esse é outro capítulo.
No entanto, a questão muda completamente de figura quando se
pensa a convivência da diversidade a partir dos conflitos existentes no Brasil.
Notoriamente, entram em cena em diversos conflitos, como agentes ativos, os
religiosos de matriz neopentecostal — e digo assim porque, depois de mais de 30
anos, quase 40, de neopentecostalismo no Brasil, este já ganhou ares de uma
matriz religiosa repetida em muitas vertentes eclesiais, tradicionais
protestantes e evangélicas ou não.
A nosso ver, o neopentecostalismo começa como uma reforma
dentro dos adeptos da Umbanda e não dentro do mundo evangélico. Que assim,
ligeiramente, poderíamos explicar como uma religiosidade que, e a partir de um
certo ponto, decidiu aderir ao exorcismo e à tipificação de toda aparência do
mal como demoníaca — para isso, as fontes bíblicas e da cultura evangélicas
estavam à mão para este fim. Reforma dentro da Umbanda, nesse sentido de que a
Umbanda aceita que manifestações do mal podem ser acolhidas, tratadas, curadas
e encaminhadas para uma vida melhor.
E um neopentecostal, acreditando nas mesmas coisas que um
umbandista, rejeita a busca do equilíbrio entre o bem e o mal e cria sua versão
de caricatura de demônios e eleva o exorcismo ao status de focal do seu
fundamentalismo. Não é por acaso, então, que a negação das religiões de matriz
afro-brasileira passe a ser a generalização e a própria identificação do mal
por parte dos neopentecostais — saindo de um momento inicial da demonização de
alguns seres encantados (orixás, inquices, voduncis, caboclos, entidades,
conforme a tradição ou a nação) para a identificação de todas as manifestações
de matriz africana como seres do mal.
Mutação esta esperada de um processo fundamentalista que se
expande, mas também consequência de um crescimento das igrejas no mercado de
fiéis, prioritariamente devotos que admitem, em sua visão de mundo, que o
universo está habitado por encantados, os devotos de uma religiosidade de
matriz africana principalmente ou simplesmente um brasileiro comum, formado em
uma cultura que admite a existência de todas essas manifestações religiosas.
Essas reflexões colocam em perspectiva o que é cultural e o
que não é.
Os instrumentos acessados pelos neopentecostais para a
dinâmica do conflito estão presentes no mundo evangélico, mas não só. Estão
presentes na cultura e não foram inventados pelos evangélicos. Trata-se de uma
herança colonial, derivada da dominação de Estado feita pelo catolicismo. As
formas de dominação latino-ibéricas, ao contrário das colonizações anglo-saxãs,
não negaram nem os deuses nem a religiosidade dos colonizados, a lógica sempre
foi da apresentação de um deus maior e vitorioso sobre todas as religiosidades
e entidadesque habitam a colônia. Enfim: nada de novo em relação ao modo de
guerra que estabelecem os neopentecostais.
Por último, e mais importante, na mesma cultura nasceu e
sobrevive o racismo e o preconceito, instrumentos sociais de segregação de toda
a sorte, especialmente da contínua redução das religiosidades dos negros e de
suas herdeiras em ações do mal, "negras” na magia, nas intenções e na fé.
O sincretismo religioso do nosso país também desafia as
fronteiras entre as religiões. De que maneira isso se expressa na convivência
entre os grupos religiosos?
Há dois tipos de sincretismo. Aquele que a convivência entre
as pessoas produz, como forma de compartilhar crenças, e aquele que se expressa
nas relações de poder. O Brasil está mais eivado do segundo tipo, herdeiro de
jogos de poder. Mas há uma tradição não planejada, de fazer o sincretismo
refletido — ainda que a força tenha sido sua origem. Exemplo de sincretismo
refletido é a própria constituição do Candomblé. Trata-se de uma religião de
fontes africanas reinventadas aqui, na convivência com indígenas e com uma
diversidade de africanos de diferentes nações, incorporando, inclusive, alguns
elementos dos africanos muçulmanos trazidos para cá.
Outro exemplo é a tradução das características de santos
católicos para as de entidades africanas — ressalto o tema das qualidades de
cada um, pois isso é mais do que simplesmente ocultar a entidade africana e
seus fundamentos em um santo do pau oco qualquer, para evitar a repressão, o
santo católico foi escolhido, de forma refletida, para representar por
similaridade o panteão africano.
Sobre fronteiras e o sincretismo que se produz sem
conflitos, é bom lembrar que é necessária uma ampla aceitação da cultura
brasileira, o que não é o caso dos missionários evangélicos que vieram para o
Brasil. Sua tradição é a de negar a cultura, converter e não conviver, "a
la colônias anglo-saxãs”. Isto é o que nos faz dizer que o neopentecostalismo
não é herdeiro dessa tradição evangélica, porque ele não nega a cultura, apenas
elenca aspectos que devem ser demonizados.
Já a Umbanda nasce de anos de sincretismo entre origens
afros, religiosidades indígenas, kardecistas e outras a depender, com a vocação
de ser a religião brasileira, conformada nos anos de 1930, no calor do
nacionalismo vigente à época.
Nesses contextos, é natural que haja migrações de pessoas
entre grupos que compartilham a mesma visão de mundo e isso ocorre muito,
inclusive, entre expressões afro-brasileiras e ibérico-católicas, de certo modo
isolando os evangélicos que ainda insistem em negar a cultura — o que não é o
caso dos neopentecostais. O fundamentalismo não é barreira para a busca de
migrações, mas impõe, pelo medo ou pela lógica de resultados, que há migrações
incompatíveis e, é claro, falamos das religiões de matriz africana.
E pelo Estado? A diversidade religiosa é reconhecida de fato
e de direito?
O Estado reconhece de fato, mas não de direito. Há uma
discrepância original oriunda do século 19, pelo menos, que deixou para a Igreja
Católica (Icat) ares ou o status de religião oficial. Além disso, uma
naturalização do Cristianismo como religião nacional e oficial em todos os
espaços de função pública do Estado. Mas o pior está na falta de reconhecimento
do mesmo direito para todas as religiões. Apenas para dar um exemplo, a
imunidade fiscal, em geral, é aplicada à Icat, com alguns casos evangélicos
oriundos de lobbies políticos, e uma grande ausência de tal reconhecimento para
outras religiões — na maioria dos municípios, cobra-se Imposto Territorial
Urbano de casas de religiões de matriz africana, o que não ocorre para a Icat e
outros cristãos.
Há hierarquias/favorecimento/discriminação no trato com cada
religião? Como isso se dá?
Além do já exposto acima, há os empecilhos ao atendimento
religioso em hospitais, a falta de proteção a rituais funerários, também com
impedimentos em cemitérios, fora o fato de que o Estado não admite,
oficialmente, dialogar e estabelecer relações formais com religiões de matriz
africana, exigindo que se constituam em associações civis.
O que pode ser considerado "intolerância religiosa”?
Desrespeito à liberdade de expressão, proibições de uso de
vestimentas rituais em público, agressões físicas a pessoas e a monumentos
religiosos, além do uso indevido de símbolos de outra religião com o fim de
desmerecer, condenar ou mesmo demonizar a mesma.
Que diferenças há entre a intolerância religiosa no âmbito
ideológico e no âmbito político?
No âmbito ideológico, estão a conformações do universo de
compreensão do outro sobre o divino, sobre o sagrado, como em si erradas e
passíveis de condenação, segundo os critérios de outras religiões. Em nível
político, as questões se colocam basicamente no aspecto da igualdade de
direitos, reconhecida e protegida pelo Estado (vide questão anterior), nos três
poderes — fato raro no Brasil, haja vista, por exemplo, as bancadas no
Congresso Nacional.
Há práticas de perseguição religiosa hoje no Brasil? Como ela
pode se manifestar na contemporaneidade?
Infelizmente, já iniciamos esta entrevista apontando para o
olhar sobre os conflitos, como necessário. Assim sendo, as diferentes formas de
estruturas de conflito têm em foco, principalmente, os neopentecostais como
autores. Avançando fortemente contra as religiões de matriz africana e também
aumentando os casos de agressão a católicos e suas igrejas locais.
Não se pode imaginar que o foco da perseguição ou agressão
seja diretamente ordenado pelos pastores em suas pregações, mas as
consequências são quase que inevitáveis. Um pastor não manda que se quebrem os
templos e os símbolos de outrem, mas a reiterada identificação dos outros como
demônios leva a que membros mais exaltados tomem em suas próprias mãos a extirpação
da fonte dos demônios.
Some-se a esse quadro outro, de caráter mais geral, quando
se assimila exemplos relacionados com direitos sexuais, que acabam por gerar
violência dupla, por intolerância religiosa e por, por exemplo, homofobia. O
estado contemporâneo das religiosidades passa por essa fronteira crítica, dos
fundamentalismos, que negam o outro. Se não buscarmos formas de superá-lo,
podemos chegar à barbárie religiosa ou a um câncer social sem volta.
Quais tipos de religião mais sofrem de intolerância e
perseguição no Brasil?
As religiões de matriz africana são as que mais sofrem
perseguição e intolerância, com os casos recentes aumentados de agressões
contra muçulmanos em janeiro (motivados pela questão do assassinato de
profissionais da revista Charlie Hebdo, em Paris) e imagens e templos da Igreja
Católica. Se tomarmos mais o ponto de vista ideológico, aí devemos ampliar para
judeus, Fé’Bah’aí e Hare Krishna, todos estigmatizados pela história, com
destaque para os judeus.
Ainda há falta de informação/preconceito entre a população
sobre as inúmeras religiões que estão presentes no país? Esse desconhecimento
sobre as variadas religiões seria uma questão ideológica?
Há pouca formação e não produção de informação. Digo que, no
plano educacional, tanto informal-popular como no âmbito formal-escolar, temos
uma grande lacuna. Há problemas ideológicos, sim, mas de caráter de
representação a fé de cada, deixadas à mercê da maioria ideológica que se impõe
à minoria. Nesse sentido, a intervenção do Estado no plano educacional é
fundamental, focando-se nos ditames da Constituição e garantindo o pleno
exercício e visibilidade das minorias numéricas. Infelizmente, a Constituição
não foi respeitada nos Estados do Rio de Janeiro e Bahia, que adotaram o ensino
confessional nas escolas.
Como avalia a atuação do Estado brasileiro hoje com relação
à intolerância religiosa?
Muito lento e burocratizado. Há melhoras com o Disque 100,
da Secretaria Nacional de Direitos humanos, e há o caso ímpar do Estatuto da
Igualdade Racial e contra a Intolerância Religiosa na Bahia. O Estado deveria
configurar e desenvolver um Plano Nacional de Superação da Intolerância
Religiosa, envolvendo, além da educação, saúde, direitos humanos e os setores
fiscais e de formação de todos os quadros do Estado sobre o tema, no mínimo, em
todos os níveis federal, estadual e municipal.
Há políticas públicas no país que contribuam para avançar na
questão? Quais?
Muito pouco, como já citamos, e referências à Política
Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que atentam para as religiões de
matriz africana.
Quais são as lacunas dessas políticas?
A nosso ver, é o amplo despreparo dos quadros do Estado para
aplicá-las, além, é claro, da presença do preconceito nessas pessoas que, ainda
que saibam, não aderem ao respeito ao outro.
Por um longo período da história brasileira, as religiões e
práticas religiosas que contêm elementos africanos foram perseguidas e
criminalizadas no país — pelo Estado e por outros grupos religiosos. Como está
essa realidade hoje?
Comentamos esse tema acima, e acrescentamos aqui que há
casos de morte por agressão por intolerância no Brasil. Veja aqui.
Quais os avanços nessa questão? Que problemas ainda temos de
superar no respeito esses religiões em específico?
Não há muitos avanços se não considerarmos os movimentos
sociais de combate à intolerância, que vêm reproduzindo diferentes mobilizações
por direitos em níveis municipais e estaduais, com caminhadas, seminários,
participações em outras movimentações da sociedade civil. Esse movimento social
tem conseguido algumas conquistas. Por exemplo: no Rio Grande do Sul, com um
Conselho da Diversidade Religiosa, e no Estado do Rio de Janeiro, com uma
Política Estadual de Combate à Intolerância Religiosa já elaborada, aguardando
sanção governamental, e também as políticas setoriais na área de saúde no
Estado de São Paulo, com o GT [Grupo de Trabalho] Religiões.
Há uma diversidade de problemas a superar ainda, e já
citamos a formação e educação do Estado. Os mais críticos são de caráter
cultural, são muito graves, porque levaram séculos de elaboração, em um caldo
de preconceitos, dominação cristã e racismo. A superação desse quadro exige um
esforço de diálogos a longo prazo, convivências entre diferentes e ações para
fazer o Estado cumprir seu papel, nem que seja às expensas de atos do
Ministério Público.
Recentemente, um caso que chamou a atenção no Estado do
Ceará foi a formação de grupos de jovens em programa intitulado
"Gladiadores do Altar”. Eles marcham, batem continência e gritam estarem
"prontos para a batalha” durante culto na Igreja Universal do Reino de
Deus. O caso foi interpretado por alguns como a formação de "milícias”
pelo "fundamentalismo religioso”. Como lidar com isso?
A mobilização de religiosos e religiosas junto à sociedade
civil teve como acolhida, no Rio de Janeiro e na Bahia, uma ação do Ministério
Público para investigar e acompanhar esse movimento no interior da Igreja
Universal do Reino de Deus - Iurd. O receio das religiões de matriz africana
baseia-se nos diversos atos sofridos de agressões por neopentecostais, cuja
Igreja Universal do Reino de Deus é uma das maiores, senão a maior.
Fala-se de investigar, pelos mesmos motivos que
apresentamos, de que a oficialidade de uma igreja vai negar que tenha promovido
atos de violência e que tais possíveis atos seriam individuais ou de grupos não
autorizados. Mas as imagens dos tais guardiões e um futuro próximo de possíveis
agressões não podem ser descartados. Outrossim, é a primeira vez que o
belicismo de aparência fascista toma corpo em uma igreja, a Iurd, com forte
potencial para a guerra religiosa. Isso só facilitará a responsabilização da
instituição caso haja casos..
Moções e ações do Ministério Público não são suficientes,
mas devem ser buscadas, pois, afinal, as religiões de matriz africana não têm
sido contadas entre as maiorias religiosas, mas não se pode negar que são parte
da maioria que construiu nossa cultura brasileira.
Fonte: Rede Brasil Atual
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