As manifestações de intolerância que vão se fazendo corriqueiras, especialmente em São Paulo, fazem o prenúncio de um neofascismo aterrador. Onde estão as causas disso? Obviamente há uma grande causa: o horror que a imagem de Lula provoca em determinados segmentos da população. Demais genérica, e mesmo que verdadeira, a explicação não satisfaz. Vamos em busca de uma apreensão mais ampla do fenômeno?
Primeira situação favorável à radicalização: temos no Brasil
um quadro dividido entre dois partidos (e que, no correr do tempo, se
corromperam): o PT, nascido um partido “obreiro”, interessado em defender
salários melhores para os operários e condições dignas de vida, e que se tornou
um grêmio populista ao defender a integração social dos pobres e miseráveis; e
o PSDB, que surgiu como protesto à corrupção do velho PMDB, chegando ao poder e
tornando-se a representação do neoliberalismo que trazia a ‘globalização
modernizadora’ para o Brasil. A proposta do PT adequa-se à prática democrática
de eleições livres, enquanto a do PSDB é um convite à rejeição nas urnas.
Comprovada essa rejeição, o partido das elites encontrou, como filão a ser
explorado eleitoralmente, as acusações de corrupção desenfreada dos
adversários.
Certamente, o medo que inspira a figura do ‘Metalúrgico de 9
Dedos’, mais a corrupção apontada em vários momentos e lugares, elas duas
comovem as classes médias mais tradicionais, moralistas e medrosas, que se
fazem o bolsão eleitoral de homens como Geraldo Alckmin e Jose Serra. Mas não
são os que fizeram as arruaças de 2013, nem as passeatas de 15 de março, na
avenida Paulista. Gente extremamente conservadora. Não podem conceber um
operário chegando à Presidência. Não odeiam, mas não respeitam o Lula.
Acreditam que a Academia Brasileira de Letras representa algo muito grande.
Os exaltados, que agridem quem use a cor vermelha nas suas
roupas ou externe de alguma forma suas preferências pelo PT, são recrutados em
quantidade maior entre os que foram e estão submetidos ao processo de formação
de imbecis, promovido com afinco pela ditadura e no que se empenharam
ardentemente os meios de divulgação, onde a televisão pontifica como a mais
eficiente máquina de construção de idiotas. Pesquisa feita com os participantes
dos desfiles promovidos nas ruas de São Paulo comprovou a sua completa
ignorância, não só política, confundindo alhos e bugalhos, aceitando lorotas
toscas que se espalham pelos cantos, agrupando aterrorizados pela revista Veja,
junto a eles ficando exibicionistas, fantasiados, mocinhas nuas e todo o tipo
de débeis mentais.
Essa gente não odeia o Lula, que não conhecem, nãos sabem
quem é. Dedicam seu ódio mortal a uma lenda criada pela Globo, com o mesmo ódio
que um flamenguista dedica a um vascaíno. Não são politicamente deformados,
pois não chegam a ter consciência política mínima. É um típico fenômeno de
expressão de massas: irracional, que nos remete, não ao texto de algum
sociólogo, mas ao escrito por Freud sobre elas.
Menor, mais preocupante, capaz de voos mais extensos, não
contente com os passeios pelas ruas, aos gritos e xingamentos, há uma classe
média ascendente, a que aderiu aos encantos da corrupção. São executivos de
empresas privadas e gestores da coisa pública, empresários de pequenos negócios
e grandes negociatas, os que andam por fora da ordem legal, os que não pagam
impostos e nem salários dignos aos seus empregados; profissionais liberais que
prestam serviços sem recibo. Uma fauna variada, que vai do empreendedor que explora
o lenocínio de luxo em São Paulo, aos que agridem com palavras cínicas um
ex-ministro. Gente habituada a trabalhar com vários RGs, papéis falsos, gente
como os que fazem a máfia do Mercadão e da rua Florêncio de Abreu,
frequentadores dominicais do Clube Paulistano, onde a pureza branca somente
existe no uniforme das babás que servem às crianças e, eventualmente, também
aos pais. Um tipo de desonestidade que veio crescendo, inaugurou-se aos tempos
de Brasília, fortaleceu-se na ditadura e ganhou maioridade com os oito anos de
FHC. Esse é o segmento que não tem medo, que pode comprar – e compra – a
autoridade e que é fanfarrão. Essas figuras só desaparecerão na medida em que o
segmento social onde se instalaram seja reincorporado à ordem de uma sociedade ética.
E por isso mesmo, alimentam ódio mortal pelo PT, um ódio que nasceu junto com
as primeiras administrações petistas. De um gestor municipal ligado a Paulo
Salim ouvia-se a exclamação: “aquela vaca (Luiza Erundina) era 100% honesta”.
São os gentis moços e moças que dirigem automóveis cada vez maiores e mais
altos e que estacionam, em ato de autocrítica, nas vagas destinadas a
deficientes.
Esses são os que não aceitam a ascensão da classe operária e
a integração social dos milhões que viviam à margem da sociedade. O
“oportunismo” liga essa gente à típica burguesia nacional, aquela que concebe o
lucro exatamente como somente é possível através de pequenas, médias e grandes
espertezas, explorando seus funcionários, comprando e vendendo sem nota,
subornando e se deixando subornar.
A burguesia brasileira, passando muito rapidamente pelo
capitalismo industrial, logo tornou-se rentista, acomodada à entrega da
indústria aos enormes grupos multinacionais, negando-se ao risco e não tendo
conseguido transformar o patrimônio em capital. Ainda que por caminhos
diferentes, são grupos sociais formados por gente enamorada do próprio umbigo.
O “lulismo” é, para eles, o desafio da igualdade social, a defesa dos direitos
dos assalariados, como se “essa gente” pudesse ter direitos. Estão convencidos
de que o Brasil não exporta e não fica rico por causa de um fantasma, o “custo
brasil”, causado pelos salários que são obrigados a pagar, os “direitos
trabalhistas” excessivos, com férias, descanso semanal. 13°salário, Fundo de Garantia
e INSS.
Por isso mesmo não suportam a ideia de um Lula na
Presidência, da mesma forma que seus pais não suportaram Vargas, o inventor de
tudo isso. Lula surge, ele queira ou não, saiba ou não, como o herdeiro daquele
aventureiro vindo da fronteira, como Júlio de Mesquita Filho referia-se a
Getúlio Vargas.
São Paulo é, no momento, a sede das manifestações
neofascistas. O que se tem visto pelas ruas e logradouros de São Paulo é
coerente em tudo com o passado do Estado que, em 1932, levantou-se contra
Vargas numa luta armada da qual saiu derrotado. Os barões do café perderam
definitivamente as rédeas com as quais conduziram toda a Primeira República. E
se foram esses barões que geraram a economia do ciclo do café, construindo
ferrovias e abrindo bancos, também foram os que não souberam ser industriais,
deixando esse espaço aos imigrantes. Manteve-se uma empáfia, ostentada pela
aristocracia paulistana, avenida onde, mais tarde, erigiu-se a sede da FIESP,
espaço em que, simbolicamente, a aristocracia paulista sofreu a segunda
derrota, essa imposta por Lula, com as greves dos metalúrgicos lideradas por
ele. Os empresários, líderes da FIESP, não tolerando sentar-se à mesa de
negociações para discutir com “gente de macacão”, nascida para ouvir ordens,
assistiram à vitória de Lula e seus comandados.
Empresários e empresas que subsidiaram a ditadura não têm
capacidade para dialogar com operários, sempre entendidos como “os meus
empregados”, nem competência para aceitar democraticamente um governo petista.
Enfim, a burguesia paulista, depois de ter nascido e dominado a República
Velha, tendo perdido a hegemonia com o período Vargas, retomou-a durante a
ditadura, orientada a partir daquela FIESP erguida com luxo e riqueza na grande
avenida, consolidando-a durante os oito anos de FHC. Não podendo justificar sua
rejeição ao PT, externando seus interesses e vontades, essa burguesia e mais
seus satélites assumem passionalmente o ódio, emoção pura, a Lula.
O ódio que motiva alguns políticos, como Aécio Neves e mesmo
FHC, em parte decorre da incapacidade de aceitação de uma rejeição natural de
seus nomes pelo povo. Por certo, há a sede de poder, a vontade de exercê-lo em
proveito próprio, mas há o medo imenso. FHC e seu séquito temem – e muito – uma
continuidade de exercício do poder pelo Partido dos Trabalhadores. Até agora,
por força de algo que se assemelha a um pacto de sangue, Lula apenas se referiu
a uma herança maldita, sem explica-la. Se um dia fizer isso estará apontando
FHC à execração definitiva e definindo a extinção do PSDB, pondo ponto final a
carreiras indignas de muitos nomes políticos do primeiro escalão.
O medo também move um tipo de imprensa “marrom”,
desenvolvida durante a ditadura, e que domina os meios de informação no país,
contrariando a pequena legislação reguladora existente. A continuidade do PT no
Poder quase que inevitavelmente colocará ponto final a um monopólio
catastrófico, que teve exatamente a força suficiente para idiotizar gerações. A
imprensa e os políticos rejeitados são a grande corrente que luta para dar ao
povo ignorância e fanatismo, conduzindo-o ao neofascismo que lhe daria o poder
sem contestações.
*Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista
do Correio do Brasil
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