Considerada “a melhor cantora do milênio” pela BBC, descrita
como “uma mistura explosiva de Tina Turner e Celia Cruz” pela Time Out, e
conhecida no mundo todo como A Rainha do Samba. Nascida na favela da Moça
Bonita, passava a infância “rodando pião e brigando com os meninos”.
Casou pela primeira vez aos 12 anos, teve seu primeiro filho aos 13, ficou viúva aos 21, e se tornou sensação internacional aos 30. Elza Soares não é apenas um ícone como artista, é também um ícone como pessoa, e um exemplo de superação. A vida não deu trégua pra essa mulher: teve que ser forte pra lidar com inúmeras dificuldades, e ainda assim, nunca deixou de subir no palco com um belo sorriso no rosto e contagiar a plateia com a alegria do samba.
Nada é doce e suave quando se trata de Elza Soares. Desde
sua expressão dura, emoldurada por seu afro volumoso coroado com flores ou um
turbante, até sua voz metálica, suas feições felinas, seu sorriso largo e
rasgado, sobrancelhas desenhadas altas e arqueadas, e sua eloquência curta e
grossa, aquilo que Elza transmite mais que tudo é força.
Hoje, tem 60 anos de carreira musical. Seu samba alegrou e
inspirou três gerações, e continuará a alegrar e inspirar as próximas. Elza
Soares é um clássico, e não apenas um daqueles clássicos antigos, tipo aquela
galera que fez músicas geniais e se aposentam, ficando presas no passado. Ela é
um clássico que provou que enquanto estiver viva vai continuar se adaptando às
novas gerações e aos novos mundos, sempre dando um jeitinho de adaptar seu
talento.
Em Outubro, surpreendeu os fãs, já acostumados a ouvir sua
voz entre os batuques e aranhas do samba de raiz e da bossa tradicional, ao
lançar um álbum, sem muito estardalhaço ou promoção prévia. Sim, Dona Elza fez
a linha Beyoncé e surpreendeu os fãs com um álbum quando ninguém esperava, e
como se não bastasse: o primeiro álbum inteiramente composto de músicas
inéditas, depois de sua longa discografia recheada de interpretações de músicas
muito bem conhecidas pelo Brasil.
A princípio, é difícil de acreditar que uma senhora de 78 anos tenha lançado onze faixas tão contemporâneas, e tão relevantes em 2015. Os principais temas do “A Mulher do Fim do Mundo” é a violência contra a mulher, negritude, morte, e sexo.
A princípio, é difícil de acreditar que uma senhora de 78 anos tenha lançado onze faixas tão contemporâneas, e tão relevantes em 2015. Os principais temas do “A Mulher do Fim do Mundo” é a violência contra a mulher, negritude, morte, e sexo.
Abrindo o álbum, a belíssima faixa “Coração do Mar” é um
poema de Oswald de Andrade cantado acapella, um ode a uma terra imaginária,
“terra que ninguém conhece”. “É um navio humano / Quente e negreiro / Do
mangue”. Conforme a voz de Elza desaparece, surge um quarteto de cordas
anunciando a próxima faixa, e talvez a mais bela do álbum, que rendeu seu
título: “A Mulher do Fim do Mundo”. Em contraponto às cordas, aparece a
percussão típica do samba, acompanhada da voz ríspida de Elza: “Meu choro não é
nada além de Carnaval / É lágrima de samba na ponta dos pés”.
“Na chuva de confetes deixo a minha dor
Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida, dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou – e vou – até o fim cantar”
Eu fico arrepiada só de lembrar dessa música. É incrível
como o trabalho de Elza pode soar tão familiar, tão tradicional, tão samba, e
ainda assim, tão diferente e inovador. Sua voz nesse álbum, suja, pesada,
carrega seus 60 anos de carreira, bem como seus 78 anos de dor – desde sua
infância difícil até a recente morte de seu quinto filho. E ainda assim, Elza
se mostra mais empoderada do que nunca, o que fica bem claro na terceira faixa
do álbum: “Maria da Vila Matilde – Porque Se a da Penha é Brava, Imagine a da
Vila Matilde”, faixa que mistura um samba sujo com rock.
“Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180
Vou entregar teu nome e explicar meu endereço
Aqui você não entra mais, eu digo que não te conheço
…
Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”
Empoderamento de encher os olhos d’água, né? O melhor é o
deboche que permeia essa faixa – Elza diz que quando o servidor público chegar
ela oferece um cafezinho e mostra o roxo no seu braço, e que quando a mãe do
agressor ligar, ”Eu capricho no esculacho / Digo que é mimado, que é cheio de
dengo / Mal acostumado, tem nada no quengo”. Em entrevista, disse “Amor com
pancada não existe. Mulher só deve gritar quando for de prazer”. E como coisa
do destino, esse álbum foi lançado três semanas antes da prova do ENEM, cuja
redação era justamente sobre a violência contra a mulher. Não é à toa que eu
digo que a Elza é um clássico que continua relevante.
Seguem duas faixas agressivas e pós-apocalípticas: “Luz
Vermelha” e “Pra Fuder”. A primeira é a descrição de um Rio de Janeiro após o
fim do mundo, por onde Elza vaga, sobrevivente. A segunda é sobre uma
experiência sexual em que Elza se sente como uma espécie de entidade nativa do
fogo. Em entrevista para O Globo, Elza explica: “A mulher do fim do mundo é a
que vai ficar. O fim do mundo é a eternidade. Sou espírita, dentro do
espiritismo existe uma entidade que se chama Iansã. Ela é o fogo, a lava. Eu me
vejo como essa entidade maravilhosa se incendiando, mas viva, viva
eternamente”. Pra TV Carta, ainda completou: “Pra Fuder não é só sobre cama,
não. É a mulher que bota pra fuder de verdade”.
Já tá sem fôlego depois de tanto samba (literalmente)? Pois
segura esse tamborim aí que tem mais: a sexta faixa do CD é sobre “Benedita”,
uma travesti traficante.
“Ele que surge naquela esquina
É bem mais que uma menina
Benedita é sua alcunha
E da muda não tem testemunha
Ela leva o cartucho na teta
Ela abre a navalha na boca
Ela tem uma dupla caceta
A traveca é tera chefona”
Talvez a faixa mais agressiva do álbum, ela transparece a
realidade violenta da travesti no Brasil, e podemos sentir a adrenalina da
perseguição policial às que traficam ou se prostituem. Ao longo da música, fica
claro o porquê de Elza ter inserido essa faixa no álbum: ela se enxerga na
travesti – violentada, injustiçada, forte, persistente e guerreira, Benedita é
uma verdadeira “mulher do fim do mundo”, como a própria Elza. E Elza não
simplesmente largou essa faixa e saiu correndo: em entrevistas sobre o álbum,
quando questionada sobre a faixa, ela não deixa de falar sobre a situação da
comunidade trans no nosso país, revoltada com a violência que sofremos. Rainha
mesmo, né? Isso sim que é sororidade. Em entrevista à TV Carta, disse “A mulher
não tomou ainda o conhecimento que uma mulher ajuda a outra, que a gente
precisa ter mulheres do nosso lado. Precisamos de amigas.”
A faixa “Firmeza” é uma conversa descontraída entre jovens
amigos que “se trombaram” na rua, provando o quão contemporânea Dona Elza
realmente pode ser, simulando naturalmente um diálogo cheio de “qualés” e
“firmezas”. “Beleza mano, fica com Deus / Quando der a gente se tromba, beleza?
/ Você é mermão muleque”. Em “Dança”, faixa mais tranquila que as cinco
anteriores, que dialoga com o tango, Elza retorna a questões existenciais e
espirituais. “Daria a minha vida a quem me desse o tempo / Soprava nesse vento
a minha despedida / … / E se eu me levantar, ninguém vai saber / E o que me fez
morrer, vai me fazer voltar”.
Se o álbum abriu com duas músicas belíssimas, ele também
encerra com três faixas tão belas quanto. A instrumentação de “O Canal” tem
forte influência da música africana, que acompanha o tema da letra: uma jornada
espiritual. “Solto” é a única faixa sem distorções, fora o prelúdio acapella do
álbum, “Coração do Mar”. Descreve o processo de morrer: a alma se desprendendo
do corpo. E, finalmente, fechando o álbum com chave de ouro, “Comigo” começa
num crescendo de ruídos e distorções, construindo a tensão do ouvinte. Ao
chegar na metade da faixa, o ruído de repente cessa, e a voz de Elza surge
novamente num acapella belo e singelo, que encerra o álbum:
“Levo minha mãe comigo
Embora já se tenha ido
Levo minha mãe comigo
Talvez por sermos tão parecidos
Levo minha mãe comigo
De um modo que não sei dizer
Levo minha mãe comigo
Pois deu-me seu próprio ser”
O novo álbum de Elza é fogo, é melancolia, é sofrimento e é
liberdade, como há de ser o samba, como é Elza Soares, e como é a mulher
brasileira. Empodera, toca na ferida, é aquele tapa na cara que dói, mas nos
faz acordar. Trata de racismo, de misoginia, de transfobia. A voz de Elza está
rouca, rasgada, e sempre prestes a falhar, e exatamente por isso, mais bela do
que nunca. É uma cicatriz que mostra a força que ela precisou pra enfrentar o
que enfrentou, e é bela, como as marcas da idade no seu rosto. “Boto o passado
todo num cantinho, guardadinho em mim, mas sabendo que o now está aqui. Ontem
já foi, amanhã não sei. Então, tem que ser agora”.
Elza Soares é o olhar misterioso de Capitu, a casca grossa
de Maria da Penha, o sorriso alegre de Carmen Miranda, o braço forte de
Dandara, tudo junto. É daquelas mulheres que fazem História pra lembrar às
mulheres do Brasil que esse país é nosso.
Fonte: Revista Capitolina
Via Portal Vermelho
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